09 Setembro 2019
"Na raiz desse comportamento estão a explosão do desemprego, a retração na geração de empregos e a expansão do trabalho autônomo. Acompanhados do aumento da inadimplência de famílias que se endividaram bastante no forte ciclo de consumo que se encerrou", escreve Waldir Quadros, graduado em Economia pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde atualmente é professor associado do Instituto de Economia.
Publicamos introdução e o resumo do artigo "A profundidade da atual crise social", publicado em Texto para Discussão, Unicamp. IE, Campinas, n. 361, set. 2019. Para acessar a íntegra do artigo clique aqui.
O artigo é a continuação das pesquisas sobre os dados apresentados na entrevista "'É assustadora a bomba-relógio que temos pela frente'. 80% dos trabalhadores brasileiros são pobres e vivem com renda de até 1.700 reais".
Uma das manifestações mais agudas da crise que se instala em 2015 com a desastrosa inflexão na política econômica imposta pela dupla Dilma – Levy, e a forte recessão econômica dela decorrente, é o profundo empobrecimento da população brasileira.
Na raiz desse comportamento estão a explosão do desemprego, a retração na geração de empregos e a expansão do trabalho autônomo. Acompanhados do aumento da inadimplência de famílias que se endividaram bastante no forte ciclo de consumo que se encerrou.
Por sua vez, esta interrupção nas melhorias do nível de vida que vigorou entre 2004 e, grosso modo, até 2014, levou a uma atualização na forma de avaliar a dinâmica da estrutura social.
Agora, trata-se de estudar a mobilidade social descendente e a piora nas condições de vida da ampla maioria da população.
Uma das alterações trazidas por este novo olhar, reside na própria denominação da camada até então chamada por nós de Baixa Classe Média, que agora passa a “Pobres Intermediários”.
Se na etapa anterior de mobilidade ascendente já fizéssemos reparos à euforia marqueteira em torno do esplendor da “Classe C”[1] , agora as vicissitudes dos componentes desta camada deixam claro a precariedade da sua situação.
São trabalhadores que enfrentam grande vulnerabilidade, em que qualquer das intercorrências bastante comuns, com eles próprios ou seus familiares, provoca uma queda abrupta em suas condições de vida. Seja o desemprego, a troca de um emprego por outro pior remunerado, doença, prisão, vício, acidente de trabalho ou automobilístico.
Exceto os poucos que possuem algum plano de saúde corporativo, dependem da rede pública de saúde, que há tempos vem sendo sucateada, sofrendo todo tipo de grave adversidade. O mesmo se passa com a escola pública. Moram em bairros distantes com pouca ou nenhuma infraestrutura, dependendo do sistema de transporte precário que predomina nas grandes e médias cidades. Ou se aventuram em motocicletas e carros velhos e sem manutenção, se arriscando a acidentes muito frequentes.
Agregando aos Pobres Intermediários as camadas de Pobres e Miseráveis temos uma boa representação dos trabalhadores vulneráveis na sociedade brasileira.
Utilizando os dados da PNAD Contínua Trimestral do IBGE para o último trimestre de 2018, que eram os mais recentes quando preparamos o material deste trabalho, a soma destas três camadas atinge o enorme contingente de 77,3 milhões de trabalhadores, que alcança o espantoso nível de 80,4% dos ocupados!
Uma pergunta que surge de imediato diz respeito a que ocupações e atividades eles desempenham.
Antes de tudo, porém, cabe ter presente que boa parte dos ocupantes destas funções de baixo rendimento enfrenta uma elevada rotatividade ocupacional.
De um lado, como são majoritariamente trabalhadores genéricos, eles podem ser facilmente substituídos por outros com um rápido treinamento. Por outro, de um modo geral também não possuem maior apego a suas atividades e empregadores e aproveitam qualquer outra oportunidade que surgir.
Desta forma, os trabalhadores mais vulneráveis revelam crescente volatilidade ocupacional, ficando cada vez mais remota a ideia de ofícios. Com certeza na crise, com o agravamento das demissões, esse fenômeno ganha maior intensidade e os trabalhadores trocam constantemente de funções e atividades.
Outro aspecto que requer nossa atenção é o fato de que, embora sejam computadas todas as rendas auferidas, o IBGE classifica os trabalhadores pela ocupação principal, ou seja, aquela de maior remuneração.
Assim, fica oculta a prática bastante generalizada entre os vulneráveis de se dedicar a todo tipo de “bico” ou segundo emprego que encontrem para complementar sua renda.
Por tudo isso, progressivamente vem se constituindo uma imensa massa de trabalhadores indiferenciados.
Feitas essas ressalvas, observaremos mais a frente que o Comércio ocupa 21,9% dos trabalhadores vulneráveis, seguido de 12,4% na Indústria de transformação, 11,5% na Agropecuária, 8,8% na Construção, 8,5% nos serviços domésticos, 6,8% em Alojamento e Alimentação, 6,5% na Educação, 5,9% em Transporte, Armazenagem e Correio, 5,1% em Outras Atividades de Serviços, 5% em Atividades Administrativas e Serviços Complementares, 4% em Saúde e Serviços Sociais e 3,6% na Administração Pública, Defesa e Seguridade.
Passemos agora ao exame da mobilidade social. Como procuramos demonstrar ao longo deste trabalho, o intenso processo de ascensão social que vigorou de 2004 a 2014 beneficiou fundamentalmente estes trabalhadores vulneráveis e suas famílias, com notável expansão dos Pobres Intermediários.
Um aspecto que merece ser destacado é que ao final dessa intensa mobilidade ascendente, a Alta Classe Média situa-se praticamente no mesmo patamar de 1981 e a Média um pouco acima!
Na interpretação que seguimos esta estagnação decorre fundamentalmente do nosso processo de desindustrialização e da ausência de progresso técnico sistêmico. Pois é justamente o desenvolvimento do sistema industrial e suas amplas conexões que cria as oportunidades de melhor qualificação e remuneração ocupadas pela Classe Média.
Entretanto, a estabilidade dos níveis de participação da Classe Média não significa que nada ocorreu em seu seio desde 1980.
Como apontamos em trabalho de 1997[2] , a Nova Classe Média[3] criada pelo processo de industrialização pesada, e que estudamos em nosso doutorado[4], foi progressivamente perdendo seu caráter constitutivo e se transformando tão somente em uma camada de rendimentos mais elevados.
Aquele caráter originário dizia respeito a ocupações de nível superior com conteúdo marcadamente técnico e inovador para a época, associado aos avanços tecnológicos e organizacionais das empresas. E também à forte expansão e modernização nas áreas de Saúde, Educação Superior e Administração Pública.
Com o processo de desindustrialização, estagnação econômica e reestruturação empresarial defensiva que se seguiu ao “Milagre”, a Classe Média vai perdendo estas características e assumindo funções cada vez mais genéricas, principalmente nas áreas de gestão e vendas, com algum conteúdo técnico e grande familiaridade com softwares, internet, aplicativos etc. E com a crise do Estado, com raras exceções atuando em redes públicas de Saúde e Educação sucateadas, tal qual na Administração Pública.
Já na fase de estagnação dos investimentos da década de oitenta as empresas iniciam um forte processo de redução de custos com o duplo intuito de sobreviverem e acumular recursos líquidos para compensar a queda nas vendas com os atrativos ganhos na “ciranda financeira”.
Começa a grassar uma agressiva ação de consultorias que promovem um rápido e generalizado enxugamento das atividades administrativas, agrupando diretorias e demitindo os funcionários vinculados àquelas que são suprimidas.
Na década de noventa essas práticas avançarão ainda mais, acompanhadas de desnacionalização e de fusões e incorporações com iguais ou mais profundos resultados. Além da cada vez mais forte introdução de progresso técnico poupador de mão de obra, inclusive de profissionais mais qualificados, porém atuantes em tarefas rotineiras.
Por fim, na fase recente de crescimento e mobilidade ocorre quase que tão somente uma dinamização do mercado de trabalho sem maiores consequências sobre o esvaziamento dos conteúdos da classe média, já que não foi acompanhada de um vigoroso processo de reindustrialização e progresso tecnológico.
Passemos então a uma rápida comparação entre as ocupações mais relevantes para a Alta Classe Média em 1981 e no quarto trimestre de 2018, sempre ressalvando as alterações metodológicas ocorridas ao longo deste período.
Em termos bastante panorâmicos, e como veremos mais a frente, em 1981 os Comerciantes Estabelecidos estavam em primeiro lugar entre as ocupações mais numerosas (5,9%), e em 2018.4 descem para a terceira posição (3,9%).
Em 2018.4 a primeira posição passa a ser ocupada pelos Advogados e Juristas (4,7%), que em 1981 estavam em nono lugar (2,7%). Sendo que agora também podem ser considerados os Outros Profissionais do Direito e Serviços Legais (com 2,4%).
Os Médicos avançam para a segunda posição em 2018.4 (6,2%, sendo 4,6% de especialistas e 1,6% gerais.) contra a quinta em 1981 (3,7%).
Em 2018.4 os Professores do Ensino Superior ocupam o quarto posto (3,5%) sendo que estavam fora da lista de 1981.
Por sua vez, os Engenheiros que ocupavam o 4º lugar em 1981(3,8%) ficam de fora em 2018.4.
Por fim, cabe discutir os impactos sobre a mobilidade social das famílias advindos da profunda crise econômica que se inicia em 2015. Os dados indicam claramente que em 2016 ocorre uma forte mobilidade descendente com uma retração da ordem de 2,7 milhões de pessoas da Alta Classe Média e de 6,6 milhões de Pobres Intermediários, acompanhado de aumento de 5,1 milhões de Pobres e 2,7 milhões de Miseráveis.
E esta reversão na mobilidade não se alterou até agora.
É bem provável que este impacto da crise econômica ajude a entender o clima de descontentamento, radicalização e polarização política, que vai se instalando nas classes médias. Que já não estavam satisfeitas com o baixo dinamismo que enfrentaram no período de forte mobilidade nas camadas populares.
Nunca é demais insistir que, do ponto de vista que abraçamos, esta crise social é decorrência direta do brutal ajuste implantado pela dupla Dilma – Levy, com enfático apoio inicial do ex-presidente Lula.
Não podemos esquecer que ele sugeriu à Presidente que nomeasse para o Ministério da Fazenda seu ex-ministro Meirelles, para repetir o ajuste da “Carta aos Brasileiros” de 2003.
Com a recusa da Presidente ao nome indicado, ele envia o ex-ministro Palocci para convidar o presidente do Bradesco, que declina e indica o Levy, seu funcionário.
Ao mesmo tempo ele usa sua forte liderança para convencer o PT a apoiar o ajuste da “companheira Dilma”, pois esse seria o remédio necessário para novamente enfrentar as dificuldades fiscais e assegurar a governabilidade.
É verdade que passados aproximadamente seis meses de ajuste cego e linear, junto à elevação das tarifas administradas, os fortes sinais de descontentamento na opinião pública ficam evidentes e ele intercede para que a Presidente reveja este caminho suicida.
De fato, o “cavalo de pau” a afastou de seu eleitorado e rapidamente seus níveis de aprovação se tornam irrisórios, abrindo caminho para o impeachment.
Entretanto, teimosamente, ela se recusa e vai em frente para o precipício levando a Nação junto, que é jogada em uma terrível crise econômica e social, da qual até hoje não nos livramos.
Tudo indica que esta estratégia desatinada já estava inscrita nas intenções da Presidente e de seus principais assessores, que equivocadamente interpretam a (apertada) vitória de 2014 como sinal verde para governarem sozinhos, se “livrando” da interferência do ex-presidente e das influências do PT e do PMDB, que tinha o vice da sua chapa e forte presença no Congresso. Deu no que deu...
A rápida e drástica queda na popularidade da Presidente liberou as energias da oposição conservadora e viabilizou o impeachment, justificado por evidentes casuísmos.
Além disso, reforçou irresistivelmente as forças jurídicas e políticas interessadas em retirar o ex-presidente das eleições presidências de 2018, já que ele era o grande favorito. Como sabemos, por meio de todo tipo de artifício ele termina sendo preso. Sendo que ilustres membros das forças conservadoras também denunciados continuaram atuando livremente no cenário político.
Notas:
[1] Por exemplo: Quadros (2010).
[2] Cf. Quadros (1997).
[3] Cf. Mills (1969).
[4] Cf. Quadros (1991).
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A profundidade da atual crise social. Artigo de Waldir Quadros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU