23 Julho 2019
"O Brasil no contexto mundial de um acirramento entre formas de autoritarismos e desejos libertários. A política externa do governo Bolsonaro está conectando o país à nova internacional de extrema-direita".
O comentário é de Jean Tible, internacionalista, mestre pela PUC-Rio e doutor pela Unicamp e professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo – USP. É autor de Marx selvagem (São Paulo, Annablume, 2013; 2ª edição, 2016) e co-organizador de Junho: potência das ruas e das redes (Fundação Friedrich Ebert, 2014) e de Cartografias da emergência: novas lutas no Brasil (FES, 2015). O artigo é publicado por Autonomia Literária, 22-07-2019.
Em meio às manifestações nacionais de Junho de 2013, um milhão de pessoas protestam no centro do Rio no dia 20. Quatro dias depois, ocorre uma manifestação pela redução da tarifa de ônibus em Bonsucesso, zona norte do Rio. Um pequeno grupo assalta alguns manifestantes na Avenida Brasil e entra no Complexo da Maré. O Choque, que seguia a passeata, vai atrás e chama o Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope). Ao entrar na favela Nova Holanda, às oito da noite, o comandante é baleado e morre imediatamente. Inicia-se, uma hora depois, uma operação policial com armas de guerra (caveirão, helicóptero e fuzis). Uma “vingança” que durará toda a madrugada, na qual, num clima de terror, casas das favelas da região são invadidas, dezenas de moradores feridos e nove mortos. As cenas dos crimes foram todas desfeitas, cápsulas e corpos recolhidos. Uma semana depois, dia primeiro de julho, milhares se reúnem em ato repudiando o massacre e suas execuções sumárias, trágicas e recorrentes.
28 de novembro de 2015, noite de sábado. Um grupo de seis amigos de infância (de 16 a 25 anos) sai e vai a um show no Parque Madureira, na zona norte do Rio e depois seguem de carro e em uma moto a procura de uma lanchonete para comer algo. Estavam comemorando o primeiro salário (como auxiliar de supermercado) que um deles tinha acabado de receber. Em seu caminho, no bairro da Lagartixa, quatro policiais esperavam por traficantes que teriam roubado, em Costa Barros, a carga de uma empresa onde um outro policial fazia um bico de segurança privada. Descarregaram fuzis e revólveres no carro que passava. Não perguntaram nada. E apesar dos gestos dos jovens, dispararam. Wilton, Wesley, Cleiton, Carlos Eduardo e Roberto morreram na hora. O que estava na moto conseguiu escapar ao acelerar e levar somente um tiro no pára-choque. 111 tiros foram disparados (81 de fuzil e 30 de pistola). 63 atingiram o carro. 40 os jovens. Os policiais teriam, de acordo com testemunha, sorrido após o fuzilamento.
7 de abril de 2019. Nesse domingo, um casal, seu filho, afilhada e o pai/sogro estão indo para um chá de bebê e passam por uma área militar no bairro de Guadalupe, zona norte do Rio. O músico Evaldo Rosa dos Santos é atingido por 9 tiros. O carro onde estavam sofreu 62 disparos, do total de 257 tiros de fuzil e pistola disparados por 9 militares. O catador Luciano Macedo, tenta socorrer a família e toma três tiros (morrerá uns dias depois no hospital). O carro teria sido confundido com outro, usado por criminosos. A viúva de Evaldo, a enfermeira Luciana Oliveira relatou que os executores deram risada e debocharam quando ela os chamou de assassinos.
As três cenas ocorreram no Rio de Janeiro, antiga capital e cidade de eco nacional, que costuma antecipar tendências. Em todos esses episódios, as autoridades expressaram reações de tímidas a escandalosas e a impunidade dos executores predominou. Esses acontecimentos, que não constituem exceções, se colocados em uma obra de ficção (romance, peça, filme), muitos, dentro e fora do Brasil, poderiam percebê-los como episódios exagerados, fruto de uma perspectiva “posicionada” demais. O que pensar e sentir de um país, cujo Estado assassina dessa forma seus cidadãos nessas situações? No qual o pacto mínimo do chamado contrato social (direito à vida) é desrespeitado desse modo? Tenta-se aqui compreender o novo governo brasileiro nesse contexto.
Em sua primeira saída do Brasil no exercício da presidência, Jair Bolsonaro visita os Estados Unidos da América, rompendo a tradição da primeira viagem presidencial ser à Argentina. O ministro das Relações Exteriores organiza no dia 17 de março de 2019 um jantar na residência oficial do embaixador do Brasil em Washington. Estão presentes Olavo de Carvalho, escritor influente do bolsonarismo (chamado de “líder da revolução” por Paulo Guedes, ministro da economia, nessa ocasião) e Steve Bannon. Compõem também a mesa sete ministros brasileiros, Eduardo Bolsonaro (presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados) e jornalistas da extrema-direita estadunidense. Jair Bolsonaro em seu breve discurso declara:
Eu sempre sonhei em libertar o Brasil da ideologia nefasta de esquerda. (…) o Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos de desconstruir muita coisa, desfazer muita coisa, para depois começarmos a fazer (…). O nosso Brasil caminhava para o socialismo, para o comunismo, e quis a vontade de Deus, que dois milagres acontecessem: um é a minha vida e o outro é a eleição.
Desmonte, destruição, demolição, desconstrução. Todo um vocabulário é mobilizado para dar conta do seu propósito e das ações de governo, colocados nitidamente nessa declaração-chave em evento político com a cúpula do seu governo em território norte-americano.
O governo Bolsonaro consegue ao mesmo tempo ser uma continuidade e radicalização do governo Temer, eleito como vice de Dilma Rousseff e posteriormente usurpador. Por um lado, prossegue a agenda ultraliberal executada pelo governo golpista (aprovação de um teto de gastos e da reforma trabalhista, tentativa de restrição de direitos na previdência) e o combate às conquistas sociais, políticas e culturais da redemocratização (incluindo a Constituição de 1988). Por outro lado, se coloca como anti-establishment, instituindo uma relação tensa com o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso, que seria o símbolo da velha política contra a qual contrapõe a nova, que o capitão-presidente representaria.
Sintomaticamente, desde a virada trágica de Dilma no segundo mandato quando tomou medidas na contramão do que pregara na campanha eleitoral pela sua reeleição, o país foi atingido por sucessivas tragédias. Num dos maiores desastres ambientais do mundo, o rompimento da barragem da empresa Vale (privatizada nos anos 1990) em Mariana, Minas Gerais em novembro de 2015; o incêndio do maior museu de ciências e mais antiga instituição de pesquisa do país, o Museu Nacional no Rio em dezembro de 2018; outra barragem da Vale cede em Brumadinho em janeiro deste ano também em Minas Gerais, matando centenas de trabalhadores. Imagens de um país ruindo. De uma guerra?
De que tipo? Afinal, como chamar um Estado cujos agentes disparam contra civis de um helicóptero ou de veículos blindados como prática “normal” e até “correta”? Uma hipótese para compreender o momento do país é pensá-lo como parte de uma guerra colonial cujas cenas acima nos situam o quadro: forças policiais e armadas ocupando territórios e oprimindo suas populações, que nos aproximam de situações que vivem Iraque, Síria, Líbia ou Palestina em suas guerras de ocupação, como lembra o antropólogo Piero Leirner. Não é novo, já que o Brasil se assenta nisso, no genocídio dos povos ameríndios e na escravidão de povos africanos e nunca acertou as contas com esses crimes. No atual governo, essa chave de leitura se desdobra em três aspectos.
Antes de tudo, o governo promove uma “agenda da morte”. Isso se manifesta nos mais diversos sentidos. No corte das políticas de solidariedade (a proposta da previdência visa aprovar um modelo de capitalização no qual os pobres são extremamente prejudicados, diminui de mil para 400 reais o valor mínimo da aposentadoria e rebaixa as pensões dos trabalhadores rurais, entre outros pontos). Na liberalização total de agrotóxicos sabidamente nocivos para a saúde – 239 em seis meses! No desmonte das políticas ambientais (o Ministério só não foi extinto por pressão do agronegócio, que temia por sua imagem no exterior) e no estouro do desmatamento. Ao colocar a responsabilidade da demarcação de terras indígenas com os ruralistas (que não tem nenhum interesse em promovê-las – buscam o retrocesso). No desmonte das históricas e premiadas políticas de DST-AIDS. Na tentativa de ampliar a posse e o porte de armas. Na celebração dos massacres das forças policiais por parte do presidente e também de aliados como os governadores do Rio (que consegue ser ainda mais ofensivo) e de São Paulo (que se elegeu colando nele e agora busca distanciar-se). Na flexibilização das normas de saúde e segurança do trabalho. Na nova lei de drogas. Nas intenções punitivistas num país que já embarcou no encarceramento em massa, inclusive na proposta de pacote “anti-crime” do ministro da justiça, ex-juiz que condenou Lula em processo kafkiano:, onde consta que o policial ou militar pode ser absolvido se matar alguém caso “o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. No discurso de ódio em geral – contra professores, ativistas, jornalistas, ambientalistas, feministas, pessoas e coletivos fora das normas…
Um segundo aspecto se situa no elo de Bolsonaro e seus filhos parlamentares com as milícias que foram se tornando um importante poder político no Rio de Janeiro. O que já sabemos já é muito grave e novas revelações podem surgir, já que existem investigações em curso. As milícias cresceram a partir dos anos 1990 na Zona Oeste do Rio, formadas por policiais e bombeiros da ativa e da reserva. Ao controlarem territorialmente áreas periféricas da cidade e seus serviços de gás, televisão a cabo, transporte alternativo criaram uma tecnologia de poder: além da tradicional grilagem de terras, ao possuírem cadastro dos moradores (por conta do controle dos serviços) foram exercendo um papel político crescente, elegendo deputados estaduais e vereadores, inclusive alguns de seus líderes. Dois milhões de pessoas viveriam no Grande Rio em áreas dominadas por milícias, que vêm ampliando suas áreas de atuação, controlando aplicativos de transporte, cobrando taxas de vastos setores: pescadores, mototáxis, consultas médicas, cabeleireiros, manicures e toda uma gama de pequenos comércios, ademais de construir e alugar moradias.
Além disso, vendem serviços, seriam matadores de aluguel. Daí o elo com o assassinato da vereadora Marielle Franco. Quase um ano depois do atentado, dois ex-PM (Polícia Militar), tidos como integrantes do “Escritório do Crime”, foram presos. Um deles era vizinho de Bolsonaro e do seu filho Carlos no condomínio onde vivem. Tem mais: Adriano Magalhães da Nóbrega, ex-capitão da PM e ex-membro do Bope (foi expulso da corporação), está foragido desde o início do ano, suspeito de chefiar milícias e de ser também parte do “Escritório do Crime”. Sua mãe e mulher trabalharam no gabinete de Flávio Bolsonaro quando ele era deputado estadual – nesse mesmo mandato deu a Nóbrega a Medalha Tiradentes, mais elevada honraria da Assembleia Legislativa do Rio. A mesma que ele negou, postumamente, a Marielle (foi aprovada a homenagem, apesar de seu voto). Já Bolsonaro, o pai, foi o único candidato à presidência a não se pronunciar sobre o assassinato. Em vários momentos, Jair e Flávio defenderam, nos parlamentos, as milícias (embora tenham se contido nos últimos tempos). Um outro escândalo surgiu no início do ano: o órgão federal de controle de transações financeiras detectou movimentações atípicas (da ordem de 7 milhões de reais) de um assessor de Flávio, Fabrício Queiroz, próximo da família toda. Parte desse dinheiro era depositado por outros assessores de Jair e Flávio na conta de Queiroz. Depois dessas informações terem se tornado públicas, Queiroz está até agora escondido, possivelmente na região onde as milícias são fortes, na Zona Oeste do Rio.
Uma terceira faceta situa-se no caráter colonial desse novo governo. Isso aparece explicitamente na política externa. Os textos e discursos do ministro Ernesto Araújo, exalam uma suposta epopeia portuguesa e pregam uma defesa apaixonada de um Ocidente cristão (do qual Trump é um salvador), invocando espada, cruz e guerras, heróis e mártires. Faz, nesse contexto, uma celebração da colonização e dos colonizadores – cita Dom Sebastião e suas batalhas contra os mouros, fala para lermos José de Alencar, escritor e político liberal escravocrata e celebra um historiador que “vê nas navegações portuguesas um grande ritual iniciático, e, portanto, o Brasil, fruto supremo desse ‘mistério’, tem uma origem profunda e sagrada, ligada aos mais profundos arcanos da alma ocidental tal qual manifestados na nação portuguesa”. Um problema atual seria nossa desconexão com “a velha alma lusa”. O discurso de posse de Araújo começa citando autoridades – a quarta a ser saudada foi “sua Alteza Imperial e Real Dom Bertrand de Orleans e Bragança” (não por acaso, monarquistas ocupam cargos no governo e são prestigiados). Continua e cita a Ave Maria em tupi (em mais uma celebração colonizadora) e retoma isso ao terminar o discurso dizendo “Anuê Jaci!”, que talvez remeta à saudação integralista anauê.
Essa “nova política externa” mostra um espírito cruzado. O assessor internacional da presidência, Filipe Martins, comemorou a vitória eleitoral de outubro passado com o tuíte “está decretada a nova Cruzada. Deus vult!”, fazendo referência à primeira cruzada e seu movimento de conquista de Jerusalém na última década do século 11. Completou no dia da posse com: “A nova era chegou. É tudo nosso! Deus vult!”. O que significa Deus quer? O que Deus deseja? Se são cruzados, contra quem é essa guerra? Quem são os mouros (que controlavam a cobiçada terra santa) e judeus (massacrados no caminho) de hoje, os infiéis? Isso se conecta com a insistência em negar a existência do racismo no país (não há nem brancos nem negros, todos são brasileiros) ou de outras opressões – veem vitimismos por toda parte e não processos históricos extremamente violentos e assimétricos. Assenta-se, assim, o caráter reacionário desse governo – são negacionistas conforme alerta Débora Danowski em seu Negacionismos (n-1, novembro de 2018).: do aquecimento global (afinal, trata-se de um complô comunista-globalista – a ação humana-capitalista nada tem a ver com isso), mas também das chagas sociais e coloniais do Brasil.
Como disse Oswald de Andrade no seu “Aqui foi o Sul que venceu” de 1944 (Ponta de lança. São Paulo, Globo, 1991),ao contrário dos EUA, aqui foi o Sul escravocrata que ganhou a guerra civil (não declarada). Após a derrota na guerra civil estadunidense, milhares vieram se abrigar no Brasil onde essa peculiar instituição era mais respeitada. Seus descendentes organizam uma festa confederada anualmente numa cidade do interior de São Paulo, mas não são racistas nem defendem a escravidão – só o Estado mínimo. Uma sociedade que recalca seu passado escravocrata e tenta, assim, “esquecê-lo”. Se o Brasil possui um continuum de massacres contra os pobres, pretas, indígenas e outras, agora esses personagens de uma guerra ininterrompida contra os corpos dissidentes chegaram (ou melhor, retornaram) ao governo federal – como Luiz Antônio Nabhan Garcia, atual Secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura (com responsabilidade pela reforma agrária), é fundador (e foi presidente por longos anos) da União Democrática Ruralista (UDR) que nasceu para se contrapor ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Não por acaso, alguns produtores rurais retomam explicitamente discursos extremamente bélicos.
Haveria um projeto nisso tudo? Digo, de alguma construção, para além da terra arrasada? Talvez, se pensarmos num plano ultraliberal, na linha da doutrina do choque de Naomi Klein, na qual as reformas liberalizantes e privatistas somente são possíveis após a produção de um choque que as permita, seja uma tragédia provocada direta (a invasão do Iraque) ou “indiretamente” (o furacão Katrina em New Orleans). Seria o plano de Guedes: após a reforma da previdência, viriam privatizações em massa. Mas é possível pensar num projeto em que suas bases são os fortes cortes na educação nos últimos quatro anos, nas políticas culturais e acabar com uma centena de conselhos de participação (importante para áreas como população de rua, indígenas e LGBTQIA+), ademais do que já citamos acima? Teríamos aí uma nova “acumulação primitiva”, com arrocho ou fim para as políticas sociais e distributivas em geral e novas frentes de acumulação com mineração por toda parte, azeitada pela contumaz repressão? Uma extração bruta. Já que não há aquecimento global (invenção vermelha com tintas verdes), trata-se de abrir as terras (sobretudo indígenas e de proteção ambiental) para as “atividades produtivas” da soja, grandes obras (barragens, estradas, ferrovias) e gado.
Essa sensação de falta de um projeto para o país no atual governo (ainda que neo/ultra-liberal/conservador) se articula com a postura de um setor importantíssimo do processo político brasileiro contemporâneo (e que surpreendentemente, conseguiu se posicionar muito bem para seus propósitos no pós-Junho de 2013). Os militares parecem priorizar demandas corporativas e individuais. Teriam, também, se tornado entreguistas? Nenhuma voz se fez ouvir publicamente contestando a venda da empresa estratégica (fundada pelos militares) como a Embraer para a norte-americana Boeing ou o acordo de concessão da Base de Alcântara aos EUA. Os militares (sobretudo da reserva), com mais de cem cargos importantes no governo, são o grupo mais coeso dessa administração. Parecem, no entanto, mais interessados em salários e aposentadorias do que em demandas, por exemplo, de equipamentos militares ou de “planos estratégicos” para o país. Por ora, seriam o único setor do funcionalismo público a não perder direitos na reforma da previdência – o plano enviado pelo governo ao congresso aumenta o tempo mínimo e as contribuições, mas os compensa com aumentos de salários e reformulação da carreira. Tal perspectiva parece também habitar os procuradores da Lava Jato – explícita nas revelações recentes do The Intercept Brasil, nas quais uma das estrelas da Operação faz planos ambiciosos de ganhar dinheiro com a fama recém-adquirida. Membros do Judiciário e do Ministério Público (com salários e benefícios imorais para um país como o Brasil) se colocaram, com sucesso (por ora), como representantes da população em sua cruzada “anticorrupção” e foram decisivos na última eleição, inclusive ao inviabilizarem a candidatura do então candidato que liderava as pesquisas de opinião (Lula). Parece, também, existir uma articulação entre esses setores e os militares, tanto política quanto de aspirações individuais, conjugados a um desinteresse por condições de vida digna para os de baixo.
Um governo que mal começou (tem duzentos dias) e vive turbulências. A palavra impeachment volta a circular, inclusive na boca do presidente. Não se sabe o que vai acontecer. Alguns falam de uma possível mudança para o parlamentarismo. Sua sustentação nas classes dominantes e empresários (que o apoiaram muitas vezes com entusiasmo durante a campanha) começa a declinar, mas ainda perdura, com a aprovação inicial da reforma da previdência, que pode ser seguida de outras (como a tributária) num viés pró-mercado. O andar de cima mantém sua aposta, mas a popularidade de Bolsonaro tem se deteriorado – está voltando aos patamares mais baixos, tendendo para os setores “mais duros” de uma extrema-direita que o apoiaram desde o início. Prevalece um certo patamar existente desde a redemocratização do fim dos anos 1980: um terço da população apoiando a esquerda, outro terço a direita e um último oscilante, mas com duas mudanças importantes: a segunda vertente é hegemonizada agora por sua porção extrema e a liderança das três últimas décadas da primeira está presa e sem perspectiva de saída a curto (ou até mesmo médio) prazo. O governo tem tido graves problemas (como escândalos de corrupção), dificuldades de articulação política, brigas internas, atrapalhadas na diplomacia e falta de apresentação de propostas concretas de políticas públicas para atender às necessidades da população, mas tudo está ainda no princípio.
O ângulo da instabilidade política pode ser mais preciso para compreender a política brasileira que o da constância. De um século pra cá, numa passagem rápida: Getúlio Vargas assume a presidência, o assassinato do seu candidato à vice por crime passional sendo o estopim para o que ficou conhecida como Revolução de 1930. 1932: São Paulo se rebela e perde a guerra. 1935: a chamada Intentona Comunista. 1937: instauração do Estado novo (autoritário). 1945: Vargas é deposto por um golpe militar – volta em 1950, eleito pelo voto popular. Quatro anos depois se mata. Juscelino quase não assume a presidência em 1956 por conta das pressões das Forças Armadas. 1960: Jânio renuncia (esperando ser chamado de volta pela população) sete meses após iniciar seu governo. Mudam o regime para parlamentarista, por temor do vice, João Goulart, que se não ocorresse uma mobilização forte nem assumiria. Consegue voltar ao presidencialismo em 1963, após plebiscito, mas acaba derrubado por um golpe civil-militar no ano seguinte. Mais de vinte anos de ditadura militar, com tensões e tentativas internas de ruptura. O Congresso elege o primeiro presidente civil em meados dos anos 1980, mas este morre antes de tomar posse e assume o vice, antigo quadro do regime militar. O primeiro presidente eleito em décadas (Collor) sofre um impeachment dois anos e meio depois, no início da década de 1990. Fernando Henrique Cardoso tem relativa estabilidade apesar da baixa popularidade no período final. O primeiro presidente vindo do andar de baixo, Lula, sofre tentativa de derrubada já no terceiro ano da presidência; sobrevive e sai aclamado do governo cinco anos depois, mas hoje está encarcerado. Sua sucessora será destituída no começo do seu segundo mandato. Temer consegue, às penas, concluir seu mandato. Bolsonaro se elege e já vive desequilíbrios precoces, acentuados nos últimos dias pela divulgação das poucos republicanas mensagens trocadas pelo ministro da justiça quando ainda era juiz.
As seguidas vitórias eleitorais petistas fizeram a direita brasileira mover-se em direção ao seu extremo na forma e no conteúdo: em 2006, Geraldo Alckmin vai agressivamente falar do escândalo do mensalão perguntando onde estava o dinheiro; quatro anos depois, José Serra vai insistir na questão do aborto como pauta petista na disputa com Dilma; em 2014, Aécio se mostrará obcecado pelos financiamentos do BNDES a projetos em Cuba ou Venezuela (políticas que começaram com Fernando Henrique Cardoso); por fim, dois anos mais tarde, a irresponsável escolha de derrubar Dilma e participar do governo golpista. Essa direita “moderada” foi atropelada pela “dura”, da qual antecipou bandeiras (anti-corrupção, “pauta de costumes”, antibolivariana). Esse sentimento antidemocrático parece ter tomado conta de vários atores: nas entrevistas regulares aos jornais nenhum empresário parece inquieto com a postura e as pautas de extrema-direita do governo – só veem a possibilidade de realizar o “sonho” da reforma da previdência e uma equipe econômica de confiança.
Estamos vivendo uma crise social intensa, com um desemprego em nível altíssimo: quase 13 milhões (mais 7 milhões que desistiram de procurar e outros 8 milhões que trabalham menos do que gostariam num número que chega a um quarto dos brasileiros em “idade ativa” o número dos que alguns chamam de “população subutilizada). Pessoas vivendo na rua, fome voltando, desigualdades crescentes. Sem respostas concretas a essas questões que nos levam a beirar um colapso social, o governo pode se fragilizar ainda mais: nesse caso, conseguirá manter uma governabilidade e popularidade mínimas (será suficiente apontar e por a responsabilidade no colo de alguns inimigos quando se está no governo já faz um tempo?). Tudo isso é extremamente preocupante, o que se reforça pelos sinais autoritários de Bolsonaro, desde estar a vontade para fazer suas recorrentes piadas machistas sem graça à insistência na transferência da FUNAI para o Ministério da Agricultura e no fim do CONSEA (apesar de decisões do Congresso e do STF), passando pela perseguição ao funcionário do IBAMA que lhe aplicou uma multa por pesca em área de proteção ambiental ou nomear um dos filhos como embaixador em Washington (tradição dos regimes autocráticos). Além disso, as manifestações do domingo dia 26 de maio em apoio ao governo parecem ter lhe dado uma confiança extra para “testar” as instituições. Existe uma movimentação (neo)fascista e abriram-se possibilidades sinistras. Buscará um acirramento (e uma ruptura?) com a tentativa de mobilizar sua base mais fiel assim como seu apoio nas corporações armadas? Como reagirá a população? Imprevisibilidade aguda. As eleições americanas do próximo ano serão importantíssimas para o processo político brasileiro.
E a oposição (de esquerda) nisso? Esta começou de fato no dia 15 de maio com o contundente protesto em mais de duzentas cidades e juntando mais de um milhão de pessoas – a maior manifestação da história do país em defesa da educação, que se repetiu no dia 30 de maio. A greve geral do dia 14 de junho foi chocha e praticamente insignificante frente ao rolo compressor do Congresso e que resultou na aprovação em primeiro turno da proposta de reforma da previdência. Permanece uma dificuldade desde Junho de 2013: existe uma distância entre um frescor e um forte caldo democrático e anti-autoritário em inúmeras mobilizações e uma falta de verve (em geral) dos partidos, sindicatos e instituições mais antigas desse campo político.
É possível uma real confluência entre “Lula livre” e “Marielle vive”? O governo Bolsonaro e sua crítica hostil das instituições coloca as esquerdas num lugar “desconfortável”: pode, por um lado, levar a uma defesa praticamente acrítica e conservadora dessas (que são racistas, sexistas, anti-pobre e pouco democráticas– num exemplo recente: em 2016, o então Secretário de Segurança Pública de São Paulo, Alexandre de Moraes, inova a respeito da possibilidade das forças policiais efetuarem reintegração de posse sem mandato judicial contra as ocupações de escola pelos estudantes. Esse e outros bons serviços serão duplamente recompensados: ao se tornar naqueles dias ministro da justiça de Temer que depois o indicou para o STF após o acidente e morte (até hoje não explicados) do ministro Teori Zavascki. Quando a ação questionando a constitucionalidade dessa medida chega ao STF, quem é o relator? O próprio Moraes, que a rejeita antes mesmo da Procuradoria Geral da República expressar sua posição). Isso já ocorreu em certa medida durante a campanha do ano passado: quem as criticou na campanha foi Bolsonaro, enquanto Fernando Haddad (candidato do Partido dos Trabalhadores) as apoiou. O que, em parte, é bastante justificado se pensarmos que diversas conquistas históricas garantidas por leis e instituições correm sério risco frente a discursos e práticas autoritárias. Por outro lado, explicita um problema de formulação das esquerdas: como alcançar as pessoas e propor novas instituições radicalmente democráticas, o que inclui mudanças em instâncias-chave (como Judiciário, Forças Armadas, mídia…), na qualidade da representação política, a invenção de novas formas de participação e deliberação diretas e o fortalecimento de potentes invenções democráticas historicamente sufocadas pelos poderes (tentamos coletivamente dar uma contribuição nesse sentido no âmbito do GT “Política e Poder” do Programa de Governo Boulos-Guajajara)? E ademais levando em conta que as classes dominantes não aguentaram as mudanças leves e importantes do projeto de Lula e, igualmente, o atual contexto de um encarceramento em massa, nível altíssimo de mortes violentas (60 mil por ano) e crise econômica, que se alimentam mutuamente.
O Brasil no contexto mundial de um acirramento entre formas de autoritarismos e desejos libertários. A política externa do governo Bolsonaro está conectando o país à nova internacional de extrema-direita – além do vínculo com Trump, isso pode ser observado na viagem durante o mês de maio, feita pelo chanceler Araújo, para a Itália de Salvini, “grande líder da regeneração europeia”, Hungria de Orbán e Polônia em busca das raízes cristãs, símbolos de resistência e fé. Nessa última, ele tirou uma foto em quadro com rei da polônia celebrado pela extrema-direita (como o terrorista que assassinou jovens social-democratas na Noruega em 2011 ou os neo-zelandeses do covarde atentado de março). A virada repressiva dos poderes em geral no mundo todo (em particular nestes anos – vejam a ignóbil repressão do governo Macron aos coletes amarelos) pode nos deixar ainda mais preocupados em países de frágil tradição democrática.
Na moda atual da literatura de ciência política sobre crise da democracia, o problema muitas vezes é apontado como o povo que não sabe escolher ou de certas elites que não souberam se conter. Talvez seja o caso de deslocar a conversa, envolvendo essa década das insurreições democráticas (desde Sidi Bouzid, na Tunísia, no fim de 2010) e percebendo as forças vivas que impulsionam novas/outras formas de democracia. Invocando Oscar Wilde (em seu A alma do homem sob o socialismo), a desobediência como base da democracia, a rebelião abrindo caminhos de construção coletiva frente a essas guerras em curso. É o que podemos ver e sentir no acampamento de semanas de alegria e luta, festa e guerra (Beatriz Perrone-Moisés) em frente ao quartel general das forças armadas em Cartum, Sudão, que derrubou um tirano há décadas no poder e está lutando, com uma participação forte das mulheres, por um governo civil. A Junta Militar decidiu desmantelar o acampamento no dia 3 de junho e mais de uma centena foram mortos, dezenas de corpos jogados no Nilo, a internet cortada, centenas presos – o movimento, no entanto, persiste. Está nos jovens argelinos manifestando todas as sextas desde o 22 de fevereiro, começando numa pequena cidade nas montanhas, que lutam contra o “sistema” que os governa há gerações, impediram a candidatura de outro tirano e buscam eleições mais justas e liberdade. Do Haiti mobilizado esse semestre todo pela destituição do seu presidente às jovens do Extinction Rebellion interpelando a Europa rica. E nas lutas pela vida de corpos coletivos no Brasil, que sobrevivem à guerra colonial em curso (Canudos é reencenada desde sempre, clama Zé Celso no barco pirata em Paraty), lutando e criando, resistindo e construindo, em territórios livre e libertos, permanentes e fugazes.
*Versão ampliada do artigo escrito para a Revista Rosa (Chile) – agradeço a Andrés Estefane pelo estímulo
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Guerra, Choque, Destruição: o Brasil no Contexto do Novo Governo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU