04 Junho 2019
"Avança no mundo a MMT, teoria libertadora sobre finanças e poder. Ela sugere: Estados e sociedades podem emitir moeda quase sem restrições — e promover o Comum e a redistribuição de riquezas. Quais suas bases históricas e conceituais?", escreve Ellen Brown, advogada e fundadora do Instituto de Banca Pública, em artigo publicado por Outras Palavras, 31-05-2019. A tradução e a introdução ao texto é de Felipe Calabrez.
Os cânones da chamada ciência econômica parecem viver uma crise terminal. As divergências internas à disciplina não são, é claro, novidade. O que tem ocorrido, no entanto, é que os preceitos da ala dita “mainstream” — vale dizer, a abordagem mais aceita nos departamentos norte-americanos e de língua inglesa, e que goza de maior prestígio acadêmico e no mundo financeiro – têm sofrido uma crítica devastadora. Alguns chegam a vaticinar a morte da macroeconomia.
Uma das frentes críticas que mais tem se destacado é a que ficou conhecida como MMT (Modern Monetary Theory, ou Teoria Monetária Moderna). A MMT solapa as bases da teoria monetária ao afirmar, resumidamente, que os Estados soberanos na cunhagem de sua própria moeda (o Brasil, entre tantos outros) não enfrentam restrições financeiras. Essa afirmação, longe de se restringir a controvérsias meramente teóricas, pode produzir efeitos revolucionários nas políticas públicas dos Estados nacionais. Ela subverte o raciocínio fiscalista hoje predominante em grande parte do mundo ocidental cujos fracassos se acumulam há anos. No Brasil, aliás, eles aparecem agora com clareza ainda maior…
“Outras Palavras” tem dado espaço a esse debate, por compreender sua importância e seu potencial transformador. Por isso publicamos a tradução de outro texto instigante — agora de Ellen Brown, pensadora estadunidense que dirige o Public Banking Institute.
Brown resgata o processo pelo qual o governo dos EUA construiu um sistema de endividamento público que drena o dinheiro da sociedade e o transfere para um grupo seleto de negociadores e compradores de títulos públicos. Seu ponto central é: como tem soberania monetária o governo poderia simplesmente financiar-se utilizando o Banco Central (no caso norte-americano, denominado Federal Reserve, ou FED). No limite, o Estado não precisa do dinheiro do contribuinte para se financiar. A cobrança de impostos entra aqui como reguladora do nível de atividade econômica, e, portanto, controladora do nível de preços.
No entanto, a emissão de moeda pelo Estado, que poderia transformar as políticas públicas, está bloqueada há décadas. Um forte lobby financeiro instituiu regras que impedem tal medida, deixando o governo refém do crédito privado. Trata-se da Revolução do poder dos banqueiros de Wall Street, nos diz a autora.
Esse debate se faz urgente no Brasil. De acordo com a secretaria do Tesouro Nacional, doze instituições (nove bancos e três corretoras) atuam no mercado primário e secundário de títulos públicos. Um mercado que movimenta centenas de bilhões ao ano e consome fatia expressiva do orçamento público, apenas com o pagamento dos juros.
O Brasil, repetem governo e grande imprensa com uma insistência fatigante, está à beira de um colapso fiscal e precisa cortar gastos de toda ordem, incluindo aposentadorias, investimentos em infraestrutura, saúde e educação, preservando tão somente suas despesas financeiras. Ora, e se o governo utilizasse seu Banco Central para financiar todas essas demandas urgentes? Descambaríamos para uma hiperinflação, mesmo com toda essa capacidade ociosa na economia? A MMT é taxativa em sua reposta: Não!
Então porque o governo não o faz? — poderia indagar o leitor. A resposta a essa questão fica sugerida com a seguinte pergunta: O que seria dos ganhos financeiros das grandes instituições que aplicam em títulos públicos para “financiar” o governo se ele passasse a se financiar cunhando a própria moeda?
É verdade que as regras que regem a relação entre Banco Central e Tesouro Nacional no Brasil vedam o financiamento do Tesouro via Banco Central. Mas quem são os interessados na criação e manutenção dessas regras?
Brown nos conta sobre o caso norte-americano. Qualquer semelhança com o caso brasileiro não há de ser mera coincidência.
A dívida federal dos EUA mais do que dobrou desde a crise financeira de 2008, passando de US$ 9,4 trilhões (R$ 37 trilhões) em meados de 2008 para mais de US$ 21 trilhões (R$ 82,9 trilhões) em meados de 2018 e mais de US$ 22 trilhões (R$ 86,9 trilhões) em abril de 2019. Essa dívida nunca é paga. O governo apenas mantém o pagamento dos juros, cujas taxas estão subindo.
O Fed (sigla de Federal Reserve, o Banco Central norte-americano) anunciou planos de elevar as taxas até 2020 para níveis “normais” – uma meta de 3,5% para títulos federais – e de vender cerca de US$ 1,5 trilhão (R$ 5,9 trilhões) em títulos federais. Isso aumentará ainda mais a montanha de dívida federal nas mãos do mercado. E, ao contrário do Fed, os novos compradores desses títulos estarão embolsando os juros, aumentando a conta a ser paga pelos contribuintes.
Se o Fed seguir com seus planos, as projeções são de que, até 2027, os contribuintes dos EUA gastarão US$ 1 trilhão (R$ 3,9 trilhões) por ano apenas em juros sobre a dívida federal. Isso seria suficiente para financiar o plano de infraestrutura de trilhões de dólares do presidente Donald Trump a cada ano, e é uma transferência direta de riqueza da classe média para os ricos investidores detentores da maioria dos títulos.
De onde virá esse dinheiro? Impostos escorchantes, privatização generalizada de bens públicos e eliminação de serviços sociais não serão suficientes para cobrir a conta.
A ironia é que os Estados não precisam ter uma dívida com os detentores de títulos. Os EUA, por exemplo, têm sido financeiramente soberanos desde que o presidente Franklin Roosevelt desvinculou as emissões domésticas de dólar do padrão-ouro, em 1933. Isso foi reconhecido por Beardsley Ruml, presidente do Federal Reserve Bank de Nova York, em uma apresentação em 1945 perante a American Bar Association. , “Impostos para obter receita são obsoletos”.
“A necessidade de o governo tributar para manter tanto sua independência quanto sua solvência é verdadeira para os governos estaduais e locais”, disse ele, “mas não é verdade para um governo nacional”. O governo agora estava livre para gastar o quanto fosse necessário para cumprir seu orçamento, com base em crédito emitido por seu próprio banco central. Isso poderia acontecer até que a inflação de preços indicasse um enfraquecimento do poder de compra da moeda.
Então, e somente então, o governo precisaria cobrar impostos — não para financiar o orçamento, mas para contrabalançar a inflação, contraindo a oferta monetária. O principal objetivo dos impostos, disse Ruml, era “a manutenção de um dólar que tivesse poder de compra estável ao longo dos anos. Às vezes, esse propósito é declarado como “evitar a inflação”.
O governo poderia ser financiado sem impostos, recebendo crédito de seu próprio banco central; e como não havia mais necessidade de ouro para cobrir o empréstimo, o banco central não precisaria pedir emprestado. Poderia apenas criar o dinheiro em seus livros contábeis. Essa percepção é um princípio básico da G: o governo não precisa pedir emprestado ou tributar, pelo menos até surgirem sinais de alta de inflação. Pode apenas criar o dinheiro necessário, gerando um débito em sua conta no Fed.
Poderia fazer isso em teoria, mas algumas leis precisariam ser mudadas. Atualmente, o governo federal é obrigado [tanto nos EUA quanto no Brasil e na maior parte dos países ocidentais] a ter o dinheiro em sua conta antes de gastá-lo. Depois que o dólar saiu do padrão-ouro em 1933, o Congresso poderia ter mandado o Fed simplesmente imprimir dinheiro e emprestá-lo ao governo, tirando os bancos da jogada. Mas o baronato financeiro de Wall Street pressionou por uma emenda ao Federal Reserve Act, proibindo o Fed de comprar títulos diretamente do Tesouro, como havia feito no passado.
Segundo Marriner Eccles, presidente do Federal Reserve de 1934 a 1948, a proibição de permitir que o governo contratasse empréstimos de seu próprio banco central foi escrita na Lei Bancária [Banking Act] de 1935, a pedido dos negociantes de valores mobiliários. Uma revisão histórica no site do New York Federal Reserve cita Eccles afirmando: “Eu acho que as verdadeiras razões para escrever a proibição do [Banking Act] … podem ser atribuídas a certos negociantes de títulos do governo que naturalmente tinham seus olhos nos negócios que poderiam ser perdidos se a compra direta fosse permitida”.
O governo era obrigado a vender títulos através dos intermediários de Wall Street, e o Fed só podia comprar através de “operações de mercado aberto” conduzidas pelo Comitê de Mercado Aberto. O deputado Wright Patman, presidente do Comitê de Bancos e Moedas da Câmara de 1963 a 1975, qualificou a sanção oficial do Federal Open Market Committee (FOMC), nas leis bancárias de 1933 e 1935, como a transferência do “poder do dinheiro” aos bancos. O FOMC estabeleceu um mecanismo pelo qual o dinheiro era criado através de vendas de títulos, no que era essencialmente um mercado manipulado. Patman disse: “O ‘mercado aberto’ é, na realidade, um mercado fortemente fechado”. Somente alguns poucos negociadores de títulos (dealers) tinham direito a fazer lances nos títulos que o Tesouro disponibilizava para leilão a cada semana. O efeito prático, disse ele, era pegar dinheiro do contribuinte e entregá-lo a esses negociadores.
Esse subsídio maciço a Wall Street foi objeto de depoimento de Eccles ao Comitê da Câmara sobre Operações Bancárias e Moeda, de 3 a 5 de março de 1947. O deputado Patman perguntou a Eccles, presidente do Banco Central: “Agora, desde 1935, para os bancos públicos comprarem títulos do governo, eles têm que passar por um intermediário, está correto? ”Eccles respondeu afirmativamente. Patman então se lançou em uma advertência profética, afirmando: “Eu me oponho a que o governo dos Estados Unidos, que possui o privilégio soberano e exclusivo de criar dinheiro, pague banqueiros privados pelo uso de seu próprio dinheiro. (…) Insisto que é absolutamente errado que esta comissão permita que esta condição continue e onere os contribuintes desta nação com uma carga de dívidas que não poderão liquidar em cem ou duzentos anos.”
A verdade dessa afirmação é dolorosamente evidente hoje, quando os EUA têm uma dívida de US$ 21 trilhões que não pode ser reembolsada. O governo apenas continua rolando e pagando juros aos bancos e detentores de bônus, alimentando a economia “financeirizada”, na qual o dinheiro ganha dinheiro sem produzir novos bens e serviços. A economia financeira tornou-se um parasita que se alimenta da economia real, levando os produtores e trabalhadores a se endividar cada vez mais.
Nos anos 1960, Patman tentou nacionalizar o Fed. O esforço fracassou, mas seu comitê conseguiu forçar o banco central a repassar seus lucros para o Tesouro após deduzir seus custos. A proibição contra empréstimos diretos pelo banco central ao governo, no entanto, permanece em vigor. O poder do dinheiro ainda está com o FOMC e os bancos.
Hoje, o modelo de crescimento da dívida atingiu seus limites, como até o Bank for International Settlements, o “banco central dos bancos centrais” da Suíça, reconhece. Em seu relatório anual de junho de 2016, o BIS disse que os níveis de endividamento estavam muito altos, o crescimento da produtividade era muito baixo e o espaço para a manobra política era muito estreito. “A economia global não pode se dar ao luxo de confiar mais no modelo de crescimento impulsionado pela dívida que a trouxe para a atual conjuntura”, alertou o BIS.
Mas as soluções propostas pelo BIS representam a continuidade das políticas de austeridade impostas há muito tempo aos países que não podem pagar suas dívidas. Ele prescreveu “políticas prudenciais, fiscais e, acima de tudo, estruturais” — “reajustes estruturais”. Isso significa privatizar ativos públicos, cortar serviços e elevar impostos, sufocando a própria produtividade necessária para pagar as dívidas das nações. Essa abordagem tem sido tentada repetidamente e levada ao fracasso, como pudemos notar mais recentemente na devastada economia da Grécia.
Enquanto isso, de acordo com o presidente do Fed de Minneapolis, Neel Kashkari, a regulação financeira reduziu, desde 2008, as chances de outro resgate do governo apenas modestamente, de 84% para 67%. Isso significa que ainda há uma chance de 67% de outra grande crise sistêmica, e esta pode ser pior que a anterior. Os grandes bancos estão ainda maiores; os bancos locais, menores; e os níveis globais de dívida estão mais altos. A economia tem mais espaço para cair. Os modelos dos reguladores são obsoletos, voltados para uma forma bancária ultrapassada, que há muito tempo foi abandonada.
Nós precisamos de um novo modelo, desenhado para servir às necessidades do público e da economia real, em vez de maximizar os lucros dos especuladores às suas custas.
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E se nos livrássemos dos donos do dinheiro? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU