20 Fevereiro 2019
Velhos mitos sobre finanças estão em xeque. Movimentos como o Green New Deal começam a mostrar que é possível apropriar-se da moeda para distribuir riqueza e garantir serviços públicos de excelência para todos.
A opinião é de Ann Pettifor, economista política, autora e oradora pública sobre o sistema econômico e financeiro global, sobre dinheiro, política monetária e sobre a economia do Reino Unido, publicada por Transnational Institute e reproduzida por Outras Palavras, 19-02-2019.
Foi apenas uma montagem de palavras, inseridas num vídeo no final de 2018. Logo as palavras se tornaram virais. Eles ajudaram a derrubar um membro do Partido Democrata favorável a Wall Street preparado para ser o próximo líder do Congresso dos EUA. Foram proferidos por Alexandria Ocasio-Cortez.
É uma disputa de pessoas versus dinheiro. Nós temos pessoas. Eles têm dinheiro. Uma Nova York para muitos é possível — e não são necessários cem anos. É preciso coragem política.
Ela estava certa. Não foram precisos cem anos. Bastaram um verão, coragem política, uma grande ideia — o Green New Deal – e duro. Uma nova ordem econômica subordinaria o sistema financeiro aos interesses da sociedade e do ecossistema, e ajudaria a afastar a economia de seu vício em combustíveis fósseis, argumentou Alejandria.
A grande ideia, sua coragem e trabalho duro eram tudo o que era preciso para aproveitar o poder latente: o poder do povo do Bronx.
Sua história irá sustentar o tema que se segue. O poder latente e inexplorado dos cidadãos — em países com sistemas de tributação sólidos — para responsabilizar as elites financeiras e implementar um Green New Deal. Pode ser usado para transformar a correlação de forças entre a sociedade e o setor financeiro privado. Este poder social continua desaproveitado. A classe dominante e endinheirada o reprime. Mas ele também é reprimido pela visão estreita e míope que nós, e nossos políticos, temos sobre poder econômico potencial dos cidadãos.
Para aproveitar o poder dos cidadãos é importante compreender que os contribuintes possuem capacidade de ação [orig: “agency“] sobre os mercados financeiros globais. Em todo o mundo, os contribuintes subsidiam, estimulam e enriquecem centros de poder financeiro como os da Wall Street e da City de Londres.
Os salvamentos de grandes bancos após a Grande Crise Financeira demonstraram que os cidadãos e suas instituições financiadas pelo poder público têm o poder de proteger os rentistas do capitalismo financeirizado da disciplina do “livre mercado”. Graças ao apoio e poder de fogo fornecidos por milhões de cidadãos honestos, os bancos centrais empregaram imenso poder financeiro e resgataram o sistema bancário globalizado — resultando em uma cascata de desalavancagem da dívida que poderia ter contraído a oferta monetária, o crédito e a atividade econômica e aprofundado a crise.
Graças aos contribuintes os banqueiros centrais preveniram outra Grande Depressão. Foi um grande poder empregado em nome dos cidadãos, embora sem sua autorização – ou mesmo seu conhecimento.
Para compreender e empregar esse poder financeiro no interesse da sociedade e da natureza, os cidadãos precisam entender que este poder era e é, em última instância, nosso. É o poder latente, não utilizado pelos cidadãos para defender o interesse público, mas pelos tecnocratas para defender os interesses da riqueza privada.
A razão de nossa impotência política pode ser encontrada na névoa e no mistério que cercam a criação do dinheiro e a operação do sistema monetário. Graças à negligência dos economistas em relação ao dinheiro, às dívidas e aos serviços bancários, há uma grande quantidade de mal-entendidos e confusão sobre dinheiro e o sistema financeiro.
Os argumentos giram em torno de se dinheiro é criado a partir do nada — ou se ouro ou bitcoin são dinheiro real. Se banqueiros e/ou governos podem simplesmente imprimir dinheiro ad infinitum. Ou se há limites para a impressão de dinheiro. A ignorância e a confusão provavelmente não são por acaso. Isso ajuda a proteger o setor financeiro privado do exame público: “É para seu próprio bem”, para citar o lobo no conto de fadas.
As pessoas sensatas (incluindo o Banco da Inglaterra) concordam que o dinheiro, como Joseph Schumpeter explicou, nada mais é do que uma promessa de pagamento, como em “Eu prometo pagar ao portador”. Ou seja, o dinheiro é uma construção social, baseada na confiança ou promessas de pagamento e sustentada pela lei.
Quando alguém solicita um empréstimo, o dinheiro não está no banco. Em vez disso, os bancos comerciais licenciados “criam” dinheiro toda vez que um tomador de empréstimo promete pagar. Eles abrem o crédito digitando números em um computador e (digitalmente) depositando fundos na conta do tomador. Este promete devolver o dinheiro criado pelo banqueiro. Como garantia, o mutuário oferece bens (“colateriais”), em linguagem financeira, assina um contrato e concorda em pagar juros sobre o empréstimo.
Para que a confiança no negócio seja sustentada, as instituições que criam dinheiro (bancos comerciais autorizados) são apoiados e regulados por um Banco Central com respaldo público, que emite a moeda. A regulação garante que a confiança entre o banqueiro e o devedor seja mantida.
Os banqueiros privados só podem criar dinheiro novo e operar efetivamente quando são parte de um sistema monetário — o que inclui um Banco Central. Embora os banqueiros comerciais possam criar digitalmente dinheiro novo a pedido de um tomador de empréstimo, eles não podem imprimir moeda. Apenas o Banco Central pode fazer isso. O grande poder do Banco Central é emitir a moeda — dólar, euro, yuan, real — em que o dinheiro novo é criado. E para ajudar a determinar o valor da moeda.
Esse poder só pode ser exercido pelos bancos centrais por causa do colateral que sustenta a moeda que eles criam. Essa garantia é composta pelas receitas fiscais dos cidadãos. Quanto mais contribuintes contribuírem com a moeda, mais sólido o sistema de cobrança de impostos, maior será o valor da moeda.
Esta noção fica mais clara se compararmos a garantia que sustenta o Federal Reserve dos EUA com o do Malawi. O banco central do Malawi, como o Federal Reserve, emite uma moeda. Mas o Malawi tem muito menos contribuintes e poder arrecadatório do que os EUA.
Graças, em grande medida, ao colonialismo e às políticas do FMI, o Malawi também carece de instituições públicas importantes: um banco central independente; um sistema sólido de coleta de impostos; um sistema para fazer cumprir contratos ou promessas de pagamento (justiça civil criminal); e um sistema contábil bem regulado para avaliar ativos e passivos. Consequentemente, a moeda do Malawi — o kwacha — tem pouco valor comparado ao dólar.
Ainda pior: devido à ausência ou fraqueza das instituições públicas, o Malawi depende do dinheiro de outras pessoas — obtido através de outros sistemas monetários. O acesso a sistemas monetários estrangeiros assume principalmente a forma de empréstimos em dólares, libras esterlinas ou ienes – que incluem condições. Embora parte do dinheiro possa beneficiar o povo do Malawi, o custo do pagamento a instituições financeiras estrangeiras invariavelmente invalida os recursos financeiros da nação, seus ativos humanos e ecológicos.
É a falta da autonomia monetária proporcionada por instituições públicas sólidas, incluindo um sistema de arrecadação de impostos, que torna cidadãos em países como o Malawi relativamente sem poder e vulneráveis a credores estrangeiros predatórios. Isso também explica como e por que os países pobres continuam dependentes e subordinados aos países ricos.
Lamentavelmente, o FMI e o Banco Mundial desencorajam ativamente os países de baixa renda a investir nas instituições públicas vitais essenciais a um sistema monetário sólido — que restauraria sua autonomia financeira e econômica.
Cidadãos em países com instituições monetárias e sistemas tributários sólidos possuem um considerável poder potencial e capacidade de agir sobre o sistema financeiro globalizado.
Entender como os impostos sustentam o valor da moeda de uma nação para financiadores privados é um primeiro passo para entender o poder potencial dos cidadãos. Os especuladores e rentistas financeiros globais preferem negociar em moedas sustentadas por instituições públicas estáveis, financiadas e apoiadas por milhões de contribuintes. Embora, é claro, haja negociação em muitas moedas de mercados emergentes, os especuladores preferem manter dólares, libras esterlinas, euros e ienes. Estas moedas são apoiadas por economias fortes. Mas seu valor é, em última análise, derivado dos contribuintes — dispostos, honestos e cumpridores da lei — que fornecem as receitas que sustentam a moeda.
Os contribuintes não apenas pagam impostos diretos e indiretos todos os dias, meses ou anos. Como novos contribuintes nascem todos os dias, os cidadãos pagarão taxas por décadas no futuro. Se nossas instituições estatais financiadas publicamente permanecerem estáveis, os recém-nascidos de amanhã continuarão pagando impostos no futuro.
Para entender a duração do poder do contribuinte, vale a rever a história do sistema financeiro britânico. Em 1748, o governo britânico emitiu bônus perpétuos, que eram dívidas sem data de vencimento para pagamento, mas que pagavam juros aos credores a 3% ao ano. O governo não teve dificuldade em vender esses títulos (conhecidos como “consols“) ao público. A confiança em que o governo britânico cumpriria suas obrigações de pagar juros sobre os empréstimos de modo perpétuo – era alta. Essa confiança foi justificada, já que os juros eram pagos a cada ano até que finalmente foram resgatados, em 2015.
Nenhum outro ativo tem esse tipo de suporte seguro e de longo prazo.
A ambiciosa e manipuladora Becky Sharp, em Feira das Vaidades, um romance satírico britânico do século XIX, escrito por William Thackeray, desejou que pudesse trocar minha posição na sociedade e todas as minhas relações por uma quantia confortável em consoles de três por centos … pois assim foi [escreveu Thackeray] que Becky sentiu a vaidade dos assuntos humanos, e era naqueles títulos que ela teria gostado lançar âncora.
A inveja de Becky derivava da segurança concedida àqueles com fundos suficientes para investir na dívida do governo britânico – conhecida então, e por vários séculos, como Three Per Cent Consols (abreviação de dívida consolidada, ou consolidated). Com uma herança 10 mil libras, mulheres jovens e ricas do século XIX podiam viver com a quantia de 300 libras por ano; 25 mil libras gerariam uma confortável renda de £ 750 por ano.
A dívida pública é um ativo que gera renda — assim como um imóvel comprado com o objetivo de gerar aluguel para seu dono. Mas enquanto um investidor que compra para uma casa para locação tem que suar para manter, anunciar e alugar o ativo, a dívida ganha renda sem esforço para os ricos e para os especuladores. Faz isso pagando juros, a uma determinada porcentagem por ano.
Ao contrário de uma propriedade de um investidor, a dívida é leve como o ar, intangível, invisível. A única evidência de sua existência é encontrada em entradas de banco de dados, números em um balanço ou em palavras em um “título de portador”.
As diferenças não terminam aí. Um edifício ou propriedade estão sujeitos às leis da física. Pode envelhecer, desmoronar ou ser destruído. Clubes de futebol são ótimos ativos — porque os torcedores se comprometem a longo prazo, e de bom grado e regularmente pagam “rendas” ao dono do ativo, pelo privilégio de assistir a sua equipe ou pela compra de uma camiseta do clube. Mas os clubes podem perder valor caindo nas tabelas de classificação. Obras de arte — digamos, uma pintura de Rembrandt — são ativos com maior longevidade, mas também tendem a se deteriorar e, de qualquer forma, estão sujeitas aos caprichos da moda.
Não é assim com os títulos do governo de países como a Grã-Bretanha. Enquanto as dívidas soberanas podem ser inadimplentes, as dívidas seguras do governo não apodrecem com a idade, como o professor Frederick Soddy (1877-1956) explicou uma vez. Isso porque as dívidas não estão sujeitas às leis da termodinâmica, mas às leis da matemática. Como tal, a dívida produz, sem esforço, renda para os aplicadores, a taxas matemáticas. E se a dívida é a dívida pública segura de nações como a Grã-Bretanha, os EUA ou o Japão, isso pode prosseguir por longos período de tempo.
O governo inglês tem honrado suas obrigações de dívida desde 1694, sem falhas. Em um mundo de fluxos de capitais globalizados, nos quais o capital flui de uma parte do mundo para outra, o preço dos títulos do governo britânico pode subir e cair, mas sua segurança e longevidade nunca estão em questão. Isso ocorre porque o sistema é administrado pela autoridade pública, não abandonado à “mão invisível do mercado” — mas principalmente porque a maioria dos cidadãos britânicos paga regularmente e fielmente os impostos.
E para entender por que a segurança é uma questão tão importante para o setor financeiro privado, lembre-se disso: o sistema financeiro global congelou em agosto de 2007 e depois entrou em colapso. Não porque os financistas ficaram sem dinheiro. Não por causa de uma corrida aos bancos. Mas porque todos no setor — todos — perderam a confiança no valor dos ativos usados como garantia, particularmente o valor das hipotecas de propriedades sub-prime nos balanços dos bancos.
Por que isso importava? Porque o valor dos ativos sub-prime (hipotecas) tinha sido usado para alavancar quantidades excessivas de financiamento adicional através de empréstimos. Se o ativo ou a garantia contra a qual o empréstimo tinha sido oferecido não valesse nada — então a dívida provavelmente não seria paga com a venda da garantia prometida.
O colapso da confiança nos valores dos ativos (ou colaterais) levou ao colapso do sistema financeiro globalizado.
E é aí que nós, cidadãos pagadores de impostos, entramos. A garantia do cidadão, na forma de receitas fiscais, não entrou em colapso na crise. Em vez disso, as garantias públicas mantinham a autoridade dos bancos centrais e davam-lhes o poder de emitir nova moeda (liquidez) em troca de ativos de banqueiros privados. O processo foi chamado de Quantitative Easing (QE).
O apoio dos contribuintes permitiu que os banqueiros centrais socorressem Wall Street e a City de Londres. A segurança e a solidez de nossos impostos sustentaram o valor das moedas, apesar da crise. Isso foi mais evidente nos EUA. Mesmo quando a economia global despencou e a turbulência financeira aumentou, o valor do dólar subiu.
Os bancos centrais usaram a garantia oferecida pelos cidadãos para alavancar grandes quantidades de dinheiro — cerca de US$ 16 trilhões – para socorrer o sistema bancário global.
Para entender inteiramente o poder exercido pelos banqueiros centrais é importante entender que cada vez que o governo solicita um empréstimo ou emite um título, ele cria uma dívida – uma obrigação (passivo) — para o governo. Ao mesmo tempo, ao contrair empréstimos, o governo cria um ativo financeiro valioso para o setor privado.
Os governos regularmente (uma ou duas vezes por mês) convidam os financiadores privados a financiar seus títulos ou empréstimos, em troca de promessas de pagar juros anualmente, e reembolsar o principal integralmente ao final do prazo do empréstimo.
Esse processo na verdade não é diferente do de uma mulher contraindo uma hipoteca. Ela convida um banqueiro a aceitar seu “bônus” — a promessa de repagamento — respalda esta atitude com “colaterais” (as garantias) e se compromete a pagar juros anualmente e o principal integralmente ao fim do prazo do empréstimo.
Uma vez que o banqueiro comercial tenha concedido o financiamento e aceitado o bônus, a mulher tem uma obrigação (passivo) – de pagá-lo. O banqueiro, por outro lado, tem um “ativo” – o bônus ou hipoteca da mulher. Isso é valioso para o banco privado porque, ao contrário do ouro, o empréstimo gera renda para cada ano em que a mulher paga juros. É provavelmente amparado pela garantia do seu apartamento existente. Além disso, o principal em seu empréstimo provavelmente valerá mais em termos reais quando for finalmente pago.
Os governos levantam financiamento tanto do setor financeiro privado, quanto de um banco central, exatamente da mesma maneira que um devedor comum levanta dinheiro de um banco comercial. O governo promete pagar juros e oferece garantias. A diferença entre o título de um governo e a hipoteca da mulher é que um título emitido por um governo com um bom histórico de pagamento é um ativo mais valioso. Como tal, serve como garantia vital para o sistema financeiro privado.
A hipoteca da mulher também é um ativo, mas será menos valiosa porque ela pode não ter construído um bom histórico de crédito, e em alguns casos pode ser respaldada apenas uma renda (a sua própria). O Estado, ao contrário, é respaladado por um fluxo de receita de milhões de contribuintes.
Isso explica por que os títulos do governo (ou dívida do governo) são ativos extremamente valiosos para o setor financeiro privado. Eles são seguros e confiáveis. Eles geram renda (pagamento de juros) regularmente. A dívida como garantia ou ativo pode ser usada para emprestar (ou “alavancar”) financiamento adicional.
Assim como o título de uma propriedade permite que um proprietário a re-hipoteque e obtenha quantias adicionais, garantidas por essa propriedade, ativos financeiros seguros e valiosos agem como garantia para o levantar novos financiamentos. Dinheiro recém-emprestado, garantido pelo fluxo de pagamentos de juros decorrentes da dívida, pode então ser investido ou emprestado a uma taxa de retorno mais alta.
Para entender a alavancagem, pense em uma proprietária que toma 80.000 libras emprestadas com apenas £ 20.000 em capital. Ela tem um índice de alavancagem de quatro. Em outras palavras, ela tomou empresto quatro vezes o capital de seu ativo.
No momento de sua quebra, dizia-se que o banco Lehman Brothers possuía um índice de alavancagem de 44. É como ter um ativo que rende 10.000 libras por ano e, em seguida, contratar um empréstimo de 440.000 libras para fazer uma farra de apostas. De acordo com o Banco de Compensações Internacionais (BIS)k for International Settlements, os bancos de investimento de Wall Street começaram com um índice de alavancagem de 22 em 1990, que subiu para “a vertiginosa altura de 48 no pico”
A alavancagem nessa escala é mais facilmente alcançada contra garantias que são tão seguras quanto a dívida pública. A escala de riqueza gerada seria inimaginável para um Creso dos dias de hoje.
Há outro aspecto para garantias públicas seguras que não é amplamente compreendido. Trata-se das formas como são usadas no sistema financeiro paralelo (ou shadow banking), que opera na “estratosfera” financeira, além do alcance dos estados e das regulações democráticas.
As entidades para-bancárias não regulamentadas, que concentram as economias do mundo (por exemplo, fundos de gestão de ativos, fundos de pensão, companhias de seguros) mantêm imensas quantidades de dinheiro. Uma delas — a BlackRock, por exemplo — tem US$ 6 trilhões em ativos.
Essas quantias não podem ser depositadas com segurança em um banco tradicional, onde apenas uma quantia limitada é garantida pelos governos. Para proteger o valor do dinheiro, um fundo de gestão de ativos poderá, por exemplo, fazer um empréstimo temporário de dinheiro a outro que dele necessite, em troca de garantia. Essa bolsa é conhecida como um acordo de recompra ou recompra.
Como argumentou Daniela Gabor, os mercados de recompra dos EUA e da Europa, os maiores do mundo, são construídos sobre dívidas de governos. Em outras palavras, “o Estado tornou-se uma fábrica de garantia para o sistema financeiro paralelo (Shadow banking)”
Os riscos deste mercado não regulamentado para o sistema financeiro global são assustadores. Uma das razões é que, enquanto alguém operando no mundo real — digamos, um proprietário de imóvel — pode re-hipotecar apenas uma vez seu ativo ou propriedade, os gestores de bancos que atuam no sistema paralelo não regulamentado podem usar uma única unidade de garantia para re-alavancar um sem número de vezes. Manmohan Singh, do FMI, estimou que, no final de 2007, as garantias eram usadas aproximadamente três vezes para alavancar empréstimos adicionais em mercados especulativos.
É como usar o valor de um único ativo — a propriedade de alguém — para garantir empréstimos adicionais de três bancos diferentes. No mundo real da regulação financeira, os proprietários não podem fazer isso.
Se quisermos entender a história de como os ricos se tornaram imensamente, grotescamente, mais ricos em rendas capturadas, enquanto os rendimentos médios da maioria caíram em termos reais, devemos olhar para os índices de alavancagem com base em ativos públicos nos setores bancário real e no shadow banking.
Em suma, a capacidade de drenar regularmente um governo fazendo-o pagar juros e usar o ativo da dívida pública para alavancar financiamentos adicionais é a razão pela qual os bancos, especuladores financeiros, seguradoras, empresas de gestão de ativos, empresas de private equity e fundos de pensão aumentaram maciçamente seus ganhos de capital. É também por isso que aos títulos da dívida pública jamais faltam demanda. Os financiadores privados precisam muito deles.
A Grande Crise Financeira (GCF) desencadeou uma fuga da dívida privada em direção à segurança proporcionada pela dívida pública — especialmente as mais seguras: a britânica, a europeia e a norte-americana.
Este enorme choque financeiro levou a uma contração maciça da oferta monetária global e ameaçou a deflação — uma queda generalizada nos preços, que por sua vez levaria a falências, desemprego e cortes salariais.
Para neutralizar essa ameaça, os bancos centrais — em nosso nome — expandiram seus balanços e, em troca de garantias recebidas do sistema financeiro privado (muitas das quais eram “tóxicas”), forneceram a este níveis extraordinários de novo crédito ou liquidez. No processo, os tecnocratas do funcionalismo público nos bancos centrais protegeram os participantes do livre mercado da bancarrota e da disciplina do mercado livre — causando um golpe considerável na ideologia liberal.
O choque da deflação exigiu uma resposta fiscal maciça. Houve uma expansão fiscal inicial, mas limitada, que levou ao que o banco Credit Suisse chamou de “fluxo de garantia segura que fez com que o dinheiro público (Treasuries, títulos lastreados em hipotecas, agências do governo dos EUA) subisse, compensando totalmente a contração no “dinheiro sombra” privado (obrigações de empresas, títulos garantidos por ativos e hipotecas não relacionadas com agências públicas).
Como resultado da demanda em pânico por dívida pública, o preço dos títulos do governo subiu e, devido à maneira como o mercado de títulos opera, o rendimento (taxa de juros) dos títulos caiu drasticamente. A demanda por dívida pública aliviou muito os custos de empréstimos (juros) do governo.
Rapidamente, porém, políticos e autoridades do tesouro dos governos, aplaudidos por economistas ortodoxos, think tanks de direita e pela mídia, voltaram à teoria neoliberal ou ordoliberal e impuseram contração fiscal — ou “austeridade”. O investimento público — gastos do governo — foi cortado ou impedido de aumentar.
Esses padrões duplos – a expansão das finanças para o setor financeiro privado e a contração para o setor público — são intrínsecos à economia ortodoxa, mas raramente desafiados pela profissão de economista.
Como resultado, a produção de garantias do governo (dívida pública) caiu.
Desde 2010, a “austeridade”, simultânea aos congelamentos e cortes de salários, agravou a crise. O efeito dessa política econômica atrasada foi aumentar o emprego inseguro, de baixa remuneração, pouco qualificado e improdutivo, ao mesmo tempo em que reduzia os salários em todos os setores.
Nos EUA, o estímulo inicial determinado por Obama evitou a depressão mas foi insuficiente para restaurar a estabilidade a longo prazo. Ao invés disso, houve severos cortes de gastos do governo estadual e local, não houve socorro às famílias que haviam hipotecado suas casas e os salários caíram em termos reais. Entre 2009 e 2014, os salários ajustados à inflação nos EUA ficaram estacionados ou decresceram, após uma série de decisões políticas. Mais recentemente, os salários reais cresceram, mas as taxas de crescimento para a recuperação como um todo ainda estão muito atrás das taxas anuais de 2,0 a 2,2% de 1947 a 1979.
Como resultado da austeridade, a emissão de dívida pública segura diminuiu. Por que isso deveria importar? Porque a baixa oferta de dívida do governo tende a impulsionar (na verdade, “deslocar para”) a criação de dívida privada insegura, ou ativos. Esses ativos privados inseguros são usados pelo sistema bancário e pelo sistema bancário “das sombras” para expandir os empréstimos e o crédito. Os bancos centrais preocupam-se, com razão, com o fato de que essa expansão do crédito sobre ativos desregulamentados e desregulados provavelmente levará a outra crise financeira.
Entender o valor da dívida pública muda nossa visão sobre o assunto. Como um empréstimo obtido para um projeto que criará emprego e gerará renda, a dívida pública, se investida em atividade produtiva, é uma coisa boa. Gerará renda. Não apenas salários para os empregados; não apenas lucros para o setor privado, quando os salários são gastos em seus bens e serviços; mas também receitas fiscais. Impostos sobre as rendas das corporações e dos consumidores, usados pelo governo para pagar a dívida.
Os empréstimos e os gastos públicos são especialmente importantes depois de uma crise, quando o setor privado está fraco e não tem confiança para fazer dívidas, investir e gastar. No entanto, a maioria dos economistas das escolas de Chicago vê a dívida pública como uma ameaça à economia. Governos que não podem “equilibrar as contas” são considerados incompetentes e perseguidos pela mídia
A hostilidade à dívida pública varia, mas o medo está embutido na psiqué alemã, porque a palavra para dívida – “Schuld” – é o mesmo que a palavra para “culpa”. A frase de São Mateus — “perdoa-nos as nossas dívidas, pois perdoamos aos nossos devedores” — foi interpretado por São Lucas como “perdoa os nossos pecados como perdoamos aqueles que pecam contra nós”.
Culpa, pecado e dívida pública estão profundamente conectados, mas apenas nas mentes dos economistas, jornalistas e do público. Dívida torna-se algo bem diferente nas mentes dos financistas e rentistas. Para Wall Street e a City de Londres, a dívida pública segura da Grã-Bretanha, da Europa e dos EUA é um presente verdadeiramente impressionante e fenomenal.
Nunca é suficiente para eles.
Enquanto não compreendermos plenamente a importância da dívida pública para o setor financeiro, as corporações imensamente abastadas e globalizadas continuarão a extrair parasitariamente renda de ativos públicos; a desigualdade mundial continuará a aumentar; e nós, os muitos, ficaremos relativamente mais pobres e sem poder.
Quando um número suficiente de pessoas vier a entender esse poder oculto, descobriremos que outro mundo é realmente possível.
No coração da ideologia neoliberal — ideias compartilhadas por aqueles que o historiador econômico Quinn Slobodian define como “globalistas” — está a crença de que a participação do Estado na economia deve encolher. Além disso, os mercados privados de capital devem permanecer “livres” para vagar globalmente e sem restrições. Em outras palavras, os mercados de capitais globalizados devem ter a “liberdade” de se desvincular dos Estados do mundo e da regulação democrática.
Como explicado acima, a profunda ironia da obsessão ideológica com os mercados de capital auto-regulados, “austeridade” e o encolhimento do Estado é que os mercados financeiros privados não podem funcionar sem o apoio dos governos, seus contribuintes e a segurança da dívida pública.
O “rato tímido”, que é o setor financeiro privado, não pode operar sem a proteção do “leão que ruge”, que é o setor público, para citar Mariana Mazzucato.
Dado que os ativos públicos seguros são tão fundamentais para a estabilidade do sistema financeiro privado, por que políticos e funcionários de direita querem reduzir sua oferta? A resposta só pode ser: a ignorância, alimentada pela ideologia oposta ao papel coletivo do Estado.
Mas e a da esquerda? A Grande Crise Financeira foi recebida com choque e descrença à esquerda. Muitos economistas progressistas concentraram-se na economia doméstica e tangível — Estado, mercados, trabalho e comércio –, ignorando amplamente a economia intangível, o setor financeiro globalizado.
E muitos abraçaram a “globalização” — a capacidade de viajar amplamente e atrair dinheiro em qualquer parte do globo; a facilidade com que a globalização facilitou a importação de frutas e vegetais exóticos; smartphones baratos; e os presentinhos oferecidos pela tecnologia no sistema globalizado. Tudo isso foi recebido com entusiasmo por partidos social-democratas, que fecharam os olhos a um sistema financeiro global e desregulamentado que facilitou essas atividades, mas também criou a ameaça de desastre sistêmico.
Como resultado, a esquerda não teve uma resposta coerente ao colapso dos mercados de capitais globalizados. Durante todo o período de “austeridade”, a esquerda — tanto nos EUA quanto na Europa — viu-se em desvantagem, na defensiva diante dos governos social-democratas que haviam acumulado dívidas como resultado da Grande Crise Financeira. Os governos social-democratas endossaram o Quantitative Easing para os banqueiros e “austeridade” para a maioria. Essa abordagem garantiu sua queda e até a extinção. (O Partido Socialista Francês não existe mais como uma força política ou organização, e foi obrigado a vender sua própria sede.)
Esses fracassos enfraqueceram a capacidade da esquerda de argumentar que, em um momento de fracasso catastrófico da economia privada, o investimento público em empregos era essencial para restaurar a estabilidade social, política e econômica. Em vez disso, subsídios e ativos apoiados pelos contribuintes foram implantados pelos bancos centrais via QE para proteger os lucros privados e os ganhos de capital.
Não é de se admirar que a população tenha se revoltado.
Um primeiro dos muitos passos que devem ser dados para transformar a economia é a compreensão. As pessoas não podem agir para transformar o que não entendem.
A compreensão de como os contribuintes garantem e endossam as atividades do setor financeiro privado globalizado e desregulamentado deve ser mais difundida. Só então poderemos começar a exigir “termos e condições” para subsídios e garantias públicas — e usar esse poder para regular e subordinar o setor financeiro globalizado aos interesses da sociedade como um todo. Exigir que os ativos financeiros públicos sejam usados para benefício público, não privado.
Esse entendimento é fundamental se quisermos responder à maior ameaça à segurança que a humanidade enfrenta: o colapso climático.
Armados de compreensão, precisaremos de um plano. O New Deal Verde é esse plano.
A genialidade do New Deal Verde de Alexandria Ocasio Cortez é que ele fornece um plano amplo e abrangente para transformar a economia dos EUA e enfrentar o colapso do clima. Se os esforços do Partido Democrata norte-americano levarem a uma campanha internacionalmente coordenada para implementá-lo, o plano tem o potencial de transformar muitas economias em todo o mundo e garantir um planeta habitável no futuro.
Mas — e é um grande mas — um plano abrangente para a transformação econômica exigirá financiamento em grande escala, comparável ao de uma nação que está entrando em guerra. Nós sabemos que isso pode ser feito. Os governos sempre encontraram dinheiro para financiar guerras.
Em 1933, o plano do presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt — o New Deal — encontrou dinheiro para uma guerra contra o desemprego e a pobreza. Seu governo fez isso revertendo a economia neoliberal e implementando a teoria e as políticas monetárias keynesianas. Ao garantir que o sistema monetário e financeiro fosse administrado por autoridades públicas, e não privadas, seu governo levantou o financiamento necessário para tirar os EUA da catástrofe econômica da Grande Depressão. O New Deal de Roosevelt não apenas criou empregos e gerou renda nacional. Ele também abordou a catástrofe ecológica que foi o Dust Bowl, popularmente conhecido pelas enormes tempestades de areia.
A implementação do New Deal foi alcançada, em primeiro lugar, porque o governo de Roosevelt tinha uma compreensão clara da natureza do dinheiro e do sistema monetário com respaldo público. Mas seu sucesso em lidar com os interesses de Wall Street deveu-se à mobilização política, organização e ação. Roosevelt teve a coragem e o lastro político para confrontar e subordinar os interesses do Wall Street aos da sociedade e do meio ambiente.
Qualquer movimento internacional para um New Deal Verde terá que reunir a mesma coragem política em muitos países no mundo. Os ativistas terão que mobilizar, organizar e agir para superar a ideologia econômica que permite que os 1% enriqueçam incrivelmente com subsídios, salvamentos e garantias apoiados pelos contribuintes — enquanto negam recursos financeiros para investimentos públicos, transformação econômica e ecológica. Os ativistas terão que descobrir, e então implantar, seu poder latente para subordinar as finanças globais aos interesses da sociedade e do ecossistema.
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Para virar os bancos de cabeça para cima - Instituto Humanitas Unisinos - IHU