30 Mai 2019
"A compulsão bem-vinda da ficção pelo trabalho feminista em religião é o fruto do pensamento cuidadoso dessas estudiosas/ativistas, da escrita clara e dos profundos compromissos com o bem-estar do mundo a partir das mulheres", escreve Mary E. Hunt, teóloga feminista, cofundadora e codiretora da rede Women’s Alliance for Theology, Ethics and Ritual (WATER), com sede nos Estados Unidos, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 29-05-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Algumas das melhores teólogas feministas de hoje estão escrevendo ficção. Não me refiro a suas análises críticas e eruditas de textos e conceitos como romances. Em vez disso, eu alerto os leitores para os seus novos excursus na literatura. Eu fiquei imaginando por que elas adotaram esse gênero. Então, perguntei a elas.
As teólogas Mary Judith Ress, Ivone Gebara e Susan Brooks Thistlethwaite estão produzindo ficções convincentes, relacionadas ou não relacionadas ao seu trabalho teológico principal. Junte-se a mim para um tour rápido e encomende os seus exemplares agora mesmo daquelas que eu considero como leituras sólidas e que levam a virar as páginas (impressas ou na tela) com importantes intuições sem notas de rodapé.
Ress é uma estadunidense que viveu desde os anos 1970 em El Salvador, Peru e Chile, principalmente como associada Maryknoll. Ela foi cofundadora do coletivo de teologia/espiritualidade ecofeminista Con-spirando, que publicava uma revista amplamente lida.
“Ecofeminismo na América Latina”, em tradução livre, de Mary Judith Res, 256 páginas, Ed. Orbis Books (Imagem: Divulgação)
Sua obra teológica, especialmente “Ecofeminism in Latin America”, estabeleceu a sua voz única – sendo ainda uma espécie de “gringa”, vivendo em Santiago do Chile, mas também uma feminista global ativamente engajada nas lutas latino-americanas pela vida.
Mas por que uma ficção agora? Quando as quatro religiosas foram assassinadas em El Salvador em 1980, Ress disse: “Eu fiquei traumatizada – Dorothy Kazel me substituiu na equipe da missão de Cleveland. Eu poderia facilmente estar dirigido a van com Jean para pegar Ita e Maura. (...) Eu também conhecia Ita aqui no Chile antes de ela ir para El Salvador”.
Assombrada por suas profundas conexões com mulheres como ela, ela decidiu escrever as histórias internas dessas mulheres. A ficção era o veículo perfeito para transmitir a sua fé, seus amores, perdas, fracassos e compromissos duradouros. Como ela me contou recentemente, “eu admito que estou em uma cruzada para levantar essas freiras incríveis que trabalham nas trincheiras. (...) Elas são as verdadeiras heroínas da Igreja Católica”.
“Flores de sangue”, em tradução livre, de Mary Judith Ress, 284 páginas, Ed. iUniverse (Imagem: Divulgação)
Então vieram à tona a Ir. Meg e companhia no romance de estreia de Ress, “Blood Flowers”, que cai como uma luva enquanto surgem as histórias de política suja, assassinatos e desastres naturais.
“Deuses diferentes”, em tradução livre, de Mary Judith Ress, 354 páginas, Ed. iUniverse (Imagem: Divulgação)
A Ir. Mary Clare, que administra um abrigo para mulheres nos EUA, ganha vida na segunda e complexa obra de ficção de Ress, “Different Gods”. Um estranho homem que sofre de afasia chega à cena se autoproclamando São Francisco. Os esforços dela para ajudá-lo a encontrar seu rumo envolvem franciscanos, o primo gay de Mary Clare que é enfermeiro e vários membros da sua comunidade, nenhum dos quais entende todas as camadas da vida do visitante. Juntos, eles conseguem ajudá-lo e reúnem a sua sabedoria.
Há visões de mundo concorrentes em jogo, explica Ress, “lutas com o fato de ser fiel às crenças cristãs progressistas, mas mesmo assim tradicionais, versus a sedução da sabedoria xamânica há muito esquecida, praticada pelos povos indígenas da floresta amazônica”. Uma narrativa densa, em vez de uma explicação complicada, coloca tudo isso em relevo.
Não vou estragar a leitura, exceto para dizer que duas pessoas que eu conheço ficaram muitas horas acordadas antes de dormir para descobrir o que aconteceu e por quê. Não me lembro da última vez que eu fiz isso com um livro teológico.
“Travessias e acenos”, de Ivone Gebara, 93 páginas, Edições Terceira Via (Imagem: Divulgação)
A teóloga feminista brasileira Ivone Gebara acaba de publicar sua primeira obra de ficção, “Travessias e Acenos”. Tão elegantemente escrita quanto a sua teologia, esse romance homenageia a memória de suas ancestrais sírias que se mudaram para o Brasil. Elas começaram uma nova vida, aprenderam uma nova língua, usaram vassouras e máquinas de costura para manterem a casa e ganharem a vida, e ainda faziam as comidas de sua terra natal. Essa é a história de tantas mulheres imigrantes em todo o mundo.
Assim como Ress, a ficção para Gebara é um veículo melhor do que a teologia ou mesmo a história, porque admite toda a gama de experiências humanas. Como Gebara me disse recentemente, sua escrita é um modo de “mostrar como a humanidade é uma imensa mistura de vidas, tradições, medos e pequenas alegrias”.
Ela diz: “As nossas origens são comuns e diferentes. Há uma beleza em tudo isso que só pode ser captada na poesia ou em um romance”.
As memórias de infância dessas mulheres fundamentam os personagens. Ao esboçá-los, literalmente, “eu não tinha nenhuma intenção de fazer teologia. (...) O que eu queria fazer era viver com elas na intimidade da minha memória, escutá-las em mim e chegar a me conhecer melhor nelas. Escrever romances é um modo de encontrar pessoas reais na própria história, e não apenas ideias”.
Eu podia sentir o cheiro dos temperos sírios enquanto lidava com a língua portuguesa. Um editor inteligente fará uma bela tradução em inglês em breve. Fiquei fascinada com o texto e cativada pelos desenhos das mulheres e de suas lutas. Gebara continua escrevendo teologia, graças a Deus, mas espero que essa pérola seja um presságio de mais ficções no futuro.
“Onde as coisas afogadas vivem”, em tradução livre, de Susan Brooks Thistlethwaite, 202 páginas, Ed. Resource Publications (Imagem: Divulgação)
Professora de Teologia, ministra e ex-diretora do Seminário Teológico de Chicago, Susan Brooks Thistlethwaite acrescentou os mistérios de assassinatos ao seu corpus teológico de 14 livros próprios ou organizados. Muito mais do que uma maneira inteligente de fazer os alunos refletirem sobre questões éticas, esses livros são algo real em seu próprio gênero.
Sua heroína, Kristin Ginelli, é uma ex-policial que se tornou professora de filosofia e que usa seu considerável privilégio para acabar com as injustiças. Arriscando a própria vida, ela resolve o mistério de “Where Drowned Things Live”. Nesse processo, ela escava a violência sexual, a opressão racial/étnica, o fundamentalismo cristão e o sexismo flagrante que subjaz ao assassinato de uma de suas alunas coreanas.
Sem uma frase didática em suas capas, esse livro poderia ser o texto central para um seminário de pós-graduação em ética. Os estudantes ficariam colados como eu em uma história surpreendente, com uma mensagem multifacetada.
“Cada maldade”, em tradução livre, de Susan Brooks Thistlethwaite, 252 páginas, Ed. Resource Publications (Imagem: Divulgação)
As novas aventuras de Kristin se desdobram em “Every Wickedness”. Outra mulher está morta pelo que pode não ter sido uma causa acidental. Kristin trabalha nisso. Thistlethwaite acrescenta questões de discussão a esse livro, que aponta para o seu trabalho ao longo de sua vida para acabar com a violência – a indústria do sexo, a crise dos opiáceos, a pobreza e a falta de moradia, as lutas eternas entre o bem e o mal.
Thistlethwaite explicou seu método para mim: “Eu escolhi escrever ficção de mistério pois, para mim, esse é um gênero eticamente satisfatório. (...) É possível criar um universo moral. (...) Enquanto coisas terríveis acontecem, esses atos são arrastados para a luz, e os perpetradores são detidos. Isso permite ao leitor o espaço psicológico para considerar como a violência ocorre e por que ela é tão frequentemente oculta”.
Ela tem um terceiro volume no prelo que eu planejo pré-encomendar.
“O bom padre”, em tradução livre, de Tina Beattie, Ed. Matador (Imagem: Divulgação)
A compulsão bem-vinda da ficção pelo trabalho feminista em religião é o fruto do pensamento cuidadoso dessas estudiosas/ativistas, da escrita clara e dos profundos compromissos com o bem-estar do mundo a partir das mulheres. Certamente, isso vai inspirar mais dessa criatividade. Por exemplo, a teóloga britânica Tina Beattie ficcionalizou as complexidades do abuso em seu romance “The Good Priest”. Ele já está na minha lista. E imaginem o que está na minha própria agenda de escrita...
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Teólogas feministas levam sua sabedoria para a ficção. Artigo de Mary E. Hunt - Instituto Humanitas Unisinos - IHU