28 Mai 2019
Ao ordenar à Google sabotar a Huawei, ele revela um Ocidente rancoroso e dominador — mas abre um flanco. Chineses recorrerão ao software livre. E se resgatarem a lógica de circulação de saberes que marcou a internet em seu início?
A reportagem é publicada por Pablo Romero, publicada por Público, e reproduzida por Outras Palavras, 24-05-2019. A tradução é de Rôney Rodrigues.
A guerra comercial entre EUA e China está se convertendo em escalada. Uma das últimas consequências foi a suspensão, pelo Google, de uma significativa parte de seu negócio com a Huawei, depois da inclusão dessa companhia na lista estadunidense de empresas que representariam uma “ameaça à segurança nacional”. Prova-se, mais uma vez, como é arriscado deixar nas mãos de empresas de outros países elementos essenciais de determinado produto, como o “software”: uma decisão da Casa Branca pode prejudicar cidadão de todo o mundo.
Essa decisão do governo Trump, que ataca diretamente a próspera divisão de celulares da fabricante chinesa, presume que a Huawei perderá acesso à maioria dos “benefícios” do gigante estadunidense. Seus celulares, a partir de agora, deixarão de ter acesso ao Google Mobile Services, a plataforma que aglutina serviços como o Google Play Store (a “loja” de aplicativos), o Gmail, o aplicativo do Youtube e o navegador Chrome para celular: os novos telefones não poderão oferecer esses “apps”.
A empresa asiática, no entanto, ainda contará com acesso à versão livre do Android por meio de licenças de código aberto, disponíveis para quem quiser usá-las. Na verdade, a Huawei desenvolveu um sistema operativo derivado baseado no Android; a instalação desse sistema, que já não dependeria do Google em nada, poderia criar um mercado alternativo mundial: não nos esqueçamos que a companhia chinesa conseguiu colocar, no ano passado, em todo o mundo, nada menos que 200 milhões de dispositivos móveis.
“Se você depende de um provedor que está em um país e se submete a suas regras, e amanhã esse país se irrita com o seu por qualquer razão, você tem um problema”, comenta ao Público, em conversa por telefone, o advogado especializado em tecnologia David Maeztu.
O caso atual é o exemplo perfeito que mostra como depender de terceiros sediados em outros países pode se converter em uma vulnerabilidade para o negócio dos gigantes tecnológicos (entre muitos outros problemas), mas também como o “software livre” pode ser uma garantia contra a determinadas decisões políticas.
“O bom do ‘software livre’ é que companhias desenvolvem produtos próprios baseando-se no que outros já fizeram, ou seja, não há por que começar do zero e, além disso, todo esse trabalho contribui para a comunidade”, lembra o especialista já citado.
Efetivamente, o ponto forte do Android é que sua base é “software livre”, o que vai permitir a Huawei reagir melhor do que se tivesse que criar um sistema operativo do zero. “O que é bom para você se converte em algo bom para a comunidade, o que também amplia a padronização. Os sistemas tornam-se mais interoperacionais. Se amanhã um governo tomar decisão como a dos EUA, o impacto pode ser menor”.
A camada básica do Android conta com licenças Apache e GPL [ou seja, pode ser usada e modificada livremente], comenta Maeztu, que aponta o principal problema que a Huawei terá: ficar sem acesso aos aplicativos do Google. “Mas os celulares já funcionam sem eles”, afirma, e arrisca: “Imaginemos que um fabricante como a Huawei se meta com a distribuição”.
Ele prossegue: “O fato de a decisão de um país afetar os consumidores e cidadãos de outros países redefine as regras da governança global: os EUA podem obrigar a Google a executar determinadas ações pelo fato dela estar sediada em seu território”, argumenta Maeztu, que aponta: “Também deveríamos estar pensando em como avançar para fazermos sistemas mais abertos, e que a internet seja o que era: pessoas que espalhavam o conhecimento e a liberdade para usá-lo. Todo esse movimento pode significar, em um futuro não muito longe, a ruptura do monopólio ‘real’ que a Google exerce nos sistemas operativos móveis. E isso pode ser uma boa notícia”.
Para o advogado especializado em internet e doutor em filosofia Javier de la Cueva, um histórico defensor do “software livre”, no caso da Google e Huawei “existe uma questão de soberania tecnológica que está intimamente ligada à liberdade de concorrência: no momento em que vem de fora uma disposição norte-americana que estabelece uma proibição da concorrência precisamente por meio de um código, o que está sendo feito é beneficiar uma série de produtos em detrimento de outros”.
“Como sempre, a pergunta que deve ser feita é: a quem beneficia isso tudo? Ou melhor: quem ganha dinheiro?”, pergunta-se De la Cueva, para quem estamos diante de “uma ação teledirigida economicamente: aqui o que realmente importa é o dinheiro”. “A União Europeia, a propósito, teria que verificar se essa decisão não atenta contra o livre mercado, para começar”, e acrescenta: “Eu acredito que sim”.
Esse advogado também denuncia que a ação “demonstra como, precisamente através do código, o que está sendo feito é montar um regulamento em si; ou seja, quando evito que uma série de atualizações sejam feitas o que faço é, por meio do próprio acesso a esse código, expulsar um ator do mercado”.
De la Cueva faz uma interessante reflexão sobre o código aberto. “A base da internet, o que realmente fez explodir a revolução da rede, foram os Request for Comments (RFC), que são de licença livre. A internet é a maior e mais relevante obra de propriedade intelectual livre da história, como nenhuma outra obra ‘proprietária’ [privada]”.
“Em um dado momento”, acrescenta, “a Google se serviu do kernel do Linux e usou esse núcleo para montar um sistema operativo – Android – que captura os consumidores. O que vemos aqui é: até certo ponto, qualquer sistema livre pode ser utilizado para o mal”. “Todo isso mostra como a Google já estava usando esse sistema livre para cooperar na sociedade de controle em que vivemos. Prometeram-nos a sociedade do conhecimento, mas nos entregaram a sociedade de controle. Essa sociedade de controle existe realmente, não somente sobre os indivíduos, mas também sobre as empresas”.
“É interessante o que está acontecendo porque, de alguma maneira, obriga a Huawei – não esqueçamos que também é uma gigante – a fazer um fork ou bifurcação (um projeto que se separe de outro, a partir de um tronco comum e o código-fonte do tronco já existente)”, comenta esse especialista. Ele acrescenta: “a longo prazo, os EUA poderiam estar dando um tiro no pé. Eles forçam os chineses a fazer uma versão alternativa à dominante, dominada pelo Google, de forma que gere um importante mercado de celulares sem Google”. Um exemplo de um sistema derivado que é livre é o LineageOS.
“E olhe”, ironiza De la Cueva, “viria a calhar para muitos, principalmente para os parlamentares espanhóis que levam em seus bolsos celulares com aplicativos que enviam sua geolocalização a servidores de companhias norte-americanas: como é possível que os representantes da soberania popular estejam cedendo seus dados para o Google? Estamos loucos?”.
Para esse jurista, “há uma oportunidade para colocar o valor não na tecnologia chinesa ou estadunidense, mas na ‘tecnologia cidadã’. Talvez isso produza um impulso nos grupos de desenvolvimento de ‘software livre’, já que embaixo do guarda-chuva do código livre pode entrar qualquer tipo de agente”.
“Não sabemos as consequências que pode ter todo esse movimento, mas o que ocorria até agora não era aceitável: a situação do monopólio ‘de fato’ a qual fomos entregues tanto para o Google (Android) como para a Apple (IOS)”. De la Cueva conclui: “Talvez tudo isso que está acontecendo seja até bom”.
A guerra comercial entre as duas maiores superpotências do mundo tem várias vertentes. A última medida norte-americana, em forma de sanções, é uma ramificação de uma delas: a batalha pela implantação da tecnologia 5G na Europa.
A jornalista especializada Marta Peirano explica de forma muito clara, no Twitter, como as acusações de espionagem da Casa Branca contra as companhias tecnológicas chinesas resultaram em uma disputa política e judicial que tensiona as difíceis relações entre ambos os países. Leiam o tweet (em espanhol):
Tweet da jornalista Marta Peirano.
Portanto, a decisão que obrigou a Google e outras empresas tecnológicas dos EUA a romper com a Huawei é uma política. Precisa ser analisada a partir de uma perspectiva mais ampla. Não se trata somente de espionagem ou segurança.
“No momento, não se apresentaram provas de que o governo da China faz o mesmo que o governo dos EUA”, comenta ironicamente David Maeztu, que acrescenta: “não sabemos se os EUA acusam as empresas chineses de espionar, ou de que não lhes dão as informações que obtêm ao espionar”.
Visto com um pouco mais de distância, o que está em jogo é o domínio da tecnologia móvel pelas próximas décadas. E se no caminho for possível romper com um ou dois monopólios, ou conseguir conscientizar um ou dois políticos, talvez devêssemos nos aproveitar dele.
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EUA x China: o que pode tirar o sono de Trump - Instituto Humanitas Unisinos - IHU