14 Mai 2019
O recente progresso do Acordo provisório entre a Santa Sé e a China está no centro da longa entrevista exclusiva concedida pelo cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado, aos jornalistas Francesco Sisci e Zhang Yu, e publicada no Global Times.
Publicamos aqui uma tradução italiana, agradecendo ao jornal chinês pela disponibilidade do texto.
A reportagem é do jornal L’Osservatore Romano, 13-05-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O acordo entre a Santa Sé e a República Popular da China foi assinado. Agora, o diálogo continua. Com que frequência as duas partes se encontram? Pode nos contar alguns detalhes a esse respeito?
Sim, no dia 22 de setembro de 2018, chegou-se à assinatura de um Acordo provisório sobre a nomeação dos bispos na China. As duas partes estão bem conscientes de que esse ato constitui o ponto de chegada de um longo caminho, mas é acima de tudo um ponto de partida. Há confiança de que se possa agora iniciar uma nova fase de maior colaboração pelo bem da comunidade católica chinesa e pela harmonia de toda a sociedade. Os canais de comunicação estão funcionando. Existem elementos que mostram um aumento de confiança entre as duas partes. Estamos inaugurando um método que parece positivo e que certamente ainda deverá ser desenvolvido ao longo do tempo, mas que, desde agora, nos faz esperar que poderemos alcançar resultados concretos progressivamente. Devemos caminhar juntos, porque só assim poderemos curar as feridas e as incompreensões do passado, para mostrar ao mundo que, mesmo a partir de posições distantes, podem ser alcançados entendimentos frutíferos.
Gostaria de enfatizar um aspecto particularmente caro ao Papa Francisco, isto é, a verdadeira natureza do diálogo. Nele, nenhuma das partes renuncia à sua identidade e àquilo que é essencial para o desenvolvimento da própria tarefa. A China e a Santa Sé não estão discutindo sobre a teoria dos respectivos sistemas, nem querem reabrir questões que já pertencem à história. Em vez disso, estamos procurando soluções práticas para a vida de pessoas concretas, que desejam praticar serenamente a sua fé e oferecer uma contribuição positiva para o seu país.
Há uma certa oposição ao diálogo entre o Vaticano e o governo chinês. O que o senhor acha dessa oposição e o que gostaria de dizer aos opositores dentro da Igreja?
Como ocorre em geral nas questões complexas e quando estamos diante de problemas de grande porte, também na especificidade das relações sino-vaticanas, é um fato normal que posições diferentes se confrontem e se proponham soluções igualmente diferentes, de acordo com o ponto de vista do qual se parte e das preocupações que prevalecem. Por isso, não é de se admirar diante das críticas, que podem surgir tanto dentro da Igreja quanto na China ou em outras partes, a uma abertura que pode parecer inédita depois de um período tão longo de confrontação. E me parece humano e cristão manifestar compreensão, atenção e respeito por aqueles que as expressam.
Certamente, nem todos os problemas estão resolvidos! Muitas questões ainda devem ser enfrentadas, e estamos fazendo isso com boa vontade e determinação. Estou bem consciente de que aqui ninguém tem no bolso a verdade absoluta (ou a varinha mágica!), mas também posso dizer que estamos empenhados em buscar soluções duradouras, que sejam aceitáveis e respeitosas de todos. Obviamente, outra coisa são as críticas que vêm de posições preconceituosas e que parecem visar apenas a conservar velhos equilíbrios geopolíticos. Para o Papa Francisco – que está bem consciente do que ocorreu no passado também recente – o principal interesse no diálogo em curso é de ordem pastoral. Ele está fazendo um grande ato de confiança e de respeito pelo povo chinês e pela sua cultura milenar, com a esperança motivada de receber uma resposta igualmente sincera e positiva. O que é realmente importante é que o diálogo seja capaz de construir progressivamente um consenso mais amplo, trazendo frutos abundantes.
Um primeiro e duplo fruto, na verdade, já existe: por um lado, começamos a superar as condenações recíprocas, conhecemo-nos melhor, ouvimo-nos, compreendem-se melhor as exigências do interlocutor; por outro, abre-se a perspectiva de que dois sujeitos internacionais tão antigos, vastos e articulados – como a China e a Sé Apostólica – se tornem cada vez mais conscientes da responsabilidade comum perante os graves problemas do nosso tempo. A desafios globais, devem corresponder respostas globais. E o catolicismo, pela sua natureza, é um fato global, capaz de favorecer de modo original a busca de sentido e de felicidade, de consolidar o valor de pertença a uma cultura específica e, ao mesmo tempo, de experimentar a fraternidade universal. Como um bispo chinês sublinhou recentemente, as comunidades católicas na China pedem hoje para ser plenamente integradas na comunhão universal, trazendo à Igreja o dom de ser chinês.
Para a Igreja Católica, a inculturação sempre foi importante na pregação do Evangelho. Agora, a China está fazendo uma “sinização” [ou “chinização”] das religiões. O que o senhor pensa sobre a inculturação e a “sinização”?
A inculturação é uma condição essencial para um bom anúncio do Evangelho, que, para dar fruto, requer, por um lado, a salvaguarda da sua autêntica pureza e da sua integridade e, por outro lado, ser conjugado segundo a experiência peculiar de cada povo e cultura. Um testemunho exemplar disso é a fecunda experiência de Matteo Ricci, que soube se tornar autenticamente chinês em nome dos valores da amizade humana e do amor cristão. Para o futuro, certamente será importante aprofundar esse tema, especialmente a relação entre “inculturação” e “sinização”, tendo em mente que a liderança chinesa teve a oportunidade de reiterar a vontade de não atacar a natureza e a doutrina das religiões individuais. Esses dois termos, “inculturação” e “sinização”, referem-se mutuamente sem confusão e sem contraposição: eles podem ser, de alguma maneira, complementares e abrir perspectivas para o diálogo no plano religioso e cultural. Finalmente, eu diria que os principais protagonistas desse compromisso são os católicos chineses, chamados a viver a reconciliação, para serem verdadeiramente chineses e plenamente católicos.
A Santa Sé desempenhou um papel positivo ao ajudar a China a ver o reconhecimento dos seus esforços para combater o tráfico de órgãos. Existem outros âmbitos em que as duas partes podem trabalhar juntas?
Como eu mencionava antes, são muitos os desafios globais hoje que pedem para ser enfrentados com espírito de colaboração positiva. Penso aqui, em particular, nas grandes questões da paz, da luta contra a pobreza, das emergências ambientais e climáticas, das migrações, da ética do desenvolvimento científico, do progresso econômico e social dos povos. Para a Santa Sé, é de primordial importância que, em todos esses âmbitos, seja colocada novamente no centro a dignidade da pessoa, começando pelo reconhecimento concreto dos seus direitos fundamentais, incluindo o da liberdade religiosa e o bem comum, que é o bem de todos e de cada um. São horizontes muito amplos que hoje, mais do que nunca, exigem um compromisso comum por parte de todos, crentes e não crentes. A Santa Sé continuará fazendo a sua parte no marco da comunidade internacional e está disponível para toda iniciativa que promova o bem comum.
Este é um tempo difícil para todo o mundo e, em particular, para alguns países. O que o senhor poderia dizer, pessoalmente, como homem de fé, aos líderes políticos?
Hoje, mais do que no passado, os líderes políticos são chamados a assumir enormes responsabilidades. O que ocorre em nível local tem repercussões quase imediatas no plano global. Estamos todos interconectados, razão pela qual as palavras e as decisões de poucos influenciam a vida e o modo de pensar de muitos. Como homem de fé e como sacerdote, gostaria de convidar aqueles que têm responsabilidades políticas diretas a levarem em conta esse poder de influência sobre os povos, um poder que pode dar vertigem. Gostaria de lhes dizer que, mesmo nas situações mais difíceis e diante das escolhas mais complexas, não tenham temor de levantar o olhar, para além dos sucessos imediatos, para buscar, sem precondições, soluções duradouras e clarividentes que contribuam para construir um futuro mais humano, mais justo e mais digno para todos. Permito-me indicar, a esse propósito, a mensagem do Papa Francisco para a celebração do 52º Dia Mundial da Paz de 1º de janeiro de 2019, intitulada “A boa política está a serviço da paz”, que oferece indicações preciosas para todos aqueles que têm responsabilidades políticas [disponível aqui, em português].
O senhor negociou com os representantes chineses por muitos anos. Qual é a recordação mais forte desse período? E o mais bonito?
Conservo vivas e agradecidas recordações do período em que, como subsecretário para as Relações com os Estados, negociei com os representantes chineses e agradeço ao Senhor por ter me concedido fazer essa bela experiência. Obviamente, não faltaram preocupações e temores. Em muitas ocasiões, pareceu-me que nunca faríamos progressos, e que tudo se interromperia. Mas prevaleceu, em ambas as partes, a vontade de seguir em frente, e, com paciência e determinação, tentamos superar os obstáculos do caminho. Pois bem, precisamente isso permaneceu particularmente impresso na minha memória. Os momentos mais bonitos foram aqueles em que vivemos juntos momentos de familiaridade e de amizade, que nos permitiram nos conhecer e nos apreciar mais e, no fim das contas, compartilhar a humanidade que nos une para além das diferenças que existem entre nós.
Trata-se de situações que têm um profundo valor em si mesmas, mas que também foram úteis para criar uma atmosfera mais favorável durante as negociações. Recordo, em particular, um dia inteiro passado em Assis com a delegação chinesa em um domingo de primavera: os fascinantes lugares franciscanos e o clima que havia se criado entre nós abriram meu coração para uma grande esperança, que me sustentou em todos os anos posteriores e que ainda me sustenta. Vimos as primeiras realizações dela e, com a graça de Deus, veremos ainda mais, em benefício de toda a comunidade católica chinesa, a quem eu abraço fraternalmente – em primeiro lugar aqueles que mais sofreram e sofrem –, e de toda a população desse país, ao qual desejo sinceramente todo o bem.
O senhor tem uma mensagem particular para o povo chinês e para os seus líderes?
Gostaria de transmitir aos líderes, mas também a todos os chineses, a saudação, os votos e a oração do Papa Francisco. Para os católicos, em particular, o Santo Padre pede que empreendam com coragem o caminho da unidade, da reconciliação e de um renovado anúncio do Evangelho. Ele olha para a China não só como um grande país, mas também como uma grande cultura, rica em história e em sabedoria. Hoje, a China voltou a despertar grande atenção e interesse por toda a parte, especialmente entre os jovens. A esse respeito, a Santa Sé espera que a China não tenha temor de entrar em diálogo com o mundo mais vasto, e que as nações do mundo deem crédito às profundas aspirações do povo chinês. Desse modo, trabalhando todos juntos, tenho certeza de que poderemos superar as desconfianças e construir um mundo mais seguro e mais próspero. Com as palavras do Papa Francisco, diríamos que só unidos podemos superar a globalização da indiferença, atuando como criativos artesãos de paz e tenazes promotores de fraternidade.
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Em entrevista a jornal chinês, cardeal Parolin fala dos primeiros frutos do acordo entre Santa Sé e China - Instituto Humanitas Unisinos - IHU