02 Mai 2019
“A acusação mais infame é a alegação de que Bento obstruiria a luta do Papa Francisco contra o abuso – embora Francisco não esteja fazendo, e não possa fazer, nada além de continuar as medidas adotadas pelo seu antecessor e proteger a si mesmo e a Congregação para a Doutrina da Fé contra as tentativas perniciosas de todos aqueles que querem minimizar e acobertar. Bento, que está dizendo a verdade, não está contribuindo para um cisma – mas todos aqueles que reprimem a verdade e se escondem atrás da verborragia psicossocial estão.”
A opinião é do cardeal alemão Gerhard Ludwig Müller, ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, em artigo publicado por First Things, 26-04-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Papa Francisco está feliz com a profunda análise de Bento XVI sobre as razões por trás da crise dos abusos na Igreja e agradecido ao seu antecessor por apontar as conclusões que devem ser tiradas por aqueles que ocupam cargos de responsabilidade. Bento XVI tem uma rica experiência com essas questões: desde o seu ministério como padre (desde 1953) até como professor de teologia (1957), como bispo (1976), como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, sob o Papa João Paulo II (1981–2005) e como papa (2005–2013).
Na Igreja, o instrumento crucial contra o abuso sexual é o motu proprio Sacramentorum sanctitatis tutela (2001). Essa lei remonta a João Paulo II e a Joseph Ratzinger, provando que Bento era e é a figura mais importante na luta da Igreja contra essa crise. Ele tem a visão mais ampla e a compreensão mais profunda desse problema, de suas causas e história. Ele está em uma posição melhor do que todos os cegos que querem guiar outros cegos – não os verdadeiramente cegos dos quais Jesus tem misericórdia, mas aqueles contra os quais ele adverte, porque veem e, mesmo assim, não querem ver (cf. Lc 6, 39; Mt 13, 13).
Aos 92 anos, Bento XVI é capaz de uma reflexão teológica mais profunda do que os seus críticos, que não têm respeito e são ideologicamente cegos. Ele é capaz de se aproximar da fonte do fogo que incendiou o telhado da Igreja. O incêndio catastrófico em Paris, em uma das mais veneráveis casas de Deus da cristandade, também tem um significado simbólico: nos faz apreciar novamente o trabalho dos bons bombeiros, em vez de culpá-los pelos danos causados pela água durante a extinção das chamas. Reconstruir e renovar a Igreja inteira só pode ter sucesso em Cristo – se nos deixamos orientar pelo ensinamento da Igreja sobre fé e moral.
A recente assembleia dos presidentes das Conferências Episcopais em Roma (21 a 24 de fevereiro de 2019) deveria ter assinalado o início do fato de chegar às raízes do mal do abuso. Somente se chegarmos a essas raízes é que a Igreja em Jesus poderá recuperar credibilidade como sacramento da redenção para o mundo e novamente comunicar a fé que traz a salvação que nos une a Deus. Infelizmente, as conclusões práticas obtidas por essa assembleia ainda não foram divulgadas, de modo que a Conferência dos Bispos dos Estados Unidos ainda não pode pôr em prática as suas medidas suspensas.
Relatos sobre as experiências das vítimas que sofreram abusos de pessoas consagradas sacudiram os participantes da assembleia. Mas as análises generalistas e evasivas de alguns dos oradores oficiais também foram angustiantes. Isso certamente foi uma consequência do fato de a assembleia não permitir que alguns dos cardeais mais competentes falassem – como o cardeal Seán O’Malley, presidente da Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores, ou o cardeal Luis Ladaria, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.
Cada processo canônico em casos de delitos sexuais graves consiste em centenas de páginas de material de fontes. Isso produz um conhecimento empírico sobre os padrões de ação, o que permite tirar conclusões sobre o perfil dos perpetradores e sobre as circunstâncias típicas. Inversamente, explicar o fenômeno como “clericalismo” ou “pressão sexual causada pelo celibato descarregada sobre crianças”, como algo ligado à “constituição hierárquica da Igreja” e à “sacralidade do sacerdócio” é usar frases de efeito, modelos pré-fabricados que têm origem em um horizonte estreitado pela ideologia. Tais explicações minam a tolerância zero como a única política correta. O abuso sexual de adolescentes ou mesmo de seminaristas adultos não pode ser tolerado sob nenhuma circunstância, mesmo que o perpetrador queira se desculpar apontando para o consentimento mútuo entre adultos. Apenas uma estrita observância da disciplina eclesiástica e penas duras podem deter potenciais perpetradores e dar à vítima a sensação de que a justiça foi restaurada.
A acusação de “clericalismo” pode ser facilmente levantada contra outros, mas, ironicamente, muitos dos que a usam para atacar os outros estão sujeitos a ela: quem quer que, como bispo, exija que seus clérigos distribuam a Sagrada Comunhão a pessoas que não estão em plena comunhão com a fé da Igreja ou àqueles que precisam ser absolvidos de pecado grave por meio da penitência antes de poderem se aproximar da Comunhão, é, em si mesmo, hiperclericalista. Ele abusa da autoridade conferida a ele por Cristo a fim de forçar os outros a agirem contra os mandamentos de Cristo, até mesmo ameaçando penalidades eclesiásticas. Em tais casos, a regra apostólica – “devemos obedecer antes a Deus do que aos homens” – também se aplica na Igreja (At 5, 29, cf. a declaração de 1875 dos bispos alemães contra a intromissão da Prússia nos assuntos da Igreja, DH 3115).
Todas as tentativas inteligentes, mas vãs, de tornar os crimes individuais dependentes de disposições gerais carecem de base empírica: os crimes de modo algum se originam na estrutura sacramental da Igreja, mas a contradizem. Todos aqueles que afirmam isso revelam apenas sua própria incapacidade e relutância em discutir honestamente a contribuição e as propostas de Bento XVI para esse tópico explosivo. Alguns ideólogos puseram em exibição sua própria moral e intelecto fracos, e até mesmo foram autorizados a derramar seu ódio e desprezo em uma plataforma financiada pela Conferência dos Bispos da Alemanha. Contra a sua vontade, tais autores oferecem mais provas para o diagnóstico de Bento de que um tipo de teologia moral, que há muito tempo não tem sido católica, entrou em colapso.
A acusação mais infame é a alegação de que Bento obstruiria a luta do Papa Francisco contra o abuso – embora Francisco não esteja fazendo, e não possa fazer, nada além de continuar as medidas adotadas pelo seu antecessor e proteger a si mesmo e a Congregação para a Doutrina da Fé contra as tentativas perniciosas de todos aqueles que querem minimizar e acobertar. Bento, que está dizendo a verdade, não está contribuindo para um cisma – mas todos aqueles que reprimem a verdade e se escondem atrás da verborragia psicossocial estão. Quem quer que seja que, sobre os ombros de jovens vítimas de crimes sexuais, tente substituir o ensino moral da Igreja, fundamentado na lei natural e na revelação divina, por uma moral sexual autoconstruída de acordo com o princípio do prazer egoísta dos anos 1970 não apenas cria heresia e cisma, mas também está abertamente incitando a apostasia.
As violações dos mandamentos de Deus sempre ocorreram. Mas a série de crimes sexuais entre 1960 e 1980, cometidos por padres que, através da ordenação, ensinam, governam como pastores e santificam os fiéis na pessoa de Cristo (Vaticano II, Presbyterorum ordinis 2), é particularmente grave. Tais malfeitos, aquém e além da dor causada pelos crimes sexuais, prejudicam profundamente a credibilidade da Igreja inteira e põem em risco a fé das vítimas em Deus e a sua confiança natural nos ministros de Cristo. Um grande número desses criminosos não tinha um sentimento de culpa e não conhecia ou rejeitava diretamente o ensino segundo o qual os atos sexuais com adolescentes, ou com pessoas adultas fora do matrimônio, são moralmente repreensíveis. Quem deformou sua consciência a ponto de eles não saberem mais quais eram os pecados graves pelos quais “nem os fornicadores, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os homossexuais (...) herdarão o reino de Deus” (1Cor 6, 9)?
O escândalo atinge seu ápice quando a culpa não é colocada sobre aqueles que rompem os mandamentos de Deus, mas, em vez disso, os próprios mandamentos são responsabilizados pela sua transgressão: a causa de pecado se torna Deus, que supostamente está nos sobrecarregando. Naturalmente, ninguém afirma isso diretamente desse modo; em vez disso, a Igreja é acusada de interpretar os mandamentos de Deus de uma maneira ultrapassada. Portanto, diz-se, precisamos agora inventar (ou, como diz a linguagem eufemística, “desenvolver mais”, significando “falsificar”) uma nova moral sexual que concorde com as descobertas das ciências humanas modernas, cuja moral deixa “filantropicamente” intocada a realidade factual da vida das pessoas. Ao fazer tais propostas, aquilo que é prontamente admitido é convenientemente esquecido: ou seja, que a ciência empírica “objetiva” sem quaisquer pressupostos não existe e que a antropologia subjacente sempre influencia o modo como os dados de pesquisa são interpretados. A moral tem a ver com distinguir o bem e o mal. O adultério pode ser bom somente porque uma sociedade descristianizada pensa diferente do Sexto Mandamento?
Quando Paulo diz que, como consequência da negação do criador o do desprezo dos pecadores por Deus, “os homens abandonaram a função natural da mulher e arderam de desejo uns pelos outros, homens com homens cometendo atos torpes” (Rm 1, 27), ele está se referindo àquilo sobre o que está evidentemente falando. Como os exegetas sabem que, por trás do significado óbvio dessas palavras, subentende-se outra coisa, até mesmo o seu oposto total? Nos atos imorais, especialmente contra o amor matrimonial e a sua fecundidade, Paulo detecta uma negação de Deus, porque a vontade do criador não é reconhecida como a medida do nosso bem. Para a vida da Igreja, isso tem outra consequência importante: só podemos admitir à ordenação candidatos que também possuam os pré-requisitos naturais, que sejam intelectual e moralmente capazes, e mostrem a prontidão espiritual para se entregarem totalmente ao serviço do Senhor.
Como Bento XVI enfatiza corretamente, só podemos nos afastar de caminhos falsos se entendermos a sexualidade masculina e feminina como dom de Deus, que não serve ao prazer narcísico, mas tem seu verdadeiro objetivo no amor entre os esposos e a responsabilidade por uma família. Somente no contexto mais amplo do Eros e do Ágape é que a sexualidade tem o poder de edificar a pessoa humana, a Igreja e o Estado. Caso contrário, ela traz a destruição. Apenas um ponto de vista materialista e ateísta vê a renúncia voluntária do matrimônio no celibato sacerdotal e na vida religiosa como causadora de crimes sexuais contra adolescentes. Não há nenhuma prova disso; dados estatísticos sobre o abuso sexual dizem o contrário.
O ponto de vista ateísta surge também nos argumentos daqueles que jogam a culpa pelos crimes de abuso sobre um “clericalismo” inventado ou sobre a estrutura sacramental da Igreja. Na terminologia teológica, o “clero” vem da “participação no ministério” (At 1, 17), que Matias recebeu quando foi eleito para o ofício apostólico, que, como um servo da Palavra (Lc 1, 2; At 6, 4), ele deveria exercer no “episcopado” (At 1, 20) e como “pastor” (1Pe 5, 2). Bispos e padres não são ordenados como “oficiais” (com salário estável e aposentadoria), mas como ministros de Cristo na pregação, como administradores de mistérios na liturgia divina e nos sacramentos, e pelo serviço com o Bom Pastor que dá a sua vida pelas ovelhas. Há uma profunda unidade entre o clero e todos os batizados na missão comum da Igreja. Os fiéis leigos não deveriam ver o clero como funcionários fixados pelo poder a quem invejem por “privilégios clericais” que eles querem reivindicar para si mesmos.
Tal pensamento só é possível em uma Igreja secularizada, que certamente está condenada à perdição em qualquer país onde tal ideologia venha a dominar. Em vez de nos cercarmos de consultores midiáticos e buscar ajuda para o futuro da Igreja junto a assessores econômicos, todos nós – clero, religiosos e fiéis leigos, especialmente pessoas casadas – temos que nos concentrar na origem e no centro da nossa fé: o Deus trino, a encarnação de Cristo, a efusão do Espírito Santo, a proximidade de Deus na Sagrada Eucaristia e na Confissão frequente, a oração diária e a prontidão de nos deixarmos guiar na nossa vida moral pela graça de Deus. Nada mais indica o caminho para sair da atual crise de fé e moral rumo a um bom futuro.
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Bento e os seus críticos. Artigo de Gerhard Ludwig Müller - Instituto Humanitas Unisinos - IHU