23 Abril 2019
Na Amazônia brasileira, comunidades protegem 27% da floresta; reservas fornecem 5,2 bilhões de toneladas de água por dia.
O artigo é de Fábio Gallacci, publicado por G1, 19-04-2019.
A luta para permanecer na terra que um dia foi completamente deles também representa resistência diante da devastação. Em alguns pontos do Brasil, as áreas demarcadas para os povos indígenas mantêm a natureza em seu estado original. São barreiras contra o avanço da exploração madeireira e o apetite insaciável do agronegócio. Em uma escala maior, estudos mostram que os povos indígenas protegem cerca de 80% da biodiversidade do planeta.
Um exemplo disso pode ser visto na cidade de Porto Real do Colégio, em Alagoas. Os 700 hectares onde vivem 1.019 famílias da comunidade kariri xocó representam o único espaço onde a mata ainda está preservada. “A gente vem lutando, buscando aliados e mais conscientização. Sempre defendemos a nossa mata, florestas e rios”, afirma o cacique Pawanã Wonhé Natiá, uma das lideranças dos kariri xocó, que participou de atividades da Virada Sustentável de Campinas na semana passada.
Porto Real do Colégio, em Alagoas (Gráfico: Wikipedia)
A questão é que essa comunidade já conquistou o direito de ocupar 4,4 mil hectares às margens do Rio São Francisco, mas a burocracia os impede de se acomodar de fato. Enquanto isso, a vegetação vai dando lugar ao avanço das plantações e a água que já foi fonte inesgotável de alimento tem se deteriorado. “Ultimamente, o mais difícil é a falta de apoio governamental. Essa coisa do agronegócio sempre foi muito ruim para nós e continua sendo. Hoje está pior. Rios sendo poluídos, destruídos, desviados. Mas os povos indígenas, que todos apontam como minoria, estão sempre lutando”, reforça Pawanã.
Os kariri-xocó podem ser apontados como um exemplo de resistência indígena. No Nordeste brasileiro, eles estão em contato com não-indígenas desde meados de 1700. “O maior problema que enfrentamos hoje é o ataque às nossas terras e a poluição dos cursos d´água. Nós vivíamos da pesca! É o nosso costume de muitas gerações. Agora, se for ver, a gente não pode nem tomar banho no lugar onde nasci e me criei”, protesta.
O rompimento da barragem em Brumadinho, no último dia 25 de janeiro, também já afetou o Rio Opará, nome indígena para o São Francisco, que significa "Rio-Mar". Segundo Pawanã, a sujeira do rio está obrigando os índios a comprarem água para consumir. “Está tudo poluído”, diz.
O advogado de Direitos Humanos e membro da rede de apoio aos kariri xokó, Paulo Mariante, confirma o cenário difícil após fazer algumas visitas à comunidade em Alagoas. “A retirada de mata ciliar na área já fez com que a travessia do Rio São Francisco possa ser feita a pé”, conta. "Dá para ver nos barrancos a altura que o rio já teve. Lá existiam colônias de pescadores! Tudo isso acabou porque o rio foi destruído. Isso acontece exatamente onde os ‘brancos’, os fazendeiros, mantêm o seu processo de produção. É lamentável”, relata o advogado.
Como se não bastasse, Mariante ainda alerta para um constante risco de conflitos por ali, já que a pistolagem é algo comum no local. A área total dos indígenas já está com suas demarcações físicas colocadas, mas falta o último passo burocrático cartorial que pacifique o assunto.
Assim que tomarem posse de fato de uma área maior, o advogado afirma que já está pronto para ser colocado em prática um projeto agroflorestal para recuperar a vegetação tombada e, em paralelo, criar formas de desenvolvimento das culturas tradicionais indígenas.
Essa gangorra pela terra – e pela conservação do ambiente natural no Interior alagoano – já testemunhou derramamento de sangue. Em 1994, um conflito entre indígenas e posseiros resultou em mortes dos dois lados. “Temos que nos manter na terra. Se o posseiro está lá, temos que colocar pra fora. Não devemos morar em uma área coberta por asfalto. Necessitamos das plantas, das florestas, dos animais”, reforça o representante kariri xocó.
Para o apoiador indigenista e mestre em economia política pela PUC-Campinas, Anderson Rodrigo dos Santos, a existência dos povos nativos em suas terras implicam no retardamento do desmatamento e do desenvolvimento econômico indiscriminado. “A permanência dos povos indígenas nos territórios tradicionais e suas novas ocupações são decisivas na preservação das florestas e dos recursos naturais. É a relação simbiótica entre os povos da floresta e meio ambiente”, aponta.
Antonio Oviedo, doutor em desenvolvimento sustentável pela Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador do Programa de Monitoramento de Áreas Protegidas do Instituto Socioambiental (ISA) afirma que criar unidades de conservação e reconhecer terras indígenas têm sido uma das estratégias mais eficazes para proteger a Floresta Amazônica. De acordo com ele, essas são formas de reduzir o desmatamento e, portanto, as emissões de gás carbônico. Áreas protegidas são uma ferramenta chave para evitar o desmatamento.
Um exemplo disso é a terra indígena Arariboia, no Maranhão. A comunidade de lá sofre com invasões e roubo de madeira. Nos últimos anos, um grupo de voluntários indígenas que moram no local formaram um grupo de agentes ambientais, realizando operações de fiscalização para controlar as invasões.
Terra Indígena Arariboia, no Maranhão (Gráfico: Google Maps)
Estudos ainda mostram o efeito inibidor das áreas protegidas na Amazônia brasileira sobre a redução de emissões advindas do desmatamento. A expansão de áreas protegidas, ocorrida no início dos anos 2000, foi responsável por 37% da redução do desmatamento observada, entre 2004 e 2006. Entre 1995 e 2013, o governo federal e os governos estaduais de Rondônia, Mato Grosso e Pará retiraram a proteção de 2,5 milhões de hectares em 38 áreas protegidas. Em dez áreas avaliadas, cinco anos após a redução da proteção legal, o desmatamento aumentou em média 50%. “Em geral, as terras indígenas continuam sendo a principal barreira contra a destruição da floresta”, ratifica Oviedo.
Contudo, para o pesquisador Oviedo, há nuvens de dificuldade logo adiante. “As propostas do novo governo brasileiro em relação aos povos indígenas e suas terras são semelhantes às da ditadura militar que governou o País de 1964 a 1985, quando milhares de indígenas foram mortos ou expulsos de suas terras em decorrência de grandes projetos de infraestrutura”, comenta. “O governo tem relatado na mídia que vai revisar todos os processos de demarcação de terras indígenas. Esta narrativa do novo governo, que coloca em dúvida as demarcações e enfraquece a fiscalização ambiental, faz com que grileiros armados organizem ataques contra as comunidades. Este padrão se intensificou nos primeiros meses do governo de Jair Bolsonaro”, alerta.
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Terras indígenas são ‘ilhas’ de resistência contra a devastação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU