12 Abril 2019
O Papa Emérito Bento XVI publicou o artigo “A Igreja e os abusos sexuais”, no qual oferece suas reflexões sobre a atual situação eclesial e apresenta suas propostas para enfrentar esta grave crise.
O artigo (escrito em alemão) está dividido em três partes. Na primeira parte apresenta o contexto histórico a partir dos anos 1960, na segunda, refere-se aos efeitos na vida dos sacerdotes e, na terceira, faz uma proposta para uma resposta adequada da Igreja.
O texto, originalmente, seria publicado na Semana Santa pelo Klerusblatt, jornal mensal para o clero na maioria das dioceses bávaras da Alemanha; entretanto, acabou sendo divulgado nesta quarta-feira, 10 de abril, pelo New York Post.
ACI Prensa apresenta a tradução em espanhol do documento, que é a contribuição que Bento XVI oferece para “ajudar nesta hora difícil” da Igreja, como o próprio Papa Emérito escreve.
A íntegra do artigo do Papa Emérito Bento XVI é publicado por ACI Prensa, 10-04-2019. A tradução é de André Langer.
De 21 a 24 de fevereiro, a convite do Papa Francisco, os presidentes das conferências episcopais do mundo reuniram-se no Vaticano para discutir a crise de fé e da Igreja, uma crise palpável em todo o mundo depois das estarrecedoras revelações de abusos clericais perpetrados contra menores. A extensão e a gravidade dos incidentes relatados afligiram sacerdotes e leigos e fizeram com que muitos questionassem a própria fé da Igreja. Foi necessário enviar uma mensagem forte e buscar um novo começo para tornar a Igreja novamente credível como luz entre os povos e como uma força ativa contra os poderes da destruição.
Uma vez que eu mesmo servi em uma posição de responsabilidade como pastor da Igreja em um momento em que esta crise se desenvolveu e antes dela, eu tive que me perguntar – embora eu não seja mais diretamente responsável por ser emérito – como poderia contribuir para esse novo começo em retrospectiva. Assim, desde o período do anúncio até o próprio encontro dos presidentes das conferências episcopais, reuni algumas notas com as quais desejo ajudar nesta hora difícil. Tendo contatado o secretário de Estado do Vaticano, cardeal (Pietro) Parolin, e o próprio Papa Francisco, parece-me apropriado publicar este texto no Klerusblatt.
Meu trabalho divide-se em três partes. Na primeira, procuro apresentar brevemente o amplo contexto da questão, sem o qual o problema não pode ser entendido. Tento mostrar que na década de 1960 ocorreu um evento excepcional, em uma escala sem precedentes na história. Pode-se dizer que nos 20 anos transcorridos entre 1960 e 1980, os padrões vinculantes até então em relação à sexualidade entraram em completo colapso, e surgiu uma nova normalidade que já foi objeto de várias tentativas trabalhosas de compreensão.
Na segunda parte, procuro esclarecer os efeitos desta situação na formação dos sacerdotes e em suas vidas.
Finalmente, na terceira parte, gostaria de desenvolver algumas perspectivas para uma resposta adequada da Igreja.
(1) A questão começa com a introdução de crianças e jovens na natureza da sexualidade, algo que foi prescrito e apoiado pelo Estado. Na Alemanha, a então ministra da Saúde, (Käte) Strobel, tinha um filme que mostrava tudo o que antes não era permitido ensinar publicamente, incluindo relações sexuais, e que passou a ser exibido com o propósito de educar. O que inicialmente se destinava apenas à educação sexual dos jovens, foi depois amplamente aceito como uma opção viável para o resto da sociedade.
Efeitos similares foram alcançados com o “Sexkoffer” publicado pelo governo da Áustria (N. do T.: Materiais sexuais usados em escolas austríacas no final dos anos 1980). Os filmes pornográficos e o conteúdo sexual tornaram-se então comuns, a tal ponto que eram transmitidos em pequenos cinemas (Bahnhofskinos) (N. do T.: cinemas baratos na Alemanha que projetavam pequenos filmes perto de estações de trem).
Ainda me lembro de ter visto, andando certo dia na cidade de Regensburg, verdadeiras multidões de pessoas fazendo fila em frente a um grande cinema, algo que anteriormente só havíamos visto nos tempos de guerra, quando se esperava um filme especial. Lembro-me também de ter chegado à cidade na Sexta-Feira Santa de 1970 e ver nos espaços destinados à publicidade um grande cartaz em que duas pessoas estavam completamente nuas e abraçadas.
Entre as liberdades pelas quais a Revolução de 1968 lutou estava a liberdade sexual total, uma liberdade que já não tivesse mais normas. A vontade de usar a violência, que caracterizou esses anos, está fortemente relacionada a este colapso mental. Na verdade, os filmes sexuais já não eram mais permitidos nos aviões porque poderiam gerar violência na pequena comunidade de passageiros. E dado que os excessos no vestuário também provocavam agressões, os diretores das escolas fizeram várias tentativas para introduzir uma vestimenta escolar que facilitasse um clima de aprendizado.
Parte da fisionomia da Revolução de 1968 foi que a pedofilia também foi diagnosticada como permitida e apropriada.
Para os jovens da Igreja, mas não apenas para eles, isso foi, em muitos aspectos, um momento muito difícil. Sempre me perguntei como os jovens nesta situação podem se aproximar do sacerdócio e aceitá-lo com todas as suas ramificações. O extenso colapso das próximas gerações de sacerdotes naqueles anos e o grande número de laicizações foram uma consequência de todos esses processos.
(2) Ao mesmo tempo, independentemente deste desenvolvimento, a teologia moral católica sofreu um colapso que deixou a Igreja desamparada diante destas mudanças na sociedade. Vou tentar delinear brevemente a trajetória que esse desenvolvimento percorreu.
Até o Concílio Vaticano II, a teologia moral católica estava em grande parte baseada na lei natural, ao passo que as Sagradas Escrituras eram citadas apenas para ter contexto ou justificação. Na luta do Concílio por uma nova compreensão da Revelação, a opção pela lei natural foi amplamente abandonada, e exigiu-se uma teologia moral inteiramente baseada na Bíblia.
Ainda me lembro de como a faculdade jesuíta em Frankfurt formou o jovem e inteligente padre (Schüller) com o propósito de desenvolver uma moralidade baseada inteiramente nas Escrituras. A bela dissertação do padre (Bruno) Schüller mostra um primeiro passo para a construção de uma moralidade baseada nas Escrituras. O padre foi então enviado para os Estados Unidos e voltou tendo se dado conta de que somente com a Bíblia a moralidade não poderia se expressar de maneira sistemática. Então ele tentou uma teologia moral mais pragmática, sem ser capaz de dar uma resposta à crise de moralidade.
No final das contas, prevaleceu principalmente a hipótese de que a moralidade deveria ser determinada exclusivamente pelos propósitos da ação humana. Embora a antiga frase “os fins justificam os meios” não fosse confirmada nesta forma crua, seu modo de pensar tinha-se tornado, isso sim, definitivo.
Consequentemente, nada poderia ser considerado um bem absoluto, assim como, por outro lado, coisa alguma poderia ser considerada fundamentalmente mau; (poderia haver) apenas juízos de valor relativos. Não havia mais o bom (absoluto), apenas aquilo que era relativamente melhor ou contingente para o momento e as circunstâncias específicas.
A crise da justificação e a apresentação da moralidade católica atingiram proporções dramáticas no final das décadas de 1980 e 1990. No dia 5 de janeiro de 1989, foi publicada a “Declaração de Colônia”, assinada por 15 professores católicos de teologia. Ela se centrou em vários pontos da crise na relação entre o magistério episcopal e a tarefa da teologia. (As reações a) este texto, que a princípio não foi muito além do nível usual de protestos, cresceu muito rapidamente e transformou-se em um grito contra o magistério da Igreja e reuniu, clara e visivelmente, o potencial de protesto global contra os esperados textos doutrinais de João Paulo II. (Cf. D. Mieth, Kölner Erklärung, LThK, VI3, p. 196) (N. do T.: O LThK é o Lexikon für Theologie und Kirche, o Léxico de Teologia e Igreja, cujos editores incluíam o teólogo Karl Rahner e o cardeal alemão Walter Kasper.)
O Papa João Paulo II, que conhecia muito bem e que acompanhava de perto a situação em que a teologia moral se encontrava, encomendou o trabalho de uma encíclica para tornar as coisas claras novamente. Foi publicado com o título Veritatis Splendor (O Esplendor da Verdade) no dia 6 de agosto de 1993 e gerou diversas reações veementes de teólogos moralistas. Antes disso, o Catecismo da Igreja Católica (1992) já havia apresentado, de maneira persuasiva e sistemática, a moralidade assim como é proclamada pela Igreja.
Nunca vou esquecer como o então líder teólogo moral de fala alemã, Franz Böckle, tendo retornado para a sua Suíça natal após ter se aposentado, anunciou em relação à Veritatis Splendor que se a encíclica determinasse que havia ações que sempre e em todas as circunstâncias poderiam ser classificadas como más, então ele iria rebatê-la com todos os recursos à sua disposição.
Foi Deus, o Misericordioso, que evitou que colocasse em prática sua resolução uma vez que Böckle morreu no dia 8 de julho de 1991. A encíclica foi publicada no dia 06 de agosto de 1993 e efetivamente incluía a determinação de que certas ações jamais podem ser boas.
O Papa estava plenamente consciente da importância desta decisão e, nesse momento e para esta parte do texto, consultou novamente os melhores especialistas que não participaram da edição da encíclica. Ele sabia que não deveria deixar dúvidas sobre o fato de que a moralidade que busca o equilíbrio de bens deve ter sempre um limite último. Há bens que nunca estão sujeitos a concessões.
Há valores que jamais devem ser abandonados por um valor mais alto e até mesmo superar a preservação da vida física. Há o martírio. Deus é mais. Ele vale mais que a própria sobrevivência física. Uma vida comprada pela negação de Deus, uma vida baseada em uma mentira, ao final, não é vida.
O martírio é a categoria básica da existência cristã. O fato de que não seja mais moralmente necessário na teoria, como defendia Böckle e muitos outros, demonstra que a própria essência do cristianismo está em jogo aqui.
Na teologia moral, no entanto, uma outra pergunta havia se tornado urgente: tinha ganhado ampla aceitação a hipótese de que o magistério da Igreja deve ter competência final (“infalibilidade”) apenas em questões relacionadas à fé, e os assuntos sobre a moralidade não devem cair no âmbito das decisões infalíveis do magistério da Igreja. Provavelmente há alguma verdade nesta hipótese que merece maior debate, mas há um conjunto mínimo de questões morais que está intimamente relacionada ao princípio fundacional da fé e que deve ser defendido, para que a fé não venha a ser reduzida a uma teoria e que já não seja reconhecida em seu clamor pela vida concreta.
Tudo isso permite ver quão fundamentalmente se questiona a autoridade da Igreja em questões de moralidade. Aqueles que negam à Igreja uma competência no ensino definitivo nesta área obrigam-na a permanecer em silêncio precisamente ali onde a fronteira entre a verdade e a mentira está em jogo.
Independentemente deste assunto, em muitos círculos da teologia moral expôs-se a hipótese de que a Igreja não tem e não pode ter sua própria moralidade. O argumento era que todas as hipóteses morais teriam seu paralelo em outras religiões e, portanto, não haveria uma natureza cristã. Mas a questão da natureza de uma moralidade bíblica não é respondida pelo fato de que para cada oração em algum lugar, é possível encontrar um paralelo em outras religiões. Em vez disso, trata-se de toda a moralidade bíblica, que, como tal, é nova e diferente de suas partes individuais.
A doutrina moral das Sagradas Escrituras tem seu modo de ser, pregado finalmente em sua concreção à imagem de Deus, na fé em um Deus que se mostrou a si mesmo em Jesus Cristo e que viveu como ser humano. Os Dez Mandamentos são uma aplicação para a vida humana da fé bíblica em Deus. A imagem de Deus e a moralidade pertencem-se mutuamente e é por isso que resulta na mudança particular da atitude cristã em relação ao mundo e à vida humana. Além disso, o cristianismo foi descrito desde o início com a palavra hodós (caminho, em grego, usado no Novo Testamento para falar de um caminho de progresso).
A fé é uma travessia e um modo de vida. Na Igreja primitiva, o catecumenato foi criado como um habitat no qual os aspectos distintivos e novos do modo de viver a vida cristã eram ao mesmo tempo praticados e protegidos contra a cultura que era cada vez mais desmoralizada. Acredito que mesmo hoje algo como estas comunidades de catecumenato são necessárias para que a vida cristã possa se afirmar em sua própria maneira.
(1) O processo longamente preparado e implementado para a dissolução do conceito cristão de moralidade esteve marcado, como tentei mostrar, pela radicalidade sem precedentes da década de 1960. Esta dissolução da autoridade moral do ensino da Igreja devia ter necessariamente um efeito sobre os diferentes membros da Igreja. No contexto do encontro das conferências episcopais de todo o mundo com o Papa Francisco, a questão da vida sacerdotal, assim como a dos seminários, é de particular interesse. Uma vez que tem a ver com o problema da preparação nos seminários para o ministério sacerdotal, há, de fato, uma ampla decomposição no que diz respeito à anterior forma de preparação.
Em vários seminários estabeleceram-se grupos homossexuais que agiram mais ou menos abertamente, o que mudou significativamente o clima que se vivia ali. Em um seminário no sul da Alemanha, os candidatos ao sacerdócio e ao ministério leigo de agentes de pastoral (Pastoralreferent) viviam juntos. Nas refeições diárias, os seminaristas e os agentes de pastoral estavam juntos. Os casados, às vezes, estavam acompanhados de suas esposas e filhos; e às vezes com suas noivas. O clima neste seminário não proporcionava o apoio requerido para a preparação da vocação sacerdotal. A Santa Sé sabia destes problemas sem estar informada com precisão. Como primeiro passo, foi acordada uma visita apostólica (N. do T.: investigação) para os seminários nos Estados Unidos.
Como os critérios para a seleção e a nomeação de bispos também mudaram depois do Concílio Vaticano II, a relação dos bispos com seus seminários também tornou-se muito diferente. Acima de tudo, estabeleceu-se a “conciliaridade” como um critério para a nomeação de novos bispos, o que poderia ser entendido de várias maneiras.
De fato, em muitos lugares, entendeu-se que as atitudes conciliares tinham a ver com ter uma atitude crítica ou negativa em relação à tradição existente até então, e que deveria ser substituída por uma relação nova e radicalmente aberta com o mundo. Um bispo, que antes tinha sido reitor de um seminário, fez os seminaristas assistirem a filmes pornográficos com a intenção de torná-los resistentes a condutas contrárias à fé.
Havia – e não apenas nos Estados Unidos da América – bispos que individualmente rejeitavam totalmente a tradição católica e buscavam uma nova e moderna “catolicidade” em suas dioceses. Talvez valha a pena mencionar que em não poucos seminários, os estudantes que eram vistos lendo meus livros eram considerados inadequados para o sacerdócio. Meus livros foram escondidos, como se fossem literatura ruim, e eram lidos apenas às escondidas.
A visita que se fez não deu novas pistas, aparentemente porque vários poderes juntaram forças para maquiar a verdadeira situação. Uma segunda visita foi ordenada e essa permitiu ter novos dados, mas ao final tampouco obteve um resultado satisfatório. No entanto, desde a década de 1970, a situação nos seminários em geral melhorou. E, no entanto, apareceram apenas casos isolados de um novo fortalecimento das vocações sacerdotais, uma vez que a situação geral tinha tomado outro rumo.
(2) A questão da pedofilia, se bem me recordo, passou a ser aguda apenas na segunda metade da década de 1980. Entretanto, já se tinha transformado em assunto público nos Estados Unidos, tanto assim que os bispos foram a Roma para procurar ajuda, já que o direito canônico, conforme foi escrito no novo Código (1983), não parecia suficiente para tomar as medidas necessárias. Na primeira visita, Roma e os canonistas romanos tiveram dificuldades com estas preocupações porque, na sua opinião, a suspensão temporária do ministério sacerdotal deveria ser suficiente para gerar purificação e esclarecimento. Isto não podia ser aceito pelos bispos americanos, porque desse modo os sacerdotes permaneciam a serviço do bispo e, portanto, estavam diretamente vinculados a ele. Lentamente, foi tomando forma uma renovação e aprofundamento da lei criminal do novo Código, construída deliberadamente e com rapidez.
Além disso e no entanto, havia um problema fundamental na percepção do direito penal. Apenas o chamado garantismo (uma espécie de protecionismo processual ao réu) era considerado uma postura “conciliar”. Isso significa que os direitos do acusado tinham de ser garantidos, acima de tudo, até o ponto em que qualquer tipo de condenação fosse completamente excluído. Como contrapeso às opções de defesa, disponíveis para os teólogos acusados e muitas vezes inadequadas, o direito de defesa dos mesmos recorrendo ao garantismo estendeu-se a tal ponto que as condenações eram quase impossíveis.
Permitam-me um breve excurso neste ponto. À luz da escalada da conduta pedófila, uma palavra de Jesus novamente nos interpela: “E se alguém escandalizar um destes pequeninos que creem em mim, seria melhor que lhe pusessem uma pedra de moinho ao pescoço e o atirassem ao mar” (Mc 9, 42).
A palavra “pequeninos” no idioma de Jesus significa os crentes comuns que podem ver sua fé confundida com a arrogância intelectual daqueles que pensam que são inteligentes. Então, aqui Jesus protege o depósito da fé com uma ameaça ou castigo enfático para aqueles que prejudicam estas pessoas.
O uso moderno da frase não é em si errado, mas não deve obscurecer o significado original. Nele fica claro, contra qualquer garantismo, que não apenas o direito do acusado é importante e requer uma garantia. Grandes bens, como a fé, são igualmente importantes.
Assim, uma lei canônica equilibrada, que corresponde à totalidade da mensagem de Jesus, não precisa apenas proporcionar uma garantia para o acusado, para quem o respeito é um direito legal, mas também precisa proteger a fé, que também é um importante e lícito bem. Uma lei canônica adequadamente formada deve então conter uma dupla garantia: a proteção legal do acusado e a proteção legal do bem que está em jogo. Se hoje esta concepção intrinsecamente clara é apresentada, geralmente ela cai em ouvidos moucos quando se trata da questão da proteção da fé como um bem legal. Na consciência geral do direito, a fé não parece mais ter o grau de um bem que requer proteção. Esta é uma situação alarmante que os pastores da Igreja devem considerar e levar a sério.
Agora eu gostaria de acrescentar, às breves notas sobre a situação da formação sacerdotal na época da crise, algumas observações sobre o desenvolvimento do direito canônico nesta matéria.
Em princípio, a Congregação para o Clero é responsável por lidar com crimes cometidos por sacerdotes, mas dado que o garantismo dominou amplamente a situação naquele momento, eu concordei com o Papa João Paulo II em que era apropriado designar esses delitos à Congregação para a Doutrina da Fé, sob o título “Delicta maiora contra fidem”.
Isso possibilitou a imposição da pena máxima, ou seja, a expulsão do estado clerical, que não poderia ter sido imposta sob outras disposições legais. Este não foi um truque para impor a pena máxima, mas uma consequência da importância da fé para a Igreja. De fato, é importante ver que tal má conduta dos clérigos acaba prejudicando a fé.
Tais ofensas são possíveis ali onde a fé já não determina mais as ações humanas.
A severidade do castigo, no entanto, também pressupõe uma prova clara da ofensa: este aspecto do garantismo continuar em vigor.
Em outras palavras, para impor a pena máxima legalmente, é necessário um processo penal genuíno, mas tanto as dioceses como a Santa Sé estão sobrecarregadas por esta exigência. Por isso, formulamos um nível mínimo de procedimentos penais e deixamos em aberto a possibilidade de que a Santa Sé assuma o julgamento ali onde a diocese ou a administração metropolitana não podem fazê-lo. Em cada caso, o julgamento deve ser revisto pela Congregação para a Doutrina da Fé para garantir os direitos do acusado. Finalmente, na quarta feria (N. do T.: a assembleia dos membros da Congregação), estabelecemos uma instância de recurso para oferecer a possibilidade de o acusado apelar.
Como tudo isso ultrapassou as capacidades da Congregação para a Doutrina da Fé e uma vez que não havia outra alternativa senão enfrentar os longos atrasos, devido à natureza particular desta matéria, o Papa Francisco decidiu realizar reformas adicionais.
(1) O que deve ser feito? Talvez devêssemos criar outra Igreja para que as coisas funcionem? Bom, essa experiência já foi feita e já fracassou. Somente a obediência e o amor por nosso Senhor Jesus Cristo podem indicar-nos o caminho. Portanto, primeiro procuremos entender novamente e de dentro (de nós mesmos) o que o Senhor quer e quis conosco.
Em primeiro lugar, gostaria de sugerir o seguinte: se realmente queremos resumir muito brevemente o conteúdo da fé como está na Bíblia, teríamos que fazê-lo dizendo que o Senhor começou uma narrativa de amor conosco e quer abarcar toda a criação nela. A forma para lutar contra o mal que nos ameaça e ao mundo inteiro, só pode ser, em última instância, que entremos nesse amor. É a verdadeira força contra o mal, já que o poder do mal emerge da nossa recusa em amar a Deus. Quem se entrega ao amor de Deus é redimido. Nosso ser não redimido é uma consequência da nossa incapacidade de amar a Deus. Aprender a amar a Deus é, portanto, o caminho da redenção humana.
Vamos tentar desenvolver um pouco mais este conteúdo essencial da revelação de Deus. Podemos dizer que o primeiro dom fundamental que a fé nos oferece é a certeza de que Deus existe. Um mundo sem Deus só pode ser um mundo sem significado. Caso contrário, de onde tudo viria? Em todo caso, não haveria um propósito espiritual. De alguma forma, está simplesmente ali e não tem propósito ou significado. Então, não há padrões de bem ou de mal, e somente o que é mais forte do que outra coisa pode se afirmar, e o poder torna-se o único princípio. A verdade não conta, na realidade não existe. Somente se as coisas tiverem uma razão espiritual têm uma intenção e são chamadas à existência. Somente se existe um Deus Criador que é bom e que quer o bem, a vida humana pode então fazer sentido.
Existe um Deus como criador e a medida de todas as coisas é uma necessidade primeira e primordial, mas um Deus que não se autoexpressa, que não se fizesse conhecido, permaneceria como uma presunção e, em consequência, poderia não determinar a forma [Gestalt] da nossa vida. Para que Deus seja realmente Deus nesta criação deliberada, temos que olhar para Ele para que se expresse de alguma forma. Ele o fez de muitas maneiras, mas decisivamente pelo chamado feito a Abraão e que deu às pessoas que buscavam a Deus a orientação que ultrapassa qualquer expectativa: o próprio Deus torna-se criatura, falando como um homem conosco, seres humanos.
Neste sentido, a frase “Deus é”, transforma-se, em última instância, em uma mensagem verdadeiramente alegre, precisamente porque Ele é mais do que o intelecto, porque Ele cria – e é – amor para que mais uma vez as pessoas tenham consciência disso, a primeira e fundamental tarefa confiada a nós pelo Senhor.
Uma sociedade sem Deus – uma sociedade que O conhece e que O trata como não existente – é uma sociedade que perde a sua medida. Foi em nossos dias que a frase da morte de Deus foi cunhada. Quando Deus morre em uma sociedade, nos é dito, esta torna-se livre. Na verdade, a morte de Deus numa sociedade também significa o fim da liberdade, porque o que morre é o propósito que proporciona orientação, uma vez que desaparece a bússola que nos guia na direção correta que nos ensina a distinguir o bem do mal. A sociedade ocidental é uma sociedade na qual Deus está ausente na esfera pública e não tem nada a lhe oferecer. E essa é a razão pela qual é uma sociedade em que se perde cada vez mais a medida da humanidade. Em pontos individuais, logo parece que o que é mau e destrói o homem transformou-se em questão rotineira.
Este é o caso da pedofilia. Admitiu-se há pouco tempo como algo legítimo, mas se espalhou cada vez mais. E agora nos damos conta, com surpresa, de que as coisas que estão acontecendo às nossas crianças e jovens ameaçam destruí-los. O fato de que isto também pode vicejar na Igreja e entre os sacerdotes é algo que deve nos interpelar de maneira particular.
Por que a pedofilia atingiu tais proporções? A razão, em última instância, é a ausência de Deus. Nós, cristãos e sacerdotes, também preferimos não falar de Deus porque este discurso não parece ser prático. Após a convulsão da Segunda Guerra Mundial, nós na Alemanha ainda tínhamos expressamente em nossa Constituição que estávamos sob a responsabilidade de Deus como um princípio orientador. Meio século depois, já não foi possível incluir a responsabilidade para com Deus como um princípio orientador na Constituição Europeia. Deus é visto como a preocupação partidária de um pequeno grupo e não pode mais ser um princípio orientador para a comunidade como um todo. Esta decisão reflete-se na situação do Ocidente, onde Deus tornou-se um assunto privado de uma minoria.
Uma tarefa primordial, que deve resultar das convulsões morais de nosso tempo, é que novamente comecemos a viver para Deus e sob Ele. Acima de tudo, precisamos aprender mais uma vez a reconhecer Deus como a base da nossa vida em vez de deixá-lo de lado como se fosse uma frase sem efeito. Jamais esquecerei a advertência do grande teólogo Hans Urs von Balthasar que certa vez me escreveu em um de seus cartões postais: “Não pressuponha o Deus trino: Pai, Filho e Espírito Santo, apresente-o!”.
De fato, na teologia, Deus, certamente, sempre é tomado como uma questão de rotina, mas na vida concreta a pessoa não se relaciona com Ele. O tema de Deus parece tão irreal, tão expulso das coisas que nos preocupam e, no entanto, tudo se torna diferente se nós não pressupomos, mas apresentamos a Deus. Não o deixando para trás como uma moldura, mas reconhecendo-o como o centro de nossos pensamentos, palavras e ações.
(2) Deus se fez homem por nós. O homem como Sua criatura está tão perto de seu coração que se uniu a si mesmo e, assim, entrou na história humana de maneira muito prática. Ele fala conosco, vive conosco, sofre conosco e assumiu a morte por nós. Falamos sobre isso em detalhes na teologia, com palavras e pensamentos aprendidos, mas é precisamente desta forma que corremos o risco de nos tornarmos mestres da fé, em vez de sermos renovados e transformados em mestres pela fé.
Consideremos isso com relação à questão central: a celebração da Santa Eucaristia. Nossa maneira de lidar com a Eucaristia só pode gerar preocupação. O Concílio Vaticano II centrou-se corretamente no desenvolvimento do sacramento da presença do corpo e sangue de Cristo, da presença de Sua pessoa, de Sua Paixão, Morte e Ressurreição, no centro da vida cristã e da própria existência da Igreja. Em parte isso realmente aconteceu e deveríamos ser gratos ao Senhor por isso.
E, mesmo assim, uma atitude muito diferente prevalece. O que predomina não é uma nova reverência pela presença da morte e ressurreição de Cristo, mas uma forma de lidar com Ele que destrói a grandeza do Mistério. A diminuição na participação das celebrações eucarísticas dominicais mostra quão pouco os cristãos de hoje sabem apreciar a grandeza do dom que consiste em sua Presença real. A Eucaristia transformou-se em mero gesto cerimonial quando se toma como certo que as boas maneiras requerem que seja oferecida em celebrações familiares ou às vezes em casamentos e funerais a todos os convidados por razões familiares.
A maneira pela qual as pessoas simplesmente recebem o Santíssimo Sacramento na comunhão como algo rotineiro mostra que muitos a veem como um gesto puramente cerimonial. Portanto, quando se pensa sobre a ação que se requer em primeiro lugar, é bastante óbvio que não precisamos de outra Igreja com um desenho próprio. Em vez disso, requer-se acima de tudo a renovação da fé na realidade de que Jesus Cristo nos é dado no Santíssimo Sacramento.
Em conversas com vítimas de pedofilia, fiquei muito consciente com este primeiro e fundamental requisito. Uma jovem que tinha sido acólito me disse que o capelão, seu superior no serviço do altar, sempre introduzia o abuso sexual que ele cometia com as seguintes palavras: “Este é o meu corpo que será entregue por vós”.
É óbvio que esta mulher não pode mais ouvir as palavras da consagração sem experimentar novamente a terrível angústia dos abusos. Sim, temos que implorar urgentemente ao Senhor pelo seu perdão, mas acima de tudo temos que jurar por Ele e pedir-Lhe que nos ensine novamente a entender a grandeza do Seu sofrimento e Seu sacrifício. E temos que fazer tudo o que está ao nosso alcance para proteger dos abusos o dom da Santíssima Eucaristia.
(3) E, finalmente, há o Mistério da Igreja. A frase com que Romano Guardini, há quase 100 anos, expressou a esperança gozosa que havia nele e em muitos outros, permanece inesquecível: “Um evento de importância incalculável começou, a Igreja está despertando nas almas”.
Ele referia-se ao fato de que a Igreja não era experimentada ou vista simplesmente como um sistema externo que entrava em nossas vidas, como uma espécie de autoridade, mas que tinha começado a ser percebida como presente nos corações das pessoas, como algo não meramente exterior, mas que nos movia internamente. Quase 50 anos depois, ao reconsiderar este processo e vendo o que está acontecendo, sinto-me tentado a inverter a frase: “A Igreja está morrendo nas almas”.
De fato, hoje a Igreja é vista amplamente apenas como um tipo de aparelho político. Fala-se dela quase exclusivamente em categorias políticas e isso se aplica inclusive a bispos que formulam sua concepção da Igreja de amanhã quase exclusivamente em termos políticos. A crise, provocada pelos muitos casos de abusos de clérigos, nos faz olhar para a Igreja como algo quase inaceitável que temos que tomar em nossas mãos e redesenhar. Mas uma Igreja que se autoconstrói não pode constituir esperança alguma.
O próprio Jesus comparou a Igreja a uma rede de pesca na qual o próprio Deus separa os bons peixes dos maus. Há também uma parábola da Igreja como um campo no qual o bom grão que o próprio Deus semeou cresce junto com a erva daninha que “um inimigo” secretamente lançou nele. De fato, as ervas daninhas no campo de Deus, a Igreja, são agora visíveis demais e os peixes que não prestam na rede também mostram sua força. No entanto, o campo ainda é o campo de Deus e a rede é a rede de Deus. E em todos os tempos, houve não apenas ervas daninhas ou peixes ruins, mas também as colheitas de Deus e os peixes bons. Proclamar ambos com ênfase e da mesma forma não é uma maneira falsa de apologética, mas um serviço necessário à Verdade.
Neste contexto, é necessário nos referir a um importante texto da Revelação a João. O demônio é identificado como o acusador que acusa nossos irmãos diante de Deus dia e noite. (Apocalipse 12, 10). O Apocalipse toma então um pensamento que está no centro da narrativa do livro de Jó (Jó 1 e 2, 10; 42, 7-16). Ali se diz que o demônio procurava mostrar que a coisa certa na vida de Jó diante de Deus era algo meramente externo. E é exatamente isso que o Apocalipse tem a dizer: o demônio quer provar que não há pessoas corretas, que sua correção só se mostra externamente. Se alguém pudesse se aproximar, então a aparência da justiça cairia rapidamente.
A narrativa começa com uma disputa entre Deus e o demônio, na qual Deus referiu-se a Jó como um homem verdadeiramente justo. Agora será usado como um exemplo para provar quem está certo. O demônio pede que todas as suas posses lhe sejam tiradas para ver que nada resta de sua piedade. Deus permite que ele faça isso, depois do que Jó age positivamente. Então o demônio pressiona e diz: “Pele por pele! Sim, tudo que o homem tem dará por sua vida. Agora, porém, estende a tua mão e toca seu osso e sua carne, e verás se não te amaldiçoa na tua face” (Jó 2, 4f).
Então Deus dá ao demônio um segundo turno. Também toca a pele de Jó e só lhe é negado matá-lo. Para os cristãos, é claro que este Jó, que está de pé diante de Deus como um exemplo para toda a humanidade, é Jesus Cristo. No Apocalipse, o drama da humanidade nos é apresentado em toda a sua amplitude.
O Deus Criador é confrontado com o demônio que fala a toda a humanidade e a toda a criação. Fala não apenas a Deus, mas acima de tudo às pessoas: vejam o que este Deus fez. Supostamente uma boa criação. Na realidade, está cheia de miséria e desprazer. O desânimo da criação é, na realidade, o desprezo de Deus. Quer provar que o próprio Deus não é bom e afastar-nos Dele.
A oportunidade da qual o Apocalipse nos está falando aqui é óbvia. Hoje, a acusação contra Deus é, acima de tudo, desprezo de Sua Igreja como algo maligno em sua totalidade e, portanto, nos dissuade dela. A ideia de uma Igreja melhor, feita por nós mesmos, é de fato uma proposta do demônio, com a qual quer nos afastar do Deus vivo usando uma lógica mentirosa na qual podemos facilmente cair. Não, mesmo hoje a Igreja não é feita apenas de peixes maus e ervas daninhas. A Igreja de Deus também existe hoje e hoje é esse mesmo instrumento através qual Deus nos salva.
É muito importante opor-se com toda a verdade às mentiras e às meias verdades do demônio: sim, há pecado e mal na Igreja, mas inclusive hoje existe a Santa Igreja, que é indestrutível. Ainda hoje há muitas pessoas que humildemente acreditam, sofrem e amam, em quem o Deus verdadeiro, o Deus amoroso, mostra-se a Si mesmo a nós. Deus também tem hoje Suas testemunhas (“martyres”) no mundo. Nós apenas temos que estar vigilantes para vê-los e ouvi-los.
A palavra mártir é tomada da lei processual. No julgamento contra o demônio, Jesus Cristo é a primeira e verdadeira testemunha de Deus, o primeiro mártir, que desde então tem sido seguido por inúmeros outros.
Hoje, a Igreja é mais do que nunca uma Igreja de mártires e, portanto, um testemunho do Deus vivo. Se olharmos ao redor de nós e ouvirmos com um coração atento, poderemos encontrar testemunhas em todos os lugares, especialmente entre as pessoas comuns, mas também nos postos mais altos da Igreja, que defendem a Deus com suas vidas e seu sofrimento. É a inércia do coração que nos leva a não querer reconhecê-los. Uma das grandes e fundamentais tarefas da nossa evangelização é, na medida do possível, estabelecer habitats de fé e, acima de tudo, encontrá-los e reconhecê-los.
Eu moro em uma casa, em uma pequena comunidade de pessoas que descobrem tais testemunhos do Deus vivo na vida cotidiana, e que alegremente me dizem isso. Ver e encontrar a Igreja viva é uma tarefa maravilhosa que nos fortalece e que, uma e outra vez, nos torna alegres na nossa fé.
Ao final das minhas reflexões, gostaria de agradecer ao Papa Francisco por tudo o que faz para nos mostrar a luz de Deus que não desapareceu, mesmo nos dias hoje. Obrigado, Santo Padre!
Bento XVI
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O diagnóstico de Bento XVI sobre a Igreja e os abusos sexuais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU