Na contramão da legislação, o direito à moradia ainda é suplantado pelo direito absoluto de propriedade. Entrevista especial com Cristiano Müller

Ocupação Steigleder, em São Leopoldo - RS | Foto: Gabriel Ost - Agexcom

Por: Wagner Fernandes de Azevedo | Edição: João Vitor Santos | 27 Março 2019

Não se pode descolar do debate acerca das ocupações urbanas a discussão em torno do direito à moradia. Mesmo assim, muitos insistem em julgar famílias que ocupam uma área abandonada para ali erguerem seus tetos. Por trás disso está o valor excessivo que a sociedade dá à propriedade privada e, assim, vê a busca por moradia como uma ameaça aos seus direitos. “As ocupações urbanas no Brasil se caracterizam basicamente pela espontaneidade. São grupos de pessoas que estão em estado de vulnerabilidade social, sem condições de pagar aluguel, ou que vivem em casas de parentes e que, em virtude da existência de um vazio urbano na cidade, que pode ser um prédio ou uma área de terras abandonada, passam a ocupá-lo de modo precário, sem qualquer infraestrutura, na esperança de que um dia aquele espaço seja sua moradia”, explica o advogado Cristiano Müller. Na fala de Cristiano, fica clara a necessidade de se derrubar o mito de que essas famílias vão sufocar o direito de alguém, quando, na verdade, buscam apenas o seu.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o advogado, que atua na área habitacional e de direitos humanos, destaca que a legislação tem avançado no sentido de assegurar o direito a um teto para toda família. “O Código Civil Brasileiro, a partir da reforma de 2002, recepciona todos esses instrumentos e avança mais ainda para a ‘desapropriação por abandono’, ‘função socioambiental da propriedade’, entre outros”, exemplifica. Entretanto, aponta que, na prática, a realidade é outra. “Quando está em jogo o conflito entre o direito de propriedade e o direito à moradia se joga tudo isso fora e se fica com a lei processual civil que, mesmo com a reforma de 2015, ainda deixa fortalecido o direito do proprietário de despejar o ocupante”, pontua. E acrescenta: “vem também a criminalização dos movimentos sociais”.

Para Cristiano, diante dessa realidade, a saída possível é “buscar outros campos de mediação que tenham uma perspectiva de direitos humanos”. Ou seja, equalizar tanto o direito de quem busca uma casa, como de quem quer assegurar sua propriedade. Assim, o advogado desafia a encarar a falta de moradia, pois “fato é que as pessoas não desaparecerão após um despejo. O máximo que pode ocorrer é ocuparem uma outra área abandonada que provavelmente será de risco e sem cumprir função social”.

Cristiano Müller (Foto: Marcelo Camargo | Agência Brasil)

Cristiano Müller possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS e doutorado em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela Universidad Pablo de Olavide, de Sevilha, Espanha. Ainda realizou estágio pós-doutoral na PUCRS. Atualmente é coordenador jurídico do Centro de Direitos Econômicos e Sociais - CDES e atua como conselheiro estadual de Direitos Humanos no Rio Grande do Sul.

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como se caracterizam as ocupações no Brasil? Quais são as regiões com maior déficit habitacional?

Cristiano Müller — As ocupações urbanas no Brasil se caracterizam basicamente pela espontaneidade. São grupos de pessoas que estão em estado de vulnerabilidade social, sem condições de pagar aluguel, ou que vivem em casas de parentes e que, em virtude da existência de um vazio urbano na cidade, que pode ser um prédio ou uma área de terras abandonada, passam a ocupá-lo de modo precário, sem qualquer infraestrutura, na esperança de que um dia aquele espaço seja sua moradia. Muitas vezes, esses espaços se localizam em áreas de risco.

A prática demonstra que as ocupações espontâneas são muito maiores que as áreas ocupadas de modo organizado e por movimentos sociais. Essas ocupações passam por um processo agudo de desqualificação. Primeiro, a desqualificação da posse, já que não há nenhum tipo de titulação jurídica que garanta a permanência das famílias no local ocupado, apesar de haver casos de ocupações com mais de 100 anos de posse e que até hoje não foram regularizadas pelo poder público. Mesmo assim, as pessoas que vivem nesses espaços muitas vezes são despejadas em processos de reassentamentos sem garantia de direitos.

Essa falta de titulação é usada pelo poder público como justificativa para não levar aos moradores de uma ocupação os serviços públicos mais básicos, como energia elétrica, água, arruamento, assistência social, entre outros. Mais ainda: essa falta de titulação (regularização fundiária) desqualifica também os moradores de uma ocupação que são tratados como subcidadãos de direito e lhes é negada diariamente cidadania porque vivem numa área ocupada (invadida).

Assim, acabam deixando de matricular as crianças na rede de ensino, ficam sem atendimento em posto de Saúde. Em alguns casos são, inclusive, vítimas de violência policial ou do proprietário da área ou até mesmo vítimas de violência do Estado quando sofrem uma ação de reintegração de posse determinada pelo Poder Judiciário, com uso de força para demolição das moradias e de prisão para quem resistir à ordem dada.

Sudeste

Não há dúvidas de que a região Sudeste do Brasil é a que concentra maior número de ocupações. Isso se dá em função do maior número do déficit habitacional. Porém, esse dado deve ser levado em conta com o número de habitantes de uma cidade.

IHU On-Line — Quais têm sido os ataques e ameaças aos movimentos de moradia? Como essas práticas se convertem em um processo de criminalização? Quais os desafios para superar esse cenário?

Cristiano Müller — Os ataques aos movimentos sociais de moradia surgem justamente quando estes movimentos tentam mediar uma situação de grave violação dos direitos humanos, como é, por exemplo, uma ameaça de despejo. No Brasil, é muito curioso, pois existe uma legislação urbana consolidada (ao menos no texto da lei) que prevê a moradia como direito fundamental social (art. 6º da Constituição Federal), a aplicação da função social da propriedade através de instrumentos, mecanismos e diretrizes estatuídas pelo Estatuto da Cidade e pelos Planos Diretores das Cidades.

Além disso, o Código Civil Brasileiro, a partir da reforma de 2002, recepciona todos esses instrumentos e avança mais ainda para a “desapropriação por abandono”, “função socioambiental da propriedade”, entre outros. Porém, quando está em jogo o conflito entre o direito de propriedade e o direito à moradia se joga tudo isso fora e se fica com a lei processual civil que, mesmo com a reforma de 2015, ainda deixa fortalecido o direito do proprietário de despejar o ocupante. Seguido a isso vem também a criminalização dos movimentos sociais com o crime de esbulho possessório contra os ocupantes da área ou ainda verificação de crimes ambientais, se for o caso.

A única possibilidade de se superar um cenário grave como esse é buscar outros campos de mediação que tenham uma perspectiva de direitos humanos. Em alguns casos, o Poder Judiciário parece se dar conta disso quando estabelece limites para o cumprimento de uma ordem de despejo, quando estabelece uma mediação para uma ação que pode redundar no despejo dos ocupantes. Fato é que as pessoas não desaparecerão após um despejo. O máximo que pode ocorrer é ocuparem uma outra área abandonada que provavelmente será de risco e sem cumprir função social.

IHU On-Line — Como os movimentos de luta pela moradia podem contribuir para diminuir as desigualdades urbanas?

Cristiano Müller — Os movimentos sociais de moradia já exercem um grande papel nesse ponto. Veja-se que as Ocupações Urbanas vivem num processo de desqualificação total e de subcidadania impostas pelo mercado imobiliário e pelo poder público. Pois os movimentos sociais e as organizações não governamentais que dão apoio a essas ocupações tratam de dar visibilidade para essas pessoas e coletivos garantindo que sejam ouvidas ao menos, que seja resgatada a humanidade das ocupações quebrando esse processo de desqualificação da posse e das pessoas. Esses atores são importantíssimos porque têm capacidade de articulação e de colocar na pauta do poder público o problema da moradia e de uma determinada ocupação, tornando o problema visível e procurando soluções que garantam os direitos humanos.

IHU On-Line — Em que medida podemos afirmar que o Estado se furta a cumprir a Constituição Federal no que diz respeito às garantias de moradia? Como superar os “limites” impostos pela especulação imobiliária?

Cristiano Müller — A reposta para essa pergunta remonta a todo o processo trágico de tomada do território brasileiro pelos europeus e a consequente desorganização urbana que daí se sucedeu. Nunca se pensou nas cidades como um espaço de usufruto comum, e sim numa compartimentação de classes sociais em que uns tinham mais direitos que outros. Lamentavelmente, isso persiste até hoje. É urgente a necessidade de se resgatar o sentido de cidade comum para todos e todas e não somente as cidades para usufruto de um grupo específico.

Como garantir moradia para pessoas em estado de vulnerabilidade se elas nunca foram consideradas cidadãos de direito no Brasil? A única experiência recente de produção habitacional nacional em massa – o programa Minha Casa Minha Vida – está totalmente destroçado na “faixa 1”, que é onde se concentra em torno de 90% do déficit habitacional brasileiro. Essa realidade vem desde o governo Temer e continua com a mesma política no governo atual. Dentro dessa lógica, para quem o Brasil quer produzir moradia então? Temos que levar em conta ainda a emenda constitucional que cortou os gastos sociais no Brasil e que impede suplementações de verbas orçamentárias, o que é um absurdo num país tão socialmente injusto como o nosso.

IHU On-Line — O senhor menciona que a legislação urbana no Brasil é consolidada, mas é mal aplicada. Entretanto, existem casos de aplicabilidade da legislação de forma mais avançada?

Cristiano Müller — Basicamente, o Estatuto da Cidade estabelece os princípios e as diretrizes para a política urbana nacional. Cabe aos municípios tratar de regulamentar esses instrumentos e torná-los operativos nas cidades. O caminho para isso é mediante lei municipal e estabelecimentos de estrutura local para aplicação desses instrumentos.

IHU On-Line — Quais os avanços das políticas habitacionais nos últimos anos? E quais os maiores desafios para essas políticas públicas?

Cristiano Müller — Não há como negar que o programa Minha Casa Minha Vida - MCMV representou um avanço na produção habitacional brasileira. Foram milhões de moradias construídas nos últimos anos, o que não deu conta ainda do déficit habitacional, mesmo sendo um programa muito importante.

Duas coisas são urgentes. Primeiro, que o programa não acabe e que sejam feitas as suplementações de verbas para as obras iniciadas, contratadas e em contratação e selecionadas. São milhares de famílias que verão frustradas suas esperanças de um teto e de sair, por exemplo, de uma área de risco ou de uma habitação precária. Nessa mesma linha, retomar definitivamente o programa na Faixa 1, a que mais demanda tem de moradia.

Por outro lado, é importante se fazer a discussão de que o programa MCMV não pode ser somente um instrumento de produção habitacional, deve ser também um instrumento de produção de cidades. Ou seja, deve questionar: qual cidade que queremos? Uma cidade que exclui ou que inclui? O programa deve dialogar com os demais instrumentos do Estatuto da Cidade que garantem o uso compulsório dos imóveis, por exemplo, na expectativa também de se garantir produção habitacional nas áreas mais centrais e dotadas de infraestrutura e não somente na periferia da periferia.

IHU On-Line — Além do direito à moradia, por que as ocupações vinculam suas reivindicações ao direito à cidade?

Cristiano Müller — As demandas das ocupações urbanas são sempre muito maiores do que a demanda por uma moradia ou um teto. São demandas amplas de reconhecimento de direitos na cidade e à cidade. Juntamente com a moradia, devem ser garantidos todos os serviços públicos essenciais, acesso à educação e à saúde de qualidade, mobilidade urbana para deslocamento com dignidade na cidade, lazer e usufruto dos espaços públicos.

As áreas ocupadas nas cidades, quando não um prédio no centro da cidade, estão em locais onde a cidade não chegou ainda com todos os seus serviços, porque lá está o vazio urbano no qual não foi aplicado nenhum instrumento jurídico do Estatuto da Cidade de indução de utilização compulsória da área, como o IPTU Progressivo, a desapropriação por abandono, entre outros. Uma vez ocupada uma área como essa, lá precisa chegar a cidade com os seus serviços públicos.

Além disso, a segregação nas cidades é visível e fica ainda mais evidente quando vemos os indicadores de segurança pública, mais especificamente o número de assassinatos de jovens e negros que residem em áreas precárias das cidades dominadas por facções criminosas, as quais impõem a sua própria lei em detrimento do Estado e do seu aparato de segurança que lá não chega. Por isso, a visibilidade dessas ocupações é importantíssima. No entanto, é regra que as ocupações sejam invisíveis e que as pessoas e comunidades que lá vivem sejam submetidas a situações de suspensão de direitos, o que vai até contra a humanidade das pessoas e sua dignidade humana.

IHU On-Line — Qual a importância de compreender as ocupações para além do estigma de “invasores”? Por que “ocupar” é diferente de “invadir”?

Cristiano Müller — Não é só uma disputa de palavras. Quando os europeus conquistaram as Américas, John Locke criou o argumento teórico para justificar a conquista de territórios e das riquezas existentes. Dizia ele que os povos indígenas em estado natural poderiam ser submetidos à opressão porque não eram humanos, já que não tinham alma porque não temiam a Deus. Poderiam ter seu território ocupado e suas terras tomadas porque não cultivavam a terra.

No caso das ocupações urbanas, lamentavelmente, ocorre o mesmo quando se trata de retirar a humanidade das pessoas que ocupam uma área, nominando-as pejorativamente de invasores via processo de desqualificação da posse e daí das pessoas e comunidades mediante a suspensão de direitos. Ao se retirar a humanidade dessas pessoas e retirar-lhes a cidadania, significa que se pode fazer qualquer coisa contra elas, caso resistam a uma ordem de despejo, por exemplo.

Daí que surgem as violências policiais e estatais que ocorrem nas desocupações. Contra quem não é humano se utiliza de todas as forças do Estado para garantir os direitos humanos. O nome disso é Princípio da Inversão Ideológica dos Direitos Humanos. Por isso que é importante colocar a discussão em outro patamar e retomar imediatamente a humanidade das ocupações, começando pelo nome do ato de ocupar, que é a defesa do legítimo direito de morar por pessoas e coletivos em flagrante estado de vulnerabilidade social. Mediante o reconhecimento da necessidade de serviços públicos urgentes para as comunidades ocupadas e, também, mediante a interface com as universidades para a realização de oficinas com crianças, festas comunitárias e atividades de geração de renda que também garantam alternativa de sustento aos moradores.

IHU On-Line — Como garantir segurança para as famílias que sofrem ações de despejo?

Cristiano Müller — A minha prática na defesa dessas ocupações me ensinou que o serviço jurídico é muito importante, porém sozinho não garante segurança na posse para as famílias.

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