28 Fevereiro 2019
Dois dos bispos que organizaram a recente cúpula do Papa Francisco sobre os abusos sexuais do clero dizem que o Vaticano deve começar a revelar as razões para a remoção de um prelado católico, sinalizando uma mudança de política potencialmente significativa para a Igreja global.
A reportagem é de Joshua J. McElwee, publicada em National Catholic Reporter, 27-02-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em entrevistas separadas de meia hora de duração com o NCR, o cardeal de Chicago, Blase Cupich, e o arcebispo maltês Charles Scicluna também indicaram que os procedimentos que o papa desenvolveu em 2016 para iniciar a remoção de bispos considerados negligentes em casos de abuso de clérigos devem ser atualizados para torná-los mais transparentes.
Os prelados também compartilharam as esperanças de que o envolvimento de 12 mulheres durante a reunião de 21 a 24 de fevereiro sobre a proteção das crianças estabelecerá um padrão para uma participação crescente de mulheres em futuros encontros vaticanos, incluindo os sínodos dos bispos.
Sobre a questão de dizer ao público por que um bispo está sendo destituído do cargo, Cupich e Scicluna foram bastante diretos.
“Eu acho que, se uma pessoa for removida do cargo, deve-se indicar a razão”, disse Cupich, em entrevista no dia 25 de fevereiro no Pontifício Colégio Norte-Americano. “Não há nenhuma razão pela qual isso não aconteça.”
Scicluna, em entrevista no dia 26 de fevereiro na Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano, disse que, no passado, “havia uma resistência em dar a verdadeira razão ou as verdadeiras razões”.
“Isso precisa mudar”, disse o arcebispo, que lidera a Arquidiocese de Malta e é secretário adjunto da Congregação doutrinal.
Scicluna observou que a remoção de um bispo pode ocorrer devido a relatos enviados a Roma pela diocese do prelado ou pela sua conferência nacional. As pessoas, disse, “têm o direito de saber o resultado do seu relatório”.
Cupich e Scicluna organizaram a cúpula sobre o abuso do clero junto com o cardeal indiano Oswald Gracias, o padre jesuíta Hans Zollner e duas subsecretárias do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida: Linda Ghisoni e Gabriella Gambino.
O Vaticano não indica qualquer razão quando um bispo é removido do cargo. O anúncio é feito no seu boletim diário, dizendo que o prelado “renunciou ao governo pastoral” da sua diocese.
Embora o Vaticano identificasse anteriormente o cânone da Igreja em relação ao qual um bispo havia renunciado, permitindo que os observadores dessem um palpite educado sobre as razões por trás da renúncia, essa prática terminou em setembro de 2016.
Os sobreviventes de abuso e seus defensores argumentam há muito tempo que nomear as razões das renúncias dos bispos serviria como incentivo para que os prelados lidem com casos de abuso de acordo com o procedimento.
Em sua entrevista, Cupich observou que o Vaticano dizia no passado quando um bispo estava sendo removido por algum tipo de questão sobre sua adesão à doutrina da Igreja.
“Eu acredito que, se um bispo foi removido por incompetência – financeira, administrativa ou qualquer outra coisa – essas coisas devem ser ditas”, disse ele.
Cupich e Scicluna falaram em entrevistas focadas na revisão dos eventos da cúpula, que foi a primeira desse tipo e envolveu Francisco, os chefes das Conferências Episcopais do mundo, superiores gerais de ordens religiosas e líderes de escritórios vaticanos.
Durante quatro dias, os 190 prelados participantes discutiram três temas principais relacionados aos escândalos de abuso: a responsabilidade, a prestação de contas e a transparência. Eles também ouviram testemunhos de sobreviventes de abuso e até ouviram um sobrevivente tocar violino em uma liturgia penitencial.
Ambos os bispos elogiaram particularmente as falas de Ghisoni, da irmã nigeriana Veronica Openibo, (veja o vídeo abaixo) da Sociedade do Santo Menino Jesus, e da jornalista mexicana Valentina Alazraki, (veja o vídeo abaixo) que cobriu o Vaticano por cerca de 40 anos.
Openibo, superiora da sua ordem e membro do conselho executivo da União Internacional das Superioras Gerais, com sede em Roma, foi uma das 10 irmãs convidadas a participar da cúpula.
Em seu discurso, ela criticou eloquentemente aquilo que chamou de uma cultura da “mediocridade, hipocrisia e complacência”, que, segundo ela, levou a Igreja a um “lugar vergonhoso e escandaloso”.
Cupich chamou Openibo de “transparente e honesta”. Scicluna disse ter ficado “impressionado com a sua inteligência, mas também com a sua inteligência emocional”.
“No fim das contas, o que eu levei comigo da Ir. Veronica foi a sua coragem e a sua decisão de dizer a verdade ao poder”, disse Scicluna. “Eu acho que foi isso que ela conseguiu fazer.”
No dia 25 de fevereiro, seis das irmãs que participaram da cúpula disseram esperar que sua presença no evento estabeleça um padrão para uma crescente presença de mulheres nas reuniões vaticanas. Elas também expressaram o desejo de serem nomeadas como membros plenos dos futuros sínodos dos bispos, no sentido de que possam votar nos documentos sinodais.
Questionado sobre essa possibilidade, Cupich respondeu: “Eu acho que não há nenhuma razão para não fazermos isso. Eu seria totalmente favorável a isso.”
“Elas acrescentaram muito ao encontro”, acrescentou.
Em termos de tornar norma a presença de mulheres nas reuniões vaticanas, Scicluna respondeu: “Eu acho que há um futuro para isso”.
Ele observou que três dos nove discursos proferidos na cúpula sobre o abuso foram de mulheres. Ele disse que isso “ajudou as lideranças a perceberem a extraordinária sabedoria e riqueza que as mulheres trazem ao discernimento”.
“Você podia ver isso acontecendo”, disse Scicluna. “E podia ver o papa, com sua reação e palavras de apreciação, percebendo isso.”
“Eu acho que essa tem que ser uma experiência que precisaremos repetir”, disse. “Porque foi muito positiva e muito esclarecedora também.”
Cupich e Scicluna também concordaram com o impacto que os testemunhos dos sobreviventes provocaram sobre os bispos presentes na cúpula.
Cupich disse que o sobrevivente de abusos tocando violino na Sala Regia do Palácio Apostólico na liturgia penitencial foi “uma das coisas mais poderosas que já vi”.
“Eu acho que não havia ninguém na Sala Regia que não tenha ficado profundamente impactado no seu coração”, disse ele. “Eu vi a conversão acontecendo nos bispos naquele momento.”
“Foram as vítimas que fizeram esse encontro”, afirmou. “Isso foi o fundamental em torno de tudo isso. Não vamos fazer nenhum progresso aqui se não ouvirmos as vítimas.”
Scicluna disse que os sobreviventes presentes no encontro “não podem deixar você indiferente, porque é uma experiência muito difícil”.
“Eu continuo dizendo, e estou convencido disto, que, se as pessoas realmente querem saber o que é o abuso sexual, elas precisam conhecer as vítimas e ouvi-las”, disse.
“Não há nenhum outro caminho”, disse Scicluna. “É um caminho doloroso, mas não há outro jeito de fazer as contas com aquilo que estamos lidando.”
Cupich e Scicluna falaram sobre a divulgação das razões para a renúncia dos bispos em resposta a perguntas sobre uma lei que Francisco assinou em 2016, que especifica que a negligência de um bispo em casos de abuso pode levar à sua demissão.
A lei, publicada como motu proprio e intitulada “Como uma mãe amorosa”, deu poderes a quatro escritórios vaticanos para investigar tais bispos e iniciar processos de remoção. Mas não ficou claro como cada um dos escritórios está perseguindo tais casos.
Cupich disse que os quatro escritórios envolvidos – as Congregações para os Bispos, para as Igrejas Orientais, para a Evangelização dos Povos e para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica – estão “cooperando juntas” em algum tipo de esclarecimento sobre como os bispos são sendo responsabilizados.
“Elas não podem fornecer isso individualmente”, disse o cardeal. “Elas têm que padronizar isso. Elas têm que ter uma maneira comum de fazer isso. Então, elas estão trabalhando juntas agora, pelo que eu entendo, para fazer com que isso aconteça.”
Cupich também revelou que a lei “já foi aplicada pela Congregação para os Bispos em alguns casos”, mas não citou quais.
Scicluna disse que a questão da transparência no modo como a lei está sendo aplicada está “na pauta” das reuniões subsequentes após o fim da recente cúpula.
“Eu acho que um resultado ideal seria ter diretrizes claras sobre como se deve lidar com a responsabilização de um bispo, com a má conduta pessoal e com questões administrativas no nível local e, depois, no nível da Santa Sé”, disse ele.
Scicluna sugeriu que poderá haver “uma versão revisada” ou um “novo estatuto” para o motu proprio “Como uma mãe amorosa”, que “dê um modelo que seja seguido por todas as Congregações”.
Cupich e Scicluna também responderam às críticas de que a lei de 2016 diluiu a decisão original de Francisco, tomada por sugestão da Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores, de criar um novo tribunal no Vaticano para julgar os bispos que respondam inadequadamente a acusações de abuso sexual.
“O motu proprio deixa claro que um bispo pode ser removido não apenas porque ele fez algo errado intencionalmente, que tenha sido culpa dele, mas por incompetência”, disse Cupich.
“Esse é um nível muito mais baixo do que provar falha ou culpa”, disse. “Quando as pessoas dizem que querem um tribunal, isso só complica as coisas.”
Scicluna disse que a lei de 2016 “não exige malícia na administração, mas sim a incapacidade ou inabilidade objetiva de fazer a coisa certa”.
“Isso torna mais fácil que as pessoas denunciem, porque elas não precisam provar a malícia de uma liderança, de um bispo ou de um superior geral que não esteja fazendo o seu trabalho”, disse. “E a remoção não pode ser uma penalidade, porque é isso que o bem da Igreja e da comunidade de fé exige.”
Cupich também falou sobre o seu próprio discurso na cúpula, no qual ele apresentou aspectos de uma proposta que ele já havia feito ao Vaticano de dar poderes aos arcebispos metropolitanos para examinarem acusações feitas contra bispos em suas regiões.
Ele ressaltou as raízes eclesiológicas da proposta, que alguns teólogos dizem que corresponde aos poderes que os metropolitas exerciam em séculos anteriores. Ele também disse que, ao contrário de outros possíveis planos sobre como investigar os bispos, a proposta não dependeria do fato de os bispos individuais optarem por entrar no sistema.
“Não pode ser uma escolha”, disse Cupich. “Isso tem que estar estruturado em nossa compreensão eclesiológica tradicional sobre a responsabilização das pessoas, e isso era feito no passado pelo metropolita.”
“Eu não acho que seja algo seguro tornar isso opcional”, acrescentou. “Não é assim que devemos fazer.”
Cupich disse que sua proposta envolveria os leigos “do começo ao fim”, já que as acusações seriam relatadas não apenas ao metropolita, mas também ao seu conselho de revisão e ao seu conselho consultivo.
Questionado sobre a proposta referente ao arcebispo metropolitano, Scicluna disse que achava que uma revisão da lei de 2016 de Francisco poderia “conter indicações nas mesmas linhas daquilo que o cardeal Cupich estava propondo”. Como o fato de “adotar procedimentos não apenas para os Estados Unidos, mas em todo o mundo, que lidem com questões de má conduta por parte dos bispos e de responsabilização pela sua administração no nível local”, especificou. “E, então, o próximo estágio seria no nível da Santa Sé.”
Cupich, Scicluna e os outros organizadores da cúpula se reuniram no dia 25 de fevereiro com os chefes de dicastérios do Vaticano para discutir a continuação do encontro de quatro dias.
Cupich disse que, na reunião, “ficou claro que este é um momento em que estamos em um ponto sem volta”.
“Todos na sala entenderam isso, que não se trata de algo que possamos pensar que vai desaparecer”, disse. “Todos nós temos que trabalhar juntos para ter a certeza de que estamos em sintonia em relação a tudo isso. E temos que seguir em frente.”
Questionado sobre as resistências à mudança por parte das autoridades vaticanas, Cupich respondeu: “O papa deixou claro o que ele quer que eles façam”.
Sobre esse assunto, Scicluna respondeu: “É uma questão de mudança de coração, até mesmo na Cúria Romana e na liderança da Cúria Romana”.
Assim como o papa, Cupich e Scicluna também falaram sobre a necessidade de criar uma mudança na cultura clerical. Cupich disse que o primeiro passo nesse processo é garantir que nos seminários “não haja um senso de privilégio”.
“Quanto mais você introduz os padres no ministério colaborativo com os leigos, você quebra as barreiras do medo, e isso pode ser um antídoto ao clericalismo”, disse. “O outro lado do clericalismo é a colaboração.”
Scicluna disse que criar uma mudança na cultura clerical é “uma questão do coração”.
“São necessárias gerações para mudar uma cultura”, disse ele. “Mas eu acho que, quanto mais a voz das vítimas se torne uma voz na comunidade, e não fora da comunidade, mais rápido a mudança acontecerá.”
“A voz das vítimas, a sua narrativa, a sua experiência sempre será a essência”, disse.
Cupich comparou a cúpula ao Concílio Vaticano II, entre 1962 e 1965, que introduziu várias reformas na Igreja Católica.
“Muitas pessoas disseram ao longo dos anos que o Concílio Vaticano II nos colocou em uma nova trajetória na Igreja”, disse ele. “Eu acho que este encontro foi esse tipo de evento.”
“Eu acho que estamos em uma nova trajetória”, afirmou.
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Vaticano deve indicar as razões da remoção de um bispo, defendem Cupich e Scicluna - Instituto Humanitas Unisinos - IHU