16 Outubro 2018
A recente carta do Cardeal Marc Ouellet para o Arcebispo Carlo Maria Viganò aparece em um momento em que os tradicionalistas da Igreja estão traçando estratégias para o próximo conclave.
O comentário é de Robert Mickens, publicada por La Croix International, 12-10-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
Os apoiadores mais fiéis do Papa Francisco têm elogiado o Cardeal Marc Ouellet por ter repreendido fortemente o Arcebispo Carlo Maria Viganò, o qual alguns meses atrás pediu para o papa renunciar de seu cargo porque — entre outras acusações — o pontífice teria ignorado intencionalmente denúncias de abuso sexual cometidos pelo ex-Cardeal Theodore McCarrick. Ouellet, franco-canadense prefeito da Congregação para os Bispos desde 2010, publicou uma contundente carta aberta para Viganò no dia 7 de outubro, na qual ele rechaça o ex-núncio por ter soltado uma grande “denúncia sensacionalista” contra o Papa.
Desde a publicação de seu longo “testemunho” (por meio de dois veículos católicos tradicionalistas), Viganò vem publicando outros documentos e dado uma série de entrevistas clandestinas para reiterar suas acusações. Ouellet chama essas alegações de “falsas”, “forçadas”, “blasfemas”, “incompreensíveis”, “repugnantes” e politicamente motivadas para atacar Francisco.
Sendo assim, três vivas para Marc Ouellet, certo? Porque, nas palavras de um velho observador do Vaticano, a carta aberta do prefeito “destrói totalmente” as alegações de Viganò.
Bem, não exatamente. Como Paul Moses escreveu recentemente no sítio Commonweal, ainda há alguns furos mal resolvidos nessa história, e a carta de Ouellet não os preenche.
Aqueles que julgaram concretas as acusações de Viganò e dignas de uma resposta do Vaticano que explicasse ponto por ponto ficaram ainda menos impressionados com a refutação do cardeal.
Mas deixemos de lado, só por um momento, as acusações e contra-acusações de Viganò e façamos a seguinte pergunta: qual, afinal de contas, foi o propósito por trás da carta aberta de Ouellet? Teria sido realmente, e somente, para defender o Papa Francisco ou teria sido para defender seu próprio nome?
O Arcebispo Viganò, núncio dos Estados Unidos de 2011 até 2016, mencionou o cardeal canadense apenas duas vezes, e de forma secundária, em seu “testemunho” original de 11 páginas.
Porém, em sua carta mais recente, divulgada no dia 27 de setembro, ele ridicularizou Ouellet por abdicar de seus princípios mais conservadores e se permitir dar apoio para um Papa corrupto e não ortodoxo.
“No início do pontificado do Papa Francisco, (Ouellet) manteve sua dignidade, mostrando a coragem que tinha quando era Arcebispo de Québec,” escreve Viganò.
“Porém, mais tarde, quando seu trabalho de prefeito na Congregação para os Bispos começou a ser enfraquecido em razão de recomendações para indicações episcopais estarem sendo passadas diretamente a Francisco por dois ‘amigos’ homossexuais de seu dicastério, sem passar por ele, o cardeal desistiu.
Seu longo artigo no L’Osservatore Romano, no qual se mostra a favor dos aspectos mais controversos do Amoris laetitia, representa a sua rendição,” disse o ex-núncio.
Dessa forma, dirigindo-se diretamente ao cardeal, Viganò insinuou que Ouellet estava escondendo informações -- ou seja, o cardeal não estava revelando a verdade sobre o caso de McCarrick.
“Sua Eminência, antes de eu ir para Washington, foi você quem me contou das sanções do Papa Bento XVI a McCarrick. Você tem à sua completa disposição documentos claros incriminando McCarrick e muitos outros da cúria por seus acobertamentos. Sua Eminência, peço-lhe para testemunhar a verdade.”
Essas palavras, evidentemente, foram um pouco pessoais demais para o Cardeal Ouellet.
“Me dou conta de que estou perdendo a dignidade que você reconheceu em mim pelo simples fato de eu ter permanecido fiel às recomendações do Santo Padre no serviço que ele me confiou na Igreja,” começa o cardeal.
Em seguida, antes de usar argumentos para o distanciar juntamente de Francisco das acusações de Viganò, ele diz: “Com a devida permissão pontifícia, eu ofereço aqui meu testemunho pessoal.”
Alguns formadores de opinião supõem que o Papa não só deu a Ouellet permissão de publicar sua carta aberta a Viganò, mas também — ele ou seus ajudantes mais próximos — encorajaram e ajudaram o cardeal a escrevê-la.
De qualquer modo, sabe-se que Francisco não foi a favor da ideia. Diferentes fontes do Vaticano dizem que precisou de algum esforço para convencer o Papa, o qual consentiu de má vontade com a publicação da carta.
Isso seria mais complacente com a maneira a qual o Papa Francisco respondeu às acusações de Viganò até agora.
Quando em agosto as acusações iniciais começaram a aparecer, o Papa disse que não falaria “uma única palavra” no momento, acrescentando que ele “deveria” decidir se falaria ou não em breve. E ele ainda não falou.
Seu conselho formado por nove cardeais (C9), em uma nota no dia 10 de setembro, expressou apoio ao Papa e disse que o Vaticano estava preparando uma resposta que ofereceria “as explicações eventuais e necessárias” sobre as alegações de Viganò.
Então, no dia 6 de outubro, um comunicado do Vaticano disse que o Papa encomendou um “estudo minucioso de toda a documentação presente nos arquivos dos dicastérios e escritórios da Santa Sé relacionada ao ex-Cardeal McCarrick, visando averiguar todos os fatos relevantes, para os colocar em seus contextos históricos e os avaliar objetivamente.”
A carta aberta de Ouellet para o Arcebispo Viganò foi publicada um dia depois no sítio de notícias e informações oficial do Vaticano.
Até agora o cardeal franco-canadense é o único representante do Vaticano, entre dezenas de acusados pelo ex-núncio de ter encoberto o caso de McCarrick, a emitir uma resposta. Ele é chefe de apenas um de uma série de escritórios da Santa Sé que supostamente teriam informações sobre McCarrick em seus arquivos.
Por que ele resolveu tomar essa decisão unilateral e não esperar por um esclarecimento conjunto do Vaticano?
O motivo real deve estar ligado com uma intenção mais séria e ameaçadora que muitas pessoas têm atribuído à decisão do Arcebispo Viganò de “atacar” o Papa.
“Realmente parece uma jogada óbvia dos conservadores de deslegitimar Francisco,” de acordo com David Gibson, diretor do Centro de Religião e Cultura da Universidade de Fordham de Nova York.
“Tudo isso foi cuidadosamente coordenado pela mídia católica conservadora e cuidadosamente feito na hora programada,” disse Gibson nos dias imediatamente após a publicação do “testemunho” original do ex-núncio.
Gibson, que trabalhou na Radio Vaticano e foi por muito tempo repórter no Vaticano e nos Estados Unidos, disse à agência de notícias Reuters que acreditava que os conservadores estavam preparando terreno para que um deles seja eleito o próximo Papa ao danificar o legado de Francisco antes dele morrer ou renunciar.
“É o início da campanha para o próximo conclave,” disse ele.
Na verdade, a “campanha” começou há mais ou menos um ano, muito antes de Viganò publicar suas acusações explosivas contra o Papa.
Antes disso, Francisco e seus aliados, mesmo sendo fortemente criticados pelos tradicionalistas da Igreja, estavam consolidando com confiança os esforços do Papa para construir uma fundação sólida visando reformas eclesiais irreversíveis.
Os críticos de Francisco parecem ter aceitado com relutância que nada poderia ser feito para interromper seus trabalhos até o próximo pontificado.
E enquanto eles estavam brincando de “esperar o Papa Francisco sair”, alguns do grupo começaram a procurar caminhos para preparar uma estratégia para aumentar as chances de eleição de um Papa mais tradicionalista e doutrinariamente descompromissado. Não seria algo fácil, dado que Francisco tem avançado ao indicar uma maioria de cardeais que votarão por seu sucessor.
Mas se um conclave acontecesse hoje, é provável que apenas um candidato comprometido poderia emergir como Papa — isso é, alguém que conseguisse ganhar apoio suficiente tanto desses que são mais tradicionais quando daqueles que têm uma mente mais voltada para as reformas (ou levemente progressistas).
A candidatura de um cardeal com inclinações neo-tridentinas óbvias, como Raymond Burke ou Robert Sarah, morreriam na praia.
Mas os pragmáticos anti-Francisco estão satisfeitos por terem esses membros que continuam a se posicionar contra as políticas e os programas do pontificado de forma estridente e controversa. Porque quanto mais esses cardeais agem, mais eles convencem os outros que são simpáticos (porém menos extravagantes) de que suas ideias são normais e moderadas.
Marc Ouellet é apenas um de vários nomes que figuraram com destaque entre esses estrategistas do conclave. E ele, que deu demonstrações claras de que queria ser Papa em 2013 (como revelado em uma entrevista na televisão para a CBC), seguiu com cuidado o roteiro.
Antes de mais nada, mesmo que nunca tenha sido um apoiador entusiasmado de Francisco, ele tem evitado cuidadosamente criticar o atual Papa.
Solidamente alinhado à pessoa e às ideias de Joseph Ratzinger/Bento XVI, o franco-canadense possui grande prestígio pastoral e teológico, pelo menos no papel. Ele também é multilíngue e multicultural.
Ouellet entrou para a prestigiada sociedade de ensino sulpiciana logo após a ordenação em 1968 e dedicou a maior parte de sua vida sacerdotal para ser professor e reitor de seminário. Após dez anos na Colômbia e mais nove de volta no Canadá, ele foi à Roma em 1997 para lecionar no Instituto João Paulo II para as Ciências do Matrimônio e da Família.
Ele também é ex-editor de Communio, revista internacional fundada por Joseph Ratzinger e Hans Urs von Balthasar, cujas teologias Ouellet defende.
Ouellet foi indicado como vice-presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos no mesmo dia em que o Cardeal Walter Kasper foi nomeado presidente do órgão, em março de 2001.
Mas, alega-se que os dois não trabalharam bem juntos e, vinte meses mais tarde, Ouellet foi nomeado Arcebispo de Québec, onde ele obteve seu chapéu vermelho após três anos.
Bento XVI o chamou de volta para Roma no verão de 2010 para ser prefeito da Congregação para os Bispos, seguindo-se, a partir disso, oito anos de grande turbulência.
O Cardeal Ouellet frequentemente causou controvérsias ao falar sobre problemas morais, mas sua atenção e sinceridade o ajudaram a suavizar esses aspectos.
Os tradicionalistas católicos o enxergam como um herói silencioso, especialmente pelo jeito que ele defendeu os ensinamentos morais “não negociáveis” da Igreja quando era arcebispo da cidade profundamente anticlerical de Québec.
Ouellet é uma das figuras mais amistosas e aceitáveis que ocupam a parte mais tradicional do espectro no Colégio Cardinalício.
Se sustenta alguma ambição de suceder Francisco, ele tem sido esperto ao encontrar oportunidades para louvar o atual Papa. Os ditos conservadores já confiam nele. Ouellet tem se esforçado para ganhar confiança, ou ao menos para evitar a alienação, a outra ponta do espectro do Colégio.
Embora o Cardeal Ouellet tenha sido considerado papabile (um possível papa) no conclave de 2013, muitos acreditam que sua idade (ele fará 75 anos em junho do ano que vem) já o colocou fora das possibilidades para a próxima vez. Mas se pensava a mesma coisa dos últimos dois papas. Bento XVI (78 anos) e Francisco (76) eram ainda mais velhos quando foram eleitos.
Se Ouellet de fato emergir como um candidato comprometido nos próximos sorteios papais, sua idade, na verdade, o ajudaria.
Certamente, ao defender com vontade o Papa Francisco em sua carta aberta ao Arcebispo Viganò, o cardeal canadense deu mais um passo em direção à Cátedra de Pedro.
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O que está por trás da defesa de Ouellet ao Papa? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU