05 Setembro 2018
A partir da Carta ao Povo de Deus do Papa Francisco (20 de agosto de 2018), o teólogo beneditino Ghislain Lafont, exorta a retomar a reflexão pós-conciliar sobre a identidade e o papel do sacerdote e sobre o terreno em que cresce a erva daninha do clericalismo.
O artigo é publicado por Settimana News, 03-09-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
A questão dos padres pedófilos assumiu uma importância mundial.
O Papa Francisco reconheceu tanto as culpas cometidas como a carência de reações fortes por parte dos bispos, que facilitaram a extensão desse flagelo, e a necessidade de vir seriamente em auxílio das vítimas, para curar o dano que sofreram. Sem considerar a questão talvez mais importante, pois diz respeito ao futuro: como evitar casos de reincidência. E, também, não devemos esquecer a misericórdia que o Papa Francisco colocou em exercício de todo o seu ministério apostólico.
Em sua última Carta dirigida a todos os católicos, o Papa Francisco advertiu contra o clericalismo, que estaria na raiz dos males que denuncia, uma espécie de corrupção da vocação sacerdotal que se deixou desviar de seu sentido apostólico e evangélico, para ser atraída para o que o papa chama alhures de mundanismo, para o qual já aludia na homilia dirigida aos cardeais na eucaristia imediatamente após a sua eleição em 2013.
Eu gostaria de refletir mais um pouco sobre esta questão do clericalismo, do mundanismo. O Irmão Michael Davide, em seu recente livro Preti senza Battesimo? (Padres sem Batismo) [1] reafirmou com veemência: "por trás desses episódios desastrosos existe uma questão mais profunda, essencial: o que é, em última análise, o sacerdócio presbiterial?”.
Para responder à pergunta, acredito que esteja na hora de realmente levar a sério um outro caminho, que eu tomei a liberdade de formular já há algum tempo, mas que ainda aguarda uma resposta: em alguns ambientes eclesiais, perguntamo-nos se não seria conveniente ordenar os viri probati, ou seja, alguns homens que passaram por provas. Inclusive, é o que se faz quando se trata de chamar um cristão para o diaconato.
Então aqui está a questão: podemos considerar como viri probati jovens que, na verdade, ainda não vivenciaram tais provas: nem a de uma vida conjugal séria, nem de uma vida profissional sólida, nem de compromissos na cidade no plano político, social e associativo? Dito de outra forma, eles são ordenados apenas com base em uma formação recebida no seminário, que hoje é voltada (mas só hoje) às dimensões humanas da personalidade.
Mas uma formação não torna um homem formado: é somente o tempo permitirá saber se o homem está realmente formado. Existem excelentes percursos de formação que, por diferentes razões, falharam e esse ou aquele homem não correspondem, em última análise, às esperanças ligadas à qualidade da formação.
Por que deveria ser diferente para o presbiterado? Não seria melhor atrasar a ordenação até o momento em que o vir (não mais o juvenis) tenha se revelado probatus?
Se não, o que acontece? Felizmente, em muitos casos existem bons sacerdotes; não é necessário descrevê-los aqui: cada um de nós conhece muitos deles. Mas também há casos menos afortunados, que se encaixam no que o papa Francisco chama de clericalismo, que pode conhecer desvios mais ou menos fortes, estes últimos felizmente raros.
Eu já tive no passado a oportunidade de ensinar em duas universidades romanas, e percebi que, em alguns casos, o clericalismo já estava presente e se manifestava nos homens: são menos ligados aos seus estudos, menos desejosos de santidade ... muito simplesmente, talvez, porque seu futuro estava garantido: a menos que houvesse falhas graves ou contraindicações evidentes, eles se tornariam padres, teriam sua paróquia, suas compensações ... então, uma segurança básica.
As mulheres, ao contrário, não tinham um futuro em alguma da missão da Igreja caso não apresentassem um bom nível e, portanto, era necessário que se colocassem à prova (mulieres probatae!).
Todas essas considerações me fazem pensar que está na hora de a Igreja levar a sério o que a Carta a Tito expressa sobre o candidato ao episcopé. [2]
A honestidade obriga-me também a dizer que a Santa Sé parece-me em parte responsável por essa tendência, uma vez que nunca favoreceu uma reforma profunda do que é chamado de sacerdócio católico.
O Concílio tinha , não sem dificuldades, estabelecido algumas bases nesse sentido. Alguns teólogos do pós-concílio, em vários países, engajaram-se nessa abertura e gradualmente delinearam uma figura de padre coerente com as outras grandes intuições do Concílio Vaticano II sobre a Igreja em si e sua missão de evangelização. Uma imensa bibliografia poderia aqui ser referida.
Mas as tomadas de posição oficiais não seguiram essa linha.
No capítulo dedicado ao Presbyterorum ordinis e Optatam totius na obra L'Église catholique a-t-elle donné sa chance au Concile Vatican II?, Gilles Routhier conclui assim sua reconstrução do que aconteceu: "A reflexão [conduzida sob os papas João Paulo II e Bento XVI] insiste cada vez mais sobre a identidade do padre e sobre a sua espiritualidade. Além disso, o presbiterado resulta concebido como um estado de vida e não como um ministério. Através de pequenos desvios sucessivos, volta-se a considerar o presbiterado, que é cada vez mais desenhado a partir da categoria sacerdotal, como um estado de perfeição. Em quase cinquenta anos, a perspectiva posta em prática pelo Vaticano II foi praticamente invertida”.[3]
Então, o que levava a ver o sacerdócio como um estado de vida? Talvez dois elementos que pareciam exigem a mais alta santidade: 1) a hierarquia e 2) o poder sagrado, ambos principalmente orientados não para a Igreja, mas para as celebrações sacramentais.
1) A ideia hierárquica, em seu sentido mais elevado, remonta a pseudo-Dionísio, o teólogo místico que tentou pensar o mistério cristão com a ajuda das categorias elaborado na teologia platônica escrita pelo gênio da escola de Atenas, Proclo: da plenitude inexprimível do Uno inominável, acima de tudo, emanam por graus as inteligências que, por sua vez, estão na origem do grau inferior a elas, e são animadas por um desejo de retorno à Fonte que as supera. Essa figura diz respeito, ao mesmo tempo, à hierarquia dos nomes divinos e, no plano cristão, à ordem das hierarquias dos coros angelicais e, na Igreja, das diferentes pessoas. O bispo na terra é a mais pura emanação da santidade, da qual o texto descreve a atividade simbólica e o afflatus contemplativo. No Ocidente, depois do Concílio de Trento, foi essa visão hierárquica que principalmente caracterizou o padre.
2) O poder sagrado: é o que permite que aqueles que pertencem à ordem hierárquica possam executar atos propriamente divinos - aqueles que, nos sacramentos, fazem o que nenhuma criatura pode fazer: operar a conversão eucarística do pão no corpo e do vinho no sangue de Cristo (eucaristia), deixar entrar um homem no corpo de Cristo, com o batismo e a penitência. Aqui, o instrumento que permite pensar tal mistério não é mais a teologia platônica, mas a metafísica de Aristóteles.
Agora, ambos os componentes da interpretação do sacerdócio parecem conferir uma dignidade na medida de sua transcendência, e constituem, ao mesmo tempo, uma imensa exigência de santidade sacerdotal - algo que pode explicar, aliás, a reticência oposta em outras épocas por muitos santos em receber a ordem, julgada completamente fora de suas capacidades.
Parece-me que essa mentalidade geral da santidade do padre governou as tomadas de posição assumidas pelo magistério católico, mesmo depois do Concílio. É sobre essa base inalterada (em que o celibato encontra seu lugar, ligado à catharsis grega), que foram enxertadas uma série de considerações mais modernas de cunho psicológico e intelectual.
Mas, no final das contas, a ideia do padre continua extremamente elevada. Elevada demais?
Percebe-se isso lendo a Ratio fondamentalis institutionis sacerdotalis, publicada recentemente pela Santa Sé com o título: O dom de vocação sacerdotal. É difícil imaginar uma vocação cristã mais elevada daquela descrita nesse texto.
A questão que pode surgir é então: a qual realidade de padre corresponde esse admirável programa? [4]
É disso que decorre a dupla questão que apresento: se for verdade que o platonismo articulado por Proclo e a metafísica de Aristóteles forneceram em algum momento os instrumentos para a construção teológica do sacramento da ordem, quais seriam os instrumentos a serem usados hoje que - sem renegar este passado e assumindo-o na medida do possível - permitiriam construí-lo de uma outra forma?
Se, por outro lado, for verdade que a concepção subjacente ao dom da vocação sacerdotal é, por um lado, muito alta e, pelo outro, inadequada talvez para a conjuntura cultural da atualidade, não estaria se arriscando talvez todo tipo de desvio?
Quando o seminarista sairá de seu seminário, muito (demasiado?) ciente da situação transcendente da sua vocação, e se deparará com o fato de ter que se confrontar, por um lado, com a realidade deste mundo difícil e, pelo outro, com a sua própria fragilidade humana, não correrá o risco de vacilar e não saber como administrar a própria existência?
A graça de Deus e a ajuda dos homens certamente permitem que a maioria combata a boa batalha. Mas não se deveria refletir mais seriamente sobre os fracassos?
Não só a pedofilia, mas o abandono relativamente frequente do sacerdócio em poucos anos ou o fato, menos grave e mais frequente, do autoritarismo dos padres e sua forma rígida de comportar-se com o outros, ou de gerenciar questões de dinheiro? Não é exatamente este o clericalismo que condena o Papa Francisco?
Isso não se deveria ao fato de que a formação, como está sendo colocada em prática, acaba por revelar o impasse em que na realidade colocou os jovens?
A verdadeira questão é: o que é um padre? E não penso estar sendo presunçoso, quando sugiro de procurar a resposta nos teólogos que trabalharam nisso depois do Concílio, e cujas aberturas, tão pensadas quanto belas, ainda não arranharam a segurança da instituição.
Em 1971, houve um Sínodo sobre os sacerdotes. E se em 2021 pudesse acontecer outro, a partir da ideia dos viri probati?
É o pedido que eu gostaria de endereçar humildemente ao Papa Francisco.
Referências:
[1] Infelizmente, o editor francês não conservou o título provocativo, mas fundamentado, do original italiano. Eu fiz uma avaliação sobre a tradução francesa nas Collectanea OCR, que em breve serão publicadas.
[2] Esbocei algumas reflexões sobre esse ponto em meu último livro Piccolo saggio sul tempo di papa Francesco (Pequeno ensaio sobre o tempo do Papa Francisco, EDB, Bolonha 2017, 83-91).
[3] Cahiers de la Revue Théologique de Louvain n. 41, Leuven, Peeters 2016, 157-158.
[4] Lembro aqui o que me dizia há muito tempo o saudoso Philippe Delhaye, professor na Universidade de Louvain: "Na Idade Média, todos os padres foram transformados em religiosos, e todos os religiosos em padres". O Concílio poderia ter feito evoluir tudo isso.
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Clericalismo? Artigo de Ghislain Lafont - Instituto Humanitas Unisinos - IHU