21 Setembro 2018
"Apesar de todas as violações, as dessacralizações, as profanações, ou talvez justamente por isso, o sagrado continua a ser um espinho no flanco da sociedade que profanou enfaticamente vida e morte, sexualidade e genética, arrebatando cada sinal de fronteira ética, programando trans e pós humanismos em que o homem já não é mais a imagem de Deus, mas imagem do homem".
O comentário é de Gianfranco Ravasi, cardeal italiano e presidente do Pontifício Conselho da Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 16-09-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quant’è vero Dio
(O quanto verdadeiro é Deus, em tradução livre)
Sergio Givone,
Solferino, Milão, pp. 188, 16 €
Página após página, procedendo com cuidado e respeito em um horizonte que estou acostumado a contemplar a partir de outro "belvedere", aquele teológico, ecoava em minha mente a famosa frase dos Ensaios de Bacon: “alguns livros devem ser apenas provados, outros tragados, e alguns poucos devem ser mastigados e digeridos".
O ensaio de Sergio Givone, um dos nossos pensadores mais intensos e autênticos (não se considere a expressão um estereótipo), também capaz de uma escrita refinada (não é à toa foi durante muito tempo professor de Estética em Florença), sem dúvida, pertence à terceira categoria da tríade baconiana. Exige, portanto, um avançar lento entre paisagens ideais muitas vezes iridescentes que por vezes obrigam a retornos ou, fora da metáfora, a segurar um lápis, marcando, apontando, sublinhando à moda antiga.
É preciso, de fato, coragem intelectual e uma certa audácia cultural para sublinhar o volume. Porque não podemos abrir mão da religião em uma atmosfera histórica em que se acumulam as nuvens de secularização, da dessacralização, do desencanto, do niilismo. Essa última concepção, sobre a qual muitas vezes Givone aponta de sua lente analítica, recorrendo - na esteira de seu mestre Pareyson - ao olho de águia de Dostoiévski ("a Ivan Karamazov deveria se dedicar um capítulo de um manual de história da filosofia contemporânea”), na realidade, não se preocupa em negar a ideia de Deus, alinhando-se à turba um tanto barulhenta dos ateus. Pelo contrário, a pressupõe, mas a deixa cair e se dissolver, mostrando a morte daquele Deus que a habita, de modo a deixar precipitar no vazio toda norma moral, e envolvendo-se em um círculo (vicioso): "Se não há Deus, tudo é lícito, mas se tudo é lícito, não há Deus”.
Esta é apenas uma das paisagens exploradas por Givone. O mapa do percurso se abre com a pergunta radical "A vida tem sentido?", que coloca o leitor no cume afiado a partir do qual estendem-se duas vertentes: uma iluminada por um "sim" transcendente "dito na origem por Deus e que ecoa no coração dos homens", livres para aceitá-lo ou rejeitá-lo; a outra vertente sobre a qual paira, ao contrário, a sombra da "solidão cósmica e do desencanto, aliás, do agnosticismo invencível e definitivo".
Igualmente radical é o binômio que marca outra etapa, um binômio, por vezes antitético, mas capaz de ser também harmônico, "Lei e Amor", uma presença que se ramifica em forma diferente nas duas religiões irmãs, ou seja, o judaísmo e o cristianismo, mas que também assoma as beiras do abismo grego do trágico sobre o qual a fé cristã aponta seu fulgurante refletor.
Givone, selecionando frequentemente companheiros de viajem como guias, ou seja, autores que já se embrenharam pelos caminhos escolhidos por ele, também se deixa envolver na questão muito enovelada que o livro do Apocalipse trilhou como hermenêutica da história, trazendo vislumbre da possível aniquilação do ser e do existir. A criação poderia "se enrolar-se sobre si mesma como os pergaminhos de um livro, tornando-se ilegível". Mas, justamente o final desta obra bíblica não é um selo extremo colocado no nada, mas um palingênese que sustenta toda a escatologia cristã, substituindo a um fim do mundo um fim de plenitude (a nova Jerusalém dos c. 21-22 ). Esse resultado salvífico é obstruído, no tempo intermediário que estamos vivendo na história atual, pelo “imprescindível e enigmático katechon, ou poder que retarda”, evocado por Paulo em sua segunda Carta aos Tessalonicenses, um tema que já intrigou profusamente duas figuras relevantes de nosso panorama cultural, Cacciari e Agamben e, no passado, Rozanov e Soloviov.
E justamente nesse teatro da história acontece outro dueto, que muitas vezes descamba em duelo, aquele entre poder espiritual e temporal, entre Deus e César, para usar a famosa dualidade (não-dualismo) evangélica. A essa dualidade, que pressionou inteligências, agitou consciências e gerou disparatados eventos históricos, são dedicadas - sempre buscando a resposta de autores respeitados, como Schmitt, Habermas, Rawls, Taylor, e assim por diante - páginas muito preciosas, especialmente para a época que estamos atravessando. Curioso é o corolário final sobre a violência, aparentemente apanágio de regimes tanto ateus como sagrados: "O terrorismo não é filho da religião. É o filho do grande vazio deixado pela religião ... O terror é em nome do deus em que se deixou de acreditar". O agnóstico Borges ensinou que "é mais fácil morrer por uma religião do que vivê-la absolutamente".
O cume para o qual Givone conduz aqueles que acompanharam a sua lição com empenho - muitas vezes somando a sua voz àquelas que ressoam poderosas, como o citado Dostoiévski ou Hölderlin ("olhemos para o Aberto, procuremos o que é nosso, por mais longe que esteja”) - carrega o selo do “sagrado, apesar de tudo”. É a última, essencial, intensa reflexão, consciente daquele impacto negativo: apesar de todas as violações, as dessacralizações, as profanações, ou talvez justamente por isso, o sagrado continua a ser um espinho no flanco da sociedade que profanou enfaticamente vida e morte, sexualidade e genética, arrebatando cada sinal de fronteira ética, programando trans e pós humanismos em que o homem já não é mais a imagem de Deus, mas imagem do homem. Na verdade, quanto mais é violado e ferido, o sagrado ressurge; quanto mais é negado, se afirma e confirma.
Vamos parar por aqui, conscientes de que só conseguimos oferecer um rápido vislumbre do muito mais que este livro sugere e propõe. Seria sugestivo agora ouvir a reação de um leitor não crente, em um ideal, Cortile dei Gentili (departamento do vaticano para o diálogo entre crentes e não crentes, ndt) onde, depois de ter falado com o crente Givone, eleve-se uma voz de contraponto.
É preciso reconhecer que argumentos profanos, como dinheiro, política, sucesso, sexo hoje já se tornaram detonadores socioculturais muito menos poderosos do que o sagrado, a fé, a religião e até mesmo a mística. Talvez estivesse certo o Kierkegaard de Temor e tremor quando observava: "A fé é a maior paixão de cada homem. Talvez existam em cada geração muitos homens que não chegam a ela, mas ninguém vai além."
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