28 Junho 2018
A bancada ruralista está batendo um bolão. Quem acompanhou a sessão da comissão especial do PL do Veneno (6.299) na última terça-feira viu um time entrosado, com muita presença em campo, ágil e ofensivo. A oposição deu o combate que pôde, mas sofre do mal incurável de ter muito menos jogadores em campo. A se manterem as condições de jogo, os ruralistas passarão fácil da fase de grupos e conseguirão emplacar o pacote de flexibilização da lei de agrotóxicos na comissão na próxima semana.
A reportagem é de Claudio Angelo, publicado por Observatório do Clima, 26-06-2018.
Quem está acostumado a ver esse time em campo pôde perceber que a seleção do agropop está usando com os agrotóxicos a mesma estratégia de jogo que lhe deu a taça em 2012, na aprovação do Código Florestal. Se alguma coisa, eles estão agora mais organizados e têm mais experiência do que o escrete de deputados e senadores que fez a campanha vitoriosa do código sob o comando dos professores Kátia Abreu e Aldo Rebelo. O contexto também lhes é favorável, já que jogam em casa no governo Temer. O esquema tático consiste em um conjunto de regrinhas simples de argumentação, que permitem aos ruralistas vencer qualquer embate. Claro que não são propriamente as ideias que vencem, mas os 240 votos que eles têm na Câmara. Enumero abaixo alguns dos principais tópicos do playbook da bancada:
Quando celebridades como Gisele Bündchen começaram a se manifestar contra o projeto, a torcida do agrotóxico invadiu o campo para acusá-las de ignorantes, de não terem lido o projeto e de não conhecerem a legislação. Essa tem sido uma linha argumentativa constante, repetida mais recentemente no vídeo apócrifo que circula no WhatsApp: “Leia o PL, não propague boatos comprados por celebridades com interesses políticos”. “O terrorismo pregado aqui é feito por pessoas urbanas que não conhecem a agricultura”, disse Valdir Colatto (MDB-SC). Se você acha que já viu isso antes, é porque viu. Veja o que declarou Aldo Rebelo em 2011 sobre o Código Florestal:
“Isso acontece porque, lamentavelmente, a maioria dos críticos desconhece o texto do Código e a legislação em vigor (…) Então, acaba sendo um debate difícil de ser travado, já que não é um debate contra um argumento, e sim contra uma desinformação.” (Sul 21, 15/02/2011)
O PL do Veneno é um consenso na comunidade científica e nos órgãos de regulação de saúde e meio ambiente: há amplo consenso de que ele é ruim e de que o tal registro provisório e a liberação exceto em caso de “risco inaceitável” tornarão muito difícil a tarefa já inglória de controlar o uso de pesticidas. Já se manifestaram contra a proposta a SBPC, a Anvisa, a Fiocruz e o Instituto Nacional do Câncer, além do Ibama (duas vezes), do Ministério Público e do Ministério da Saúde (leia as notas técnicas aqui). Na comissão especial da Câmara, onde os ruralistas são maioria, nenhuma dessas análises vem sendo considerada.
Quem acompanhou o Código Florestal se lembra de que, em 2011, a SBPC e a Academia Brasileira de Ciências publicaram não uma nota técnica, mas um livro inteiro apontando os riscos do projeto (vários deles, como o de não-cumprimento, o de fatiamento de matrículas de imóveis e o de aumento no desmatamento de fato aconteceram — sintomático que a curva de queda no desmatamento tenha começado a se reverter em 2012, quando o código foi aprovado). Governo e ruralistas nem ligaram. Questionado na época sobre a manifestação dos cientistas, o então líder do governo na Câmara, Cândido Vaccarezza (PT-SP), pontificou: “A ciência não é absoluta nem dá razão de ser a ninguém. O fato de um cientista falar não quer dizer que é a última palavra. Se nós observarmos a evolução da própria ciência, quem iria questionar, por exemplo, as leis de Newton, que elas não responderiam pela globalidade da dinâmica do Universo? O Einstein fez a teoria da relatividade, que é diferente da lei de Newton. O argumento de cientista querer discutir mais não é absoluto.” (blog Laboratório, 27/4/2011)
Claro que em matérias complexas, que envolvem conhecimento técnico, é sempre preciso legitimar o discurso, e nada mais essencial do que ter um cientista à mão para fazer a lavagem técnica do seu parti pris. Essa é uma estratégia antiga, usada pelo lobby do tabaco na década de 1950 e pela indústria do petróleo nos últimos 30 anos para confundir a sociedade sobre câncer e aquecimento global, respectivamente. O eleitor médio não tem a mais vaga ideia de como a construção de consensos científicos funciona, então a presença de um especialista defendendo o lobby basta para criar a confusão e a sensação de que “há um debate” e de que os cientistas não sabem de nada, mesmo, já que não conseguem nem se pôr de acordo sobre o tema.
No Código Florestal, a brilhante Kátia Abreu desfilava com um cientista da Embrapa a tiracolo, o controverso Evaristo Miranda, cujas contas, altamente questionadas, supostamente “demonstravam” que a legislação ambiental acabava com as terras para o agronegócio. No PL do veneno, a Frente Parlamentar da Agropecuária parece querer alistar o médico Ângelo Zunaga Trapé, da Unicamp, que apareceu num comunicado da FPA à imprensa: “Realizei pesquisas com mais de 25 mil trabalhadores rurais e não pude detectar evidências que liguem o surgimento de doenças com o uso de agroquímicos. É preciso sair do debate ideológico e entrar na discussão científica”. Trapé aparentemente é do ramo, embora eu não tenha conseguido verificar em seu currículo Lattes se ele tem 40 anos de experiência em agrotóxicos, como a FPA afirma (tem 40 anos de formado, mas isso não é a mesma coisa), e se de fato pesquisou 25 mil trabalhadores rurais (não tenho notícia de nenhum estudo epidemiológico no Brasil com uma amostra desse tamanho, mas pode ser ignorância minha).
Palavras têm poder. Os ruralistas sabem muito bem disso, e nunca entram em campo sem ter combinado o léxico da partida com o professor. Chamar agrotóxico de “produto fitossanitário” — e queixar-se, como fez o deputado Luiz Carlos “Tudo o que Não Presta” Heinze, de que os remédios também deveriam ser chamados de “veneno” — é um exemplo extremo. Há outros, mais sutis, como chamar terra indígena grilada de “gleba”. Ou, como foi feito no Código Florestal, apelar à matemática esotérica dos “módulos fiscais” para camuflar a anistia de recuperação de passivos a propriedades médias e grandes.
Essa é quase a segunda pele da bancada ruralista: qualquer resistência a suas investidas contra a legislação ambiental ou trabalhista é imputada a “ONGs estrangeiras” financiadas por “interesses externos” para “acabar com a concorrência” do “competitivo” agronegócio nacional, que produz “sem subsídios”. Explorar o medo e o nacionalismo ressoa bem com uma boa parcela dos eleitores dos ruralistas, em especial em tempos de bolsonarização do público.
Na época do Código Florestal, o alvo preferido de Aldo Rebelo era o Greenpeace, uma “ONG holandesa” (que na época tinha seu conselho mundial presidido por uma brasileira, muito a propósito). Ainda nesta semana, Aldo exumava nas redes sociais um relatório produzido há quase dez anos por consultores do agro americano como prova de que “os EUA” querem manter florestas no Brasil para poder plantar soja à vontade por lá sem competidores.
A tese irmã da “conspiração estrangeira” é a da jabuticaba: só o Brasil tem essa legislação tão restritiva. Foi assim com o Código Florestal e está sendo assim com os agrotóxicos.
“Nenhum país do mundo tem essa legislação. Pergunte pro lado do WWF, do Greenpeace, pergunte o que fizeram na Europa, na América do Norte: nada! Esse projeto vai simplificar a questão dos registros”, vociferou Heinze (PP-RS) na sessão de terça-feira. “Os Estados Unidos estão na nossa frente, eles usam esses produtos e nós não podemos usar”, declarou na mesma sessão.
Há um twist curioso nesse argumento que merece nota: a suposta excepcionalidade do Brasil é lamentada como uma desvantagem na hora de pedir flexibilização à legislação. Mas, quando alguém argumenta com um ruralista que o Brasil usa agrotóxicos demais, ele justifica que o Brasil precisa disso porque é excepcional — país tropical e grande produtor agrícola. Chupa-se apenas meia jabuticaba e descarta-se o resto.
Quem tem filho pequeno vê isso o tempo todo: quando os ruralistas querem chantagear o governo, costumam criar uma situação de conflito onde não havia nenhum para depois dizer que, se ganharem o que querem, haverá “pacificação” e “segurança jurídica”. Esta expressão na época do Código Florestal foi entronizada por Kátia Abreu, que passou a usá-la até mesmo no lugar de “oi”, “bom dia” e “com licença”.
— Bom dia, senadora!
— Segurança jurídica!
— Que horas são, senadora?
— Segurança jurídica!
O líder do PSDB, Nílson Leitão (MT) disse nesta semana que o PL do veneno daria “segurança jurídica” ao produtor — só que não há insegurança jurídica hoje; a legislação é claríssima. Como não havia insegurança jurídica no Código Florestal: todos sabiam o que podia e o que não podia fazer. Para os ruralistas, qualquer coisa menor que desregulamentação total de tudo (menos dos 190 bilhões anuais do Plano Safra) é “juridicamente insegura”.
Em tempo: seis anos depois do Código Florestal, aparentemente o campo não foi pacificado, porque a bancada segue tentando flexibilizar ainda mais a lei.
“Esse debate do nós contra eles é um debate antigo, porque dividindo [se] cria currais eleitorais”, disse Nílson Leitão, apenas para em seguida desqualificar a oposição ao PL do veneno como coisa “do PT e esse grupo de oposição”. No vídeo apócrifo criticando os artistas que se opuseram ao PL, repetiu-se a sugestão de “interesses políticos”, contradita por Caco Ciocler nas redes sociais. Nesta semana, Heinze chamou os opositores ao PL de “irresponsáveis, são quem está contra o Brasil”.
Desqualificar adversários como inimigos do país é uma das fórmulas mais manjadas da erística política. Foi usada com maestria no Código Florestal — Aldo chamava as ONGs de “quinta-coluna nativa para encurralar os produtores” (O Globo, 27/02/2018). Ela volta a ser usada com os agrotóxicos.
Ameace com o colapso da agricultura, o desabastecimento e a fome generalizada se você não conseguir o que quer. Funciona desde o tempo da escravidão. Em Minha Formação, Joaquim Nabuco já se queixava das ameaças dos ruralistas no Congresso do Império de que o agronegócio iria quebrar se a abolição passasse. Na época do Código Florestal, falava-se em condenar “milhões de pequenos agricultores” se a legislação não fosse mudada. Agora, os defensores do PL dos agrotóxicos dizem que sem eles não tem comida no prato. A esse propósito, recomendo a leitura deste blog de Marcos Pedlowsky e deste artigo de Luís Fernando Guedes Pinto).
Nílson Leitão afirma que a lei atual do veneno, a que se quer flexibilizar, bota “a faca no pescoço de quem produz”. Os dados da produção agrícola brasileira sugerem outra coisa: a produção de grãos subiu 312% entre 1990/91 e 2016/17, segundo dados compilados pelo insuspeito ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues. Se defensivos são importantes para aumentar a produtividade, eles tampouco estão em falta, porque a área plantada só se expandiu 61% nesse período — ou seja, tem havido ganhos constantes de produtividade. São números que os defensores do agropop recitam de boca cheia para dizer como a agricultura brasileira é eficiente. Não deveriam ser esquecidos na hora de fazer mimimi por causa de legislação.
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O playbook do agrotóxico (ou como ganhar qualquer debate tendo maioria no Congresso) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU