26 Junho 2018
Enquanto a opinião pública reagia à separação de milhares de crianças migrantes de seus pais após cruzarem a fronteira dos EUA, as organizações que gerenciam os centros de detenção migratória viam seus negócios expandirem.
A reportagem é de Ángel Bermúdez, publicada por BBC Brasil, 25-06-2018.
Só em 2017, o Serviço de Imigração e Controle Alfandegário (ICE na sigla em inglês) destinou quase US$ 3 bilhões (mais de R$ 10 bilhões) para custear o sistema de detenção de estrangeiros, que abriga os migrantes cujos casos estão sob análise da Justiça ou cuja deportação foi decidida.
E a maior parte desses centros de detenção são administrados pela iniciativa privada, em uma amostra da multimilionária indústria que cresceu junto com o controle migratório.
"Cerca de 65% dos leitos de que o governo federal dispõe para abrigar imigrantes estão nas mãos de empresas privadas. E essa cifra está crescendo com a atual crise migratória", relata Bianca Tylek, diretora do Projeto de Transparência de Centros de Detenção, sediado em Nova York.
Em fevereiro de 2017, um alto funcionário do Departamento de Segurança Nacional (DHS em inglês) anunciou que aumentaria o número de leitos disponíveis para o ICE de 3,5 mil a 20 mil, um aumento de 500%", agrega Tylek, em entrevista à BBC News Mundo.
Paradoxalmente, a recente decisão de Trump de pôr fim à separação das crianças de seus pais pode fazer com que o volume de negócios dessas empresas aumente, em vez de diminuir.
Em abril passado, uma das principais gestoras de presídios e centros correcionais do mundo, a Geo Group, foi questionada a respeito de seus negócios em uma teleconferência com investidores. O diálogo foi reproduzido na internet e pela emissora de rádio NPR.
"Houve um aumento constante nas travessias ilegais de fronteira, que acho que é igual ao aumento continuado no número de pessoas em nossos centros (de detenção de imigrantes). E esperamos que isso continue aumentando nossa taxa de ocupação e ofereça oportunidades para novos contratos de centros", respondeu o executivo da empresa.
"Os centros de detenção de imigrantes são uma peça central do modelo de negócios das empresas como a CoreCivic e o GeoGroup, que se dedicam a administrar presídios privados", diz Tylek.
Ela acrescenta que a CoreCivic reportou em 2017 que 25% de suas receitas vieram de contratos com o ICE, que totalizam US$ 444 milhões. No caso do Geo Group, os contatos com o ICE representam 19% de suas receitas, de US$ 429 milhões.
Tylek destaca que essas duas empresas são as líderes de um mercado que inclui mais uma dezena de empresas concorrentes nos EUA.
Entre setembro de 2016 e janeiro de 2017, o valor de suas ações negociadas em bolsa cresceu de forma notável, em antecipação à chegada de Donald Trump à Presidência americana, uma vez que o discurso de endurecimento das regras migratórias já sinalizava, ainda na fase de campanha, que essas empresas teriam oportunidades de crescimento.
Em janeiro de 2017, o Geo Group assinou um acordo com o ICE para gerenciar um centro de imigrantes com 780 leitos no Estado da Geórgia e, dois meses mais tarde, anunciou um novo contrato de dez anos, para um centro de detenção no Texas com capacidade para mil pessoas.
Tylek cita um relatório de junho de 2017 do Geo Group afirmando a seus investidores que aguardava uma ordem executiva da Casa Branca pondo fim à chamada política de "detenção e liberação" ("catch and release" em inglês) aplicada pelos governos anteriores, na qual os imigrantes eram processados e deixados em liberdade enquanto aguardavam seu julgamento.
De fato, Trump anunciou em 6 de abril uma política de "tolerância zero", passando a processar criminalmente o maior número possível de imigrantes ilegais, mesmo aqueles cuja única ilegalidade é entrar sem autorização no país.
A principal lei usada por Trump para fazer as deportações é a mais ampla regulando a imigração nos Estados Unidos: o Ato de Imigração e Nacionalidade de 1952 - criado e aprovado naquele ano por um Congresso de maioria democrata.
Ele afirma que uma pessoa que entra nos EUA ilegalmente está cometendo um ato infracionário, um crime mais leve, que pode ser processado em um tribunal criminal ou civil. Uma condenação resulta em deportação. Mas não há nada nesta lei - e em nenhuma outra - que afirme que o governo tem de separar as famílias.
O ato está em vigor há mais de 60 anos, mas a escolha de iniciar ou não um processo criminal contra os imigrantes pelo ato infracionário de entrar ilegalmente no país depende de cada governo.
Como as crianças não podiam ir para a prisão com os pais, detidos preventivamente por causa do processo criminal, elas passaram a ser separadas das famílias e enviadas para o Escritório de Reassentamento de Refugiados, que faz parte do Departamento de Saúde e Serviço Social.
Recentemente, Trump afirmou que tais crianças não ficarão mais separadas de seus pais, mas ainda não está claro como as famílias serão mantidas unidas na prática.
Além dos centros de detenção, há também uma "complexa rede de negócios privados lucrando com a crise migratória", segundo Tylek.
"No setor de transportes, por exemplo, estão as empresas que transportam os imigrantes desde a fronteira até os centros de detenção. Em alguns casos, as empresas de transporte são propriedade dos mesmos conglomerados donos dos centros de detenção. Isso ocorre com o Geo Group e o CoreCivic, por exemplo", diz ela.
Além disso, diversas companhias aéreas americanas alugam seus aviões para o transporte de imigrantes, para deportação ou para enviá-los a centros de detenção. Nas últimas semanas, com o aumento das críticas públicas, muitas delas se negaram a transportar crianças que tivessem sido separadas de suas famílias.
O fornecimento de alimentação e telefonia para os centros de detenção também produz contratos lucrativos.
No que diz respeito às crianças, as administradoras de centros infantis ficam encarregadas do alojamento e atendimento, enquanto a custódia fica a cargo do Departamento de Saúde e Serviços Sociais (HHS, na sigla em inglês) - que no último ano fiscal destinou US$ 958 milhões para a manutenção dos espaços de acolhida para menores migrantes.
Esses espaços são diferentes dos centros de detenção, já que têm de oferecer salas de aula, serviços de saúde física e mental, espaços de recreação e serviços de reunificação familiar.
Administrativamente, esses lugares de acolhida dependem do Escritório de Reassentamento de Refugiados (ORR), que aloja atualmente cerca de 12 mil crianças nos EUA, inclusive as que foram separadas de seus pais no momento da imigração.
Embora muitos espaços de acolhida sejam geridos por instituições sem fins lucrativos, não escaparam da polêmica nas últimas semanas.
Um dos focos das críticas foi a Southwest Key, ONG sediada no Texas que nos últimos anos se tornou uma das principais instituições de acolhida no país - tem hoje 26 centros, com capacidade para abrigar 5 mil crianças.
O caso mais famoso é o da Casa Padre, construído no espaço que antes abrigava um supermercado e que conta com 1,5 mil leitos.
En 2018, a Southwest Key receberá US$ 458,6 milhões do HSS, elevando para US$ 1,5 bilhão o total de seus contratos com o governo federal na última década, segundo os registros do próprio HHS.
"Nosso crescimento é uma reação direta à chegada de crianças na fronteira", explicou Alexia Rodríguez, vice-presidente da organização, ao New York Times.
No entanto, documentos tornados públicos indicam que o fundador da ONG, Juan Sánchez, teria recebido em 2017 um salário anual de quase US$ 1,5 milhão - o que faria dele o quinto diretor de ONG mais bem pago dos EUA, segundo a organização CharityWatch.
"O chefe da Cruz Vermelha dos EUA recebe um salário de US$ 600 mil, e é uma ONG que gerencia centenas de milhões de dólares, controla a metade dos bancos de sangue e atua em situações de catástrofe. O orçamento dessa ONG (Southwest Key) é um décimo do da Cruz Vermelha", afirmou Daniel Borochoff, presidente da CharityWatch, à emissora CNN.
A BBC pediu uma entrevista com um porta-voz da Southwest Key, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
A crise migratória deste ano também resultou em contratos emergenciais para o acolhimento de menores, caso, por exemplo, do firmado com a entidade Comprehensive Health Services para aumentar seu atendimento de 500 para mil crianças imigrantes no sul da Flórida.
Segundo a agência Bloomberg, a empresa receberá US$ 31 milhões pelos serviços adicionais.
Esse tipo de negócio pode crescer ainda mais próximos meses.
Ao revogar a separação entre imigrantes e crianças, o governo americano indicou que pretende fazer com que as famílias permaneçam juntas, sob um regime de detenção que aparentemente se estenderia indefinidamente até que os pais fossem processados criminalmente.
Esse plano é de difícil aplicação e pode acabar sendo impugnado pela Justiça. Mas, caso seja levado a cabo, pode resultar no aumento do tempo de permanência desses imigrantes nos centros de detenção.
"Não está claro como o governo pretende aplicar (essa medida), porque existe uma decisão judicial determinando que os menores migrantes não permaneçam mais de 20 dias detidos", diz à BBC News Mundo Liz Willis, cofundadora do Asylum Seeker Advocacy Project (Projeto de Defesa do Solicitante de Refúgio), de assessoria judicial aos imigrantes.
Willis afirma que, atualmente, só há um centro nos EUA equipado para abrigar adultos homens e crianças juntos, e outros dois aptos a abrigar mães e crianças juntas.
"Não há espaços que possam abrigar as famílias completas", diz ele.
Seria necessário, portanto, investir mais dinheiro para construir ou adequar novos centros para alojar as famílias detidas.
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A lucrativa indústria da detenção de imigrantes nos EUA - Instituto Humanitas Unisinos - IHU