26 Junho 2018
A Irmã Norma Pimentel diz: "Usar a dor de uma criança é errado".
A reportagem é de Nuri Vallbona, fotojornalista freelancer, que trabalhou para o Miami Herald de 1993 a 2008 e foi professora na Universidade do Texas e na Texas Tech University, publicada por National Catholic Reporter, 21-06-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
A viagem foi longa e difícil. Por 15 dias e cerca de 2.322km, Cristina Melgar e os dois filhos foram de El Salvador até a fronteira do Texas, de ônibus e caminhão. Por fim, em uma balsa que se esvaziou durante a travessia do Rio Grande, chegaram à costa em segurança.
Mas os contrabandistas, descritos por ela como "muchachos endrogados" — rapazes drogados — exigiram mais dinheiro. Eles já tinham tomado tudo que ela tinha. Quando ela não podia pagar, eles machucaram a perna de sua filha e começaram a brigar. Ela e os filhos conseguiram escapar, relatou, e caminharam por duas horas até encontrarem um patrulheiro na fronteira perto de McAllen, no Texas.
Ela pensou que tinha encontrado segurança ao chegar aos Estados Unidos. "Socorro", disse, e se entregou. Depois que levaram sua filha de 16 anos na ambulância por causa de sua perna machucada, Melgar e o filho foram levados a um centro de processamento onde ele foi separado dela.
"Eles simplesmente levam; não dizem nada", contou Melgar, enxugando as lágrimas, no Humanitarian Respite Center, um centro de repouso criado e dirigido por instituições católicas de caridade como a Catholic Charities de Rio Grande Valley. "Eu nunca tinha me separado dos meus filhos."
Mais de 2.300 crianças imigrantes foram separadas dos pais depois de o procurador geral Jeff Sessions ter anunciado uma política de tolerância zero para quem atravessasse as fronteiras, de acordo com estatísticas do Departamento de Segurança Interna. Quem cruzasse ilegalmente, em vez de passar por um ponto de entrada, enfrentava processo criminal e corria o risco de seus filhos serem colocados sob custódia do Escritório de Reassentamento de Refugiados.
Imagens de crianças enroladas em cobertores de alumínio cercadas por arame farpado provocou indignação no público e em políticos Democratas e Republicanos. Os bispos dos Estados Unidos, comunidades religiosas de mulheres e outros líderes religiosos condenaram a política, e muitos se mobilizaram para ajudar a acabar com ela por meio de abaixo-assinados e protestos. Com o aumento da pressão, o presidente Donald Trump assinou uma ordem executiva em 20 de junho acabando com a política de separação depois de semanas de atraso, culpando os Democratas por se recusarem a negociar sobre a legislação de imigração. Não ficou claro quando os pais que estão separados de seus filhos vão encontrá-los novamente.
"Vi o rosto infantil — vi as lágrimas, e parte o coração", disse a Irmã Norma Pimentel, diretora executiva da Catholic Charities of the Rio Grande Valley, e Irmã dos Missionários de Jesus. Norma Pimentel ajudou a fundar o centro de repouso em 2014 para atender às necessidades dos imigrantes quando funcionários da imigração tiveram dificuldades de lidar com os altos números deles.
Agora com os filhos, Melgar esperava no centro para receber vale-transporte para encontrar outros membros da família. Ela disse que foi para os EUA depois que gangues ameaçaram a vida de sua filha, Aracely Abarca Melgar, que disse que os dias enjaulada pelas telas pareciam "la perrera" — a carrocinha —, pois lembravam um canil.
"Era como uma enorme gaiola", relatou. "Era um lugar horrível e não se podia dormir. Era frio". Em alguns compartimentos, crianças de 2 a 5 anos choraram sentindo falta de seus pais o dia todo, contou. "Não chore", dizia Aracely, tentando consolá-los. "Estão ajeitando os papéis. Logo vão estar aqui". A pior parte para a adolescente foi quando passou pela cela de seu irmão de 10 anos quando foi ao banheiro. Ela viu o irmão chorando muitas vezes. "Vamos sair daqui", dizia ela, através da cerca. "Vamos encontrar a nossa mãe." Mas os funcionários tiravam ela dali e repreendiam por falar com o irmão, mencionou. Foram seis dias antes de verem a mãe novamente, na semana passada.
Para ela, o serviço de Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA questionava as idades das crianças. "Não se separa os que têm menos de 5 anos dos pais, exceto quando há alguma questão nas relações familiares, outro crime envolvido ou por necessidades médicas da criança", disse um porta-voz do serviço. "A falta de espaço para acomodar um núcleo familiar em que ambos os pais estão presentes" também é um fator.
Os críticos ainda não têm certeza da ordem executiva. "Ainda não sabemos como o presidente vai resolver essa questão", disse Zoe Lofgren*, Democrata da Califórnia, num comunicado. "Se o plano é colocar os pais nas gaiolas com os filhos, isso é trocar uma forma de abuso por outra."
A dura realidade da política de "tolerância zero" teve repercussões nos tribunais próximos da fronteira. Na vara federal de McAllen, 85 imigrantes se manifestaram e pediram para concluir o processo de residência no dia 18 de junho no tribunal do juiz J. Scott Hacker. Eles vinham de El Salvador, México, Guatemala, Nicarágua, Honduras, Venezuela e Peru. Conforme se apresentavam, pairava na sala a sombra das algemas aos que respondiam processos por entrada ilegal ou outros crimes.
Todos foram considerados culpados por entrada ilegal. Depois, o juiz explicou que faria perguntas para todo o grupo. "Quando chegar a sua vez e eu apontar para você, responda 'sim' ou 'não' em voz alta", disse, enquanto os imigrantes ouviam nos fones de ouvido, em espanhol.
"Sí, sí, sí, sí,", eram as respostas, conforme ele apontava para cada imigrante.
No grupo estavam 20 acusados que, segundo a defensora pública Azalea Aleman Bendiks, haviam sido separados dos filhos.
A filha de 5 anos de Angela Antunez-Mena havia sido separada dela dois dias antes, na fronteira. "Se eu fosse condenada à deportação, o que iria acontecer com a minha filha?", questionou, através do intérprete.
"Antunez, infelizmente eu não sou advogado de imigração", disse Hacker. "A única coisa que posso dizer é que quando você encerrar esta entrada ilegal, que é considerada crime, ou uma acusação criminal contra você, você vai passar pelos serviços de imigração, e eles devem ter procedimentos em vigor que faça você se reencontrar com sua filha".
Na audiência, Aleman Bendiks disse que Antunez-Mena e outros estão em processo de extradição imediata, ou seja, poderiam ser deportados rapidamente por quase qualquer funcionário de imigração. "Esperamos que seus pedidos de asilo sejam ouvidos, para que eles não sejam levados para longe dos filhos”, declarou. A seguir, Ada Tejada Sandoval e a filha de 14 anos também estavam separadas. "O marido dela foi assassinado em El Salvador, e ela estava fugindo de ameaças", disse o defensor público.
Para os considerados culpados sem entradas anteriores, o juiz contabilizou o tempo já transcorrido para o cumprimento de pena, forneceu uma avaliação de custos de US$ 10 e a possibilidade de recorrer dentro de 14 dias. Mesmo assim, eles enfrentaram o complicado processo das regras de imigração dos EUA, audições sobre o pedido de asilo e ameaça de deportação. Após a audiência, Aleman Bendiks confirmou que ela e outros advogados haviam se encontrado com os imigrantes antes da audiência.
Na manhã seguinte, no mesmo tribunal, apresentaram-se mais 74 imigrantes, mais 74 acusações.
"Existe uma lei que penaliza a entrada ilegal. No entanto, também há a lei de asilo que concede o direito de buscar proteção neste país", disse a advogado de imigração Sara Ramey, diretora executiva do Migrant Center for Human Rights (Centro de Imigrantes para os Direitos Humanos). "A condenação por entrada ilegal de nenhuma forma deve afetar o direito da pessoa de pedir asilo."
Além disso, afirmou, o simples fato de um imigrante não entrar no país por um ponto oficial de entrada, como uma fronteira, não restringe seu direito de pedir asilo. "O direito de asilo está acima da lei de entrada ilegal", disse Ramey.
Requerentes de asilo não têm outra opção senão entrar ilegalmente, disse a Irmã Denise LaRock, coordenadora voluntária da Interfaith Welcome Coalition de San Antonio. Também Filha da Caridade de São Vicente de Paulo, ela foi a McAllen na semana anterior com Lenna Baxter, outra coordenadora, depois de ouvir que agentes da fronteira dos EUA estavam parando as pessoas no meio das pontes para impedi-las de entrar no país para pedir asilo. LaRock e Baxter conheceram uma família hondurenha que tentava entrar nos EUA.
Na fronteira entre Estados Unidos e México, os agentes pararam o grupo e verificaram vistos e passaportes. "Quem não tem, nem consegue chegar ao lado americano da fronteira" para pedir asilo, observou LaRock. Os agentes negaram a entrada da família, dizendo que o centro de processamento de imigração estava superlotado, e eles teriam de esperar por várias horas. Quando LaRock e Baxter perguntaram se os agentes deixariam a família esperar no edifício climatizado, para poderem sair do calor, o pedido foi negado.
"Quando passamos para o lado americano, vimos que tinha umas seis pessoas na sala de espera da imigração", disse LaRock.
"O pedido de asilo é um direito assegurado por lei internacional, mas as famílias não estão conseguindo tramitar processo legal de forma adequada", afirmou. "Podemos fazer esse processo sem separar as famílias — não sabemos o quanto essas crianças vão ficar marcadas, e as mães também."
Em meio ao crescente clamor público, legisladores Democratas e Republicanos acabaram concordando que a prática de separar famílias tinha que ser interrompida. Um grupo de legisladores Democratas exigiu acesso a Casa Padre, um antigo supermercado em Brownsville que abrigava várias das crianças. Durante a visita de um grupo de legisladores na segunda-feira, os repórteres ficaram atrás de barreiras.
Em todo o estado, o padre jesuíta Rafael Garcia, pastor da paróquia Sagrado Coração, em El Paso, concentrou-se em formas práticas e espirituais de ajudar. Na Annunciation House, um abrigo para imigrantes recém liberados da prisão, Garcia faz ligações para conseguir passagens de ônibus e de avião para uni-los aos entes queridos. "Falamos sobre valores da família o tempo todo, mas é lamentável que, da forma como o governo está encarando, parece que queremos esses valores apenas para cidadãos dos EUA", disse.
Ele é o sacerdote que prega a imigrantes em três centros de detenção, dois deles para menores, e disse que reza com as crianças e celebra a missa. "Não há dúvida de que eles estão em um momento de sofrimento e angústia, e estão rezando pela família e para terem força", disse Garcia sobre os imigrantes adultos que estão presos. Ele expressou preocupação com os efeitos do trauma a longo prazo sobre os mais jovens. "Essas crianças que têm 5, 6 anos de idade estão sendo cuidadas e tudo mais, mas estão sozinhas."
Ainda no centro de repouso em McAllen, equipes de jornalismo da Noruega, da Itália e dos Estados Unidos aguardavam para entrevistar Pimentel ao tentar entender a política do governo Trump. A demanda foi tão grande que os voluntários tiveram que limitar sua exposição na mídia. "Ela está exausta", disseram.
Em meio à agitação, Pimentel refletiu sobre os anos 80, quando agentes da fronteira ligaram ao convento para ver se as irmãs podiam cuidar de uma família de imigrantes. "Eles eram muito cuidadosos com a família e as crianças, e queriam ter certeza de que eles estavam em um lugar em que pudessem estar juntos."
Apesar da aspereza registrada nos relatórios de visitantes imigrantes, ela disse que a relação com a patrulha da fronteira e com o ICE é "muito boa". Naquela tarde, ela ia tomar café com o chefe da patrulha de Rio Grande Valley, Manuel Padilla Jr., que de vez em quando verifica o que ela precisa ou ouve suas preocupações.
"Quanto a como o governo optou por lidar com isso — é a pior coisa que já vi", declarou. "Usar a dor de uma criança, o sofrimento de uma família para dissuadir uma outra família de vir é errado. Acho que é totalmente antiético, imoral, cruel, e não pode acontecer."
Quando perguntaram se ela achava que a política tinha dissuadido pessoas de virem, Pimentel hesitou. "Não parece", disse. "Acho que se fosse verdade, eles já teriam parado de vir, mas ainda vêm em grande número."
Algumas horas depois, um ônibus deixou um grupo de cerca de 20 imigrantes no centro. Eles entraram correndo enquanto chovia, e sentaram nas cadeiras de plástico azuis, esperando atendimento de voluntários. Menos de uma hora depois, outro grupo de cerca de 15 pessoas entrou pelas portas de vidro. Outro grupo chegou em seguida, e depois mais outro — cerca de 100 por dia. Ela estava certa. Eles ainda vêm em grande número.
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As famílias imigrantes passam por separação, ações na justiça e incerteza de "tolerância zero" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU