26 Junho 2018
"A atual série de eventos tem demonstrado que na visão de Trump o racismo e a xenofobia são essenciais para ter apoio político", escreve Richard Butler, diplomata, ex-embaixador das Nações Unidas, em artigo publicado por La Croix International, 25-06-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
Richar Butler AC foi embaixador das Nações Unidas, chefe da Comissão de Camberra sobre a Eliminação de Armas Nucleares e presidente executivo da UNSCOM, comissão especial da ONU para o desarmamento do Iraque.
Os eventos na fronteira EUA-México dos últimos dias foram marcados por uma mistura de trumpismo por excelência: mentiras, ocultação, administração em desordem e, acima de tudo, crueldade, neste caso com as crianças e bebês sendo vítimas.
Tem havido uma manipulação implacável de xenofobia e racismo para fins políticos. Um valor ético fundamental tem sido difamado: a compaixão.
No Dia Mundial do Refugiado na semana passada, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados informou que existem agora 68,5 milhões de refugiados no mundo, situação principalmente causada pela guerra. Uma situação terrível.
Este contexto deveria servir para fornecer alguma perspectiva sobre outro, menor, mas também terrível: a separação das crianças dos seus pais por parte dos Estados Unidos. Elas atravessaram ilegalmente a fronteira do México ao Texas para pedir asilo, principalmente em função da violência na Guatemala, Honduras e El Salvador.
Essa perspectiva deveria nos aconselhar a não aumentar o problema americano em relação às questões globais mais amplas.
Mas, também deve nos alertar para o profundo significado do que esta situação representa, precisamente porque é os EUA que está a conduzindo desta forma — o país mais poderoso, pelo menos em material e termos militares; e, também, profundamente comprometido à religião, às questões morais, pelo menos em público e, ao seu discurso político.
Em defesa de sua política de imigração chamada de "tolerância zero", Trump aumentou seu vocabulário para descrever imigrantes/refugiados como: criminosos, estupradores, traficantes de drogas, "animais" que "infestam" os Estados Unidos.
Declaradamente, cerca de 2.300 crianças foram retiradas de famílias que cruzaram a fronteira sem permissão nos últimos dias.
Em resposta a indignação generalizada em decorrência dessas "separações", Trump assinou uma ordem executiva para revertê-las.
Não está claro como será feito. Nem como esta reunião das famílias será alcançada. Afinal, não foi dado um documento de identificação nem para as crianças, algumas das quais são menos de um ano de idade, nem para seus pais. Nem mesmo foi dado um “recibo”, como assinalou um observador, como é dado quando uma pessoa está marcada com alguma alegação de infração civil e tem que entregar o conteúdo de seus bolsos.
Mas agora foi revelado que as crianças e os pais receberam um número de registro. O problema é que os números foram emitidos para as crianças e para os pais por duas agências federais diferentes e não está claro se eles estavam cruzados.
Muitas crianças foram transferidas para longe. Algumas para Estados que ficam além do Texas. Aparentemente estão sendo elaboradas maneiras de como encontrá-las, identificá-los com precisão e reuni-las com seus pais.
Como é seu costume, Trump tem mentido repetidamente ao tentar defender nestas circunstâncias a necessidade de "tolerância zero" sobre o que é considerado como migração ilegal. A propósito, os Estados Unidos recusou a se tornar parte da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança.
Entre as mentiras de Trump está sua afirmação de que a política de separações foi instituída pelos democratas; taxas de criminalidade têm aumentado como resultado de imigrantes ilegais; "63.000 americanos foram mortos por imigrantes ilegais desde 9/11[2001]...."
Estas afirmações têm sido desmascaradas e reveladas falsas. Aquela sobre os 63.000 teve sua origem em uma postagem de blog em 2005 por um congressista republicano de direita vinculado ao movimento de supremacia branca dos EUA.
No dia seguinte em que assinou a ordem executiva das separações, Trump fez um discurso de uma hora de duração num comício para seus apoiadores em Minnesota. O Washington Post analisou o discurso na coluna Fact Checker (“Checadora” de Fatos, em português) e verificou 30 afirmações falaciosas feitas por ele.
No dia seguinte, em uma manifestação semelhante em Nevada, ele falou dos migrantes/refugiados que "virão aos milhões" se não houver "tolerância zero."
A atual série de eventos tem demonstrado que na visão de Trump o racismo e a xenofobia são essenciais para ter apoio político. São elementos de base da sua presidência. E, é importante ressaltar, ele claramente não se sente mais qualquer necessidade de mascarar ou negar isto.
Isto é pura demagogia.
Estas realidades sombrias da "base" de Trump, como ele vê, não são o único fundamento de sua política. O outro lado é o que ele chamou em seu discurso inaugural em janeiro de 2017 de o "massacre" que está ocorrendo na América.
Ele deixou claro que quis dizer o massacre econômico, a privação e angústia que os americanos comuns estão sofrendo, cuja situação ele se comprometeu a parar e reverter.
Qual é a realidade da pobreza nos EUA?
Em 2014, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, o qual os Estados Unidos se retirou na semana passada, nomeou Philip Alston, professor de direito na Universidade de Nova York, como o relator especial sobre a extrema pobreza e direitos humanos.
Alston, australiano, realizou então um estudo sobre a pobreza endêmica em cidades americanas e o Sul rural. Ele relatou que uns 40 milhões de americanos viviam em condições de extrema pobreza. (A declaração de Alston em suas descobertas sobre os EUA em 15 de dezembro de 2017, certamente vale a leitura. Está disponível em inglês no site do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, e pode ser acessado aqui).
Mick Mulvaney, diretor de orçamento de Trump, publicou na semana passada um plano que vem trabalhando durante um ano a fim de reformular o governo federal cortando ou reestruturando programas de bem-estar social.
O plano inclui uma revisão da Supplemental Nutrition Assistance Programme (SNAP) (Programa de Assistência Nutricional Suplementar, em português), um benefício de subsistência que fornece ajuda alimentar para 42 milhões de americanos pobres (ou seja, na ordem de magnitude do relatório de Alston).
O Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano também está considerando uma proposta para aumentar em 42% os aluguéis de alguns moradores mais pobres de habitação subsidiada.
Trump é amplamente divulgado como sendo profundamente desinteressado nos detalhes da política. Então, de onde estão vindo essas ideias e iniciativas? A resposta é: The Heritage Foundation, principal think tank republicano/conservador de Washington.
É dito que a Haritage tem colocado cerca de 60 pessoas na alta política, aconselhando cargos na Casa Branca e na Administração.
Algumas nomeações de ministros foram feitas a partir de sua recomendação, como por exemplo, a Ministra da Educação Betsy De Vos, cuja família tem sido um dos principais doadores para a Heritage e, Mulvaney, diretor de orçamento.
Um objetivo central das políticas da Heritage é o desmantelamento do sistema de bem-estar social americano "de dentro para fora."
A propósito, era a Heritage e o Projeto para o Novo Século Americano, liderado por Cheney, Rumsfeld, Wolfowitz, et al, que produziram a justificativa para a invasão do Iraque de 2003.
Ao ver o desastre que se desenrolava na fronteira de EUA-México na semana passada, se ouvia os ecos da nossa experiência australiana de manipulação política das questões de migração/refugiados, iniciada por John Howard: Tampa Affair, Children Overboard, o naufrágio do SIEV X (353 mortos).
Hoje, nós temos Nauru e Manus [centros australianos de retenção de migrantes, nde] e, detenção indefinida, inclusive de menores. Trump tem se inspirado em Howard?
Essas políticas continuam na Austrália, dentro os dois maiores partidos, mas o humor negro na nossa relação com os EUA está, entre todas as coisas, em relação aos refugiados;
É impressionante a crueldade pura, a ausência gritante em Trump daquilo que é mais fundamental no ser humano e nos valores cristãos: a compaixão.
Compaixão não é um núcleo cristão de valor exclusivo ao cristianismo. Mantém o mesmo lugar em todos os principais sistemas ético/moral e religiões. Muito trabalhada por Platão, Aristóteles e depois deles, Agostinho.
Eu toco neste ponto aqui por causa do conflito profundo que existe dentro dos EUA entre o apego ao pessoal, sucesso material e as crenças éticas. Esse conflito agora foi ampliado, dramaticamente, pelo comportamento de Trump.
Outro princípio ético fundamental, repetidamente abusado por Trump, é a necessidade constante de verdade, princípio de verossimilhança no discurso público.
Os dois dominantes e mais graves problemas que estamos nos defrontando como consequência de Trump no salão oval e de sua política, é seu ataque sobre a necessidade elementar de verdade no discurso público e sua elevação do egoísmo como uma virtude e como justificativa para qualquer ação. Ao banir a compaixão, se atribuiu a ela o status de uma fraqueza.
Em termos políticos convencionais, tanto a culpa e quanto o remédio para o desastre de Trump se encontra com o partido republicano.
Até agora eles têm ficado com Trump, mas parece cada vez mais provável que isso virá para prejudicá-los grandemente no futuro, como já está prejudicando muitas pessoas, tanto dentro dos Estados Unidos quanto em outros lugares do mundo.
Particularmente, precisamos nos perguntar: estamos sendo obrigados a aceitar como determinantes das nossas políticas o resultado do narcisismo de Trump e os conflitos da classe política americana?
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‘Tolerância zero': Trump bane a compaixão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU