26 Junho 2018
O mandato do presidente Peña Nieto está chegando ao fim e sobre ele sempre pesará a memória do terror, a mancha de um evento sangrento que, por si só, conta o horror que atormenta um país há várias décadas: Ayotzinapa. No dia 16 de setembro de 2014, vários ônibus com estudantes de uma escola normal do Estado de Guerrero partiram de Ayotzinapa rumo à capital mexicana. 43 deles nunca chegaram. Desapareceram.
A entrevista é de Eduardo Febbro, publicada por Página/12, 24-06-2018. A tradução é de André Langer.
Quase quatro anos depois, a guerra de narrativas para explicar esses desaparecimentos forçados ainda põe em confronto a narrativa oficialista com a narrativa das famílias dos estudantes, dos defensores dos Direitos Humanos, com as evidências científicas fornecidas por especialistas e membros do Grupo Interdisciplinar de Especialistas Independentes (GIEI), encarregados de investigar o que aconteceu com os 43 normalistas de Ayotzinapa. A verdade foi enterrada na inverossímil barreira que o Estado interpôs ante os investigadores.
No relatório final apresentado em abril de 2016, o GIEI acusou o governo mexicano de ter dilatado, obstruído e bloqueado o trabalho dos investigadores. Também em fevereiro de 2016, a Equipe Argentina de Antropologia Forense, EAAF, forneceu dados científicos decisivos sobre esses desaparecimentos que desmentem completamente a tese do Estado. A equipe argentina demonstrou, em um relatório de 350 páginas, que os corpos dos 43 estudantes não foram queimados no aterro sanitário de Cocula (tese oficial).
Os argentinos Mercedes Doretti e Miguel Nieva fizeram parte da equipe de peritos forenses que trabalharam no relatório exaustivo, destacando as irregularidades da investigação oficial. Até mesmo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ONU-DH) expressou sua “preocupação” com as conclusões alcançadas pela investigação interna da Procuradoria Geral da República (PGR) sobre as anomalias encontradas na investigação do caso de Ayotzinapa. Ao longo das 608 páginas do relatório final, o GIEI não apenas questionou a versão oficial do massacre, como também a integridade do Estado mexicano.
A noite de Iguala continua mergulhada nas trevas. Os corpos dos estudantes não foram encontrados, nem a verdade global. John Gibler aproximou-se como poucos dessa noite que engoliu 43 vidas. Este jornalista norte-americano mora há muitos anos no México. Ele escreveu vários livros [Morir en México (Editorial Oveja Negra), México Rebelde (Debate), Tzompaxtle, La Fuga de un guerrillero (Tusquets Editores)] e é também autor de uma das pesquisas mais abrangentes sobre Ayotzinapa.
Publicada na Argentina com o título Uma História Oral da Infâmia. Os ataques aos normalistas de Ayotzinapa (Una historia Oral de la Infamia. Los ataques a los normalistas de Ayotzinapa, Tinta Limón Ediciones), a pesquisa de John Gibler é um relato denso do real, uma demonstração implacável das interações entre atores públicos e crime organizado que levaram ao desaparecimento dos estudantes.
Nesta entrevista concedida ao Página/12, Gibler desenvolve a trama daquela noite escura no México, ao mesmo tempo que propõe duas hipóteses para explicar o que aconteceu. Em ambas fica em evidência a “fusão” entre o Estado e as práticas do narcotráfico.
Todo o México continua se perguntando onde estão os 43 desaparecidos de Ayotzinapa. Em seu livro se distingue o papel cúmplice do Estado.
Desde aquela noite o Estado vem administrando o terror. E para falar em termos concretos, quando digo o Estado, falo de policiais municipais de três municípios, de policiais federais, de policiais estaduais e também de procuradores do Ministério Público, proteção civil, governadores, prefeitos, senadores, o presidente da República e o secretário de Defesa. Ou seja, o Estado não como uma entidade abstrata, mas o Estado como uma coordenação das forças públicas dos três níveis.
Naquela fatídica noite, eles se coordenaram para atacar, matar, fazer desaparecer e, a partir de então, se coordenaram para mentir, obstruir, desacreditar, menosprezar as famílias e impossibilitar encontrar os estudantes e, portanto, a verdade. Permanece até hoje uma operação estatal com duas etapas: uma etapa material, que corresponde aos ataques, e uma etapa administrativa legal.
Qual é o porquê de Ayotzinapa?
Justamente, o porquê não sabemos. Através de todas essas operações, eles nos condenam à especulação. Especulemos, perguntemos e continuemos especulando. Pode ser que, inadvertidamente, os estudantes tenham entrado em um ônibus em que se encontrava um grande carregamento de ópio destinado ao mercado norte-americano, onde há cerca de dez anos houve uma impressionante expansão do mercado de heroína. Talvez essa seja a razão pela qual eles tiveram que recuperar esse ônibus a qualquer preço.
E talvez também aqueles que recuperaram a carga sentiram que tinham que dar uma mensagem múltipla: não nos tocam. Mas também é uma mensagem do Estado para os movimentos de resistência deste país: vocês estão destinados à morte e ao desaparecimento. Nessa especulação que eu levanto há um duplo fio de narcotráfico e contra-insurgência. Há muitas dúvidas e detalhes que nos levam a fazer essas perguntas de uma forma séria. O fato de que não só os estudantes desapareceram, mas também o ônibus; o chamado quinto ônibus nunca foi encontrado. O Estado não apenas nunca o entregou, mas falsificou outro ônibus e o apresentou. Ao final, os investigadores se deram conta.
Há também dinâmicas nos ataques. Foi uma operação em que vários órgãos policiais colaboraram. Eles recorreram à telefonia, à comunicação via rádio. Ou seja, toda a lógica de uma operação está presente e não um descontrole. Houve ordens. Isso aparece na lógica dos ataques. Primeiro param os estudantes, não os matam, param-nos. Depois de transcorrido mais de uma hora, começam a levá-los. Isso me diz que houve duas ordens: primeiro, para pará-los. Enquanto estão parados, aguardam a próxima ordem. E quando a outra ordem chega, são instruídos a levá-los para algum lugar e que levantem os ônibus. Esses são os fatos.
Os únicos que agiram como se estivessem em um Estado de direito foram os estudantes. Eles se colocaram sob uma lógica jurídica quando perceberam que tinha havido um crime. Eles acreditaram que havia um Estado que não mata, mas investiga. E quem veio em seu socorro? Não foi o Ministério Público nem nenhum representante da lei. Chegaram homens armados, à paisana e encapuzados, que abriram fogo contra as pessoas e, para começar, mataram dois estudantes. Ali desapareceu Julio César Mondragón Fontes.
No dia seguinte, encontraram-no mutilado e torturado. Desfiguraram-lhe o rosto e arrancaram-lhe os olhos. Essa é a linguagem do Estado. O Estado e os meios de comunicação oficiais tacham os estudantes de vândalos, radicais e mini-guerrilheiros. No entanto, quando as coisas ficaram mais sérias, os estudantes foram os únicos que arriscaram suas vidas para proteger uma cena de crime.
O oficialismo judicial e político, apoiado por meios de comunicação de uma irresponsabilidade que beira a barbárie, desencadeou uma monumental campanha de difamação contra os atores externos da investigação posterior, como do grupo de Antropologia Forense que veio da Argentina e até contra a própria comissão do GIEI. Para se chegar a esses níveis, deve haver algo muito importante que se queira esconder.
Sabemos que foi o Estado e que estão se protegendo. Eu vejo concretamente duas possibilidades de verdade. Uma, que já mencionamos: sem saber, os estudantes entraram em um ônibus em que havia um carregamento de drogas. Veio a ordem primeiro para pará-los e depois castigá-los. A segunda possibilidade é que se tratou de um ato de contra-insurgência, premeditado, montado para que pareça outra coisa, para que pareça narcotráfico, mas que foi um duro golpe contra um dos baluartes da resistência radical deste país.
Deve-se ressaltar que, ao contrário do que se pensa, o México é um país profunda e radicalmente rebelde, insubmisso, que soube proteger sua fabulosa cultura apesar de todas as tentativas de apagá-la.
O México é um país que nasce de uma invasão e de uma resistência. E essas forças estão vivas até hoje. O mito diz que os espanhóis chegaram, invadiram e conquistaram. Mas não é bem assim. Aí está o erro. Os espanhóis chegaram, invadiram, colonizaram, oprimiram, mas nunca alcançaram a hegemonia. É um país com raízes de rebelião, resistência e insurgência tão profundas quanto as raízes das instituições, da chamada modernidade e do México tomado por forças europeias e ocidentais. Essa luta continua latente.
E há forças muito visíveis e organizadas, como o Exército Zapatista de Libertação Nacional, como a seção 22 do sindicato dos trabalhadores da Educação, como a Escola Normal de Ayotzinapa, que é a mais aguerrida porque daí saíram dois guerrilheiros muito famosos do GIEI dos anos 60 e 70, Genaro Vázquez e Lucio Cabañas.
Quando o ex-presidente Vicente Fox (2000-2006) chegou à presidência, disse: “Vou resolver o problema de Chiapas em 15 minutos”. Mas o Congresso derrubou o projeto de lei sobre a autonomia indígena. Mais uma vez, aqui, os zapatistas demonstraram que acreditavam no Estado de Direito, mas foram traídos. Eles fizeram uma manobra para subjugar ainda mais os indígenas. Foi quando os zapatistas disseram: “nós vamos fazer o que foi acordado sem pedir-lhes permissão”. Assim nasceu a autonomia em Chiapas, os caracóis, etc.
Além disso, durante o governo de Fox, acontece a greve dos professores em Oaxaca, durante a qual passaram a controlar a capital e o próprio Estado em uma insurgência não armada. Quando chega o presidente Felipe Calderón (2006-2012), tentou acabar com todos esses movimentos militarizando o país sob o pretexto de uma guerra contra o narcotráfico que não existe, que ele inventa e que então passa a existir.
Por último, vem Peña Nieto e mantém essa guerra sem o discurso da guerra. E aí acontece o massacre de Ayotzinapa. É um ciclo contínuo de ações, de divisão e de terror de Estado e de repressão dos movimentos mais profundos de resistência deste país. Essa é a lógica.
Através de Ayotzinapa se vê também uma convergência entre o Estado e o crime organizado.
Efetivamente, em qualquer uma das duas especulações que se escolher para explicar o que aconteceu em Ayotzinapa, vê-se que as práticas do Estado já se fundiram com a suposta guerra do narcotráfico. Tudo o que nos anos 80 e 90 era o folclórico do narcotráfico já faz parte do Estado. Sempre houve uma profunda relação entre o Estado e o narcotráfico.
Agora não, agora há uma fusão. Eles são como duas empresas que depois de competir durante muitos anos e ter interesses em comum acabaram se fundindo. Foi o que se viu nas ruas de Iguala na noite em que aconteceu Ayotzinapa: a fusão entre o Estado e o narcotráfico. Matar é um bom negócio, o desaparecimento forçado é um negócio. Lucra-se com o terror.
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México. “Lucra-se com o terror”. Entrevista com John Gibler - Instituto Humanitas Unisinos - IHU