14 Junho 2018
São incompatíveis a produção agrícola e a manutenção da biodiversidade?
A cesta de compra de uma família de Ohio (Estados Unidos) afeta a biodiversidade da península ibérica. A afirmação, tão genérica como desconcertante, vai além do efeito mariposa e condensa a importância do consumo e da exportação de produtos na saúde do planeta e das espécies que o habitam. O biólogo Edwar Osborne Wilson, a quem se atribui o termo “biodiversidade”, o resume de maneira simples: seriam necessários os recursos de quatro Terras para que toda a população do mundo pudesse alcançar os níveis estadunidenses.
A reportagem é de María Ángeles Fernández e Jairo Marcos, publicada por Esglobal, 08-06-2018. A tradução é do Cepat.
Uma publicação da revista científica Nature Ecology & Evolution vincula os hábitos de consumo com a vida silvestre, servindo-se de ferramentas de big data. Através de uma série de mapas, seus autores determinam que existem 6.803 espécies de animais vulneráveis pelos costumes humanos. “Localizar pontos críticos impulsionados pelo consumo de bens e serviços pode ajudar a conectar conservacionistas, consumidores, empresas e governos, com a finalidade de melhorar as ações de conservação”, explicam.
Espanha e Portugal aparecem coloridos em roxo neste estudo. A tonalidade alerta sobre a presença de peixes e pássaros em risco de extinção. “Podemos ver muitas ameaças de espécies de aves vinculadas a uma agricultura cada vez mais industrializada. Além disso, a Espanha exporta muitos produtos agrícolas para os Estados Unidos, incluindo legumes em conserva, nozes, geleias e conservas”, detalha um dos autores da pesquisa, o japonês Keiichiro Kanemoto, que citando um estudo de SEO/BirdLife cifra em 64 milhões a perda de aves nos últimos 20 anos no Estado espanhol. “A intensificação agrária traduzida na eliminação de limites, a generalização das monoculturas e a extensão do uso de numerosos produtos fitossanitários, entre outros fatores, podem estar por trás deste progressivo desaparecimento de aves agrárias que também afeta outras espécies”, destaca Juan Carlos del Moral, membro desta organização.
Que a forma de vida humana afeta o restante de variedades do planeta e a perda de biodiversidade resulta evidente de acordo com os estudos. A alarmante diminuição do número de abelhas, fundamentais para a vida, é o paradigma disso. Sem estes insetos é complicado que haja polinização de plantas e, por sua vez, é o modo de cultivar que está acabando com elas. Três dados do Greenpeace esboçam a problemática: 75% dos alimentos que consumimos depende da polinização; 37% das populações de abelhas na Europa estão em declive; e, só para a agricultura espanhola, o valor econômico do trabalho de polinização destes insetos é de mais de 2,4 milhões de euros.
Colocados os números, por que as abelhas estão desaparecendo? Entre outras razões, o dedo acusador aponta à agricultura industrializada, que costuma implicar monoculturas (menor disponibilidade e diversidade de alimento para estes insetos) e praguicidas. De fato, recentemente a União Europeia proibiu o uso de três inseticidas relacionados ao declive destes animais, segundo diversos estudos. Por outro lado, a agricultura industrializada costuma também cada vez mais ocupar maiores extensões: a expansão de territórios agrícolas foi maior a partir da Segunda Guerra Mundial até a atualidade que durante os séculos XVIII e XIX, o que implica o desaparecimento de superfícies arborizadas. Aproximadamente, 24% da superfície terrestre do planeta está coberta por cultivos.
“A agricultura global já teria superado um ponto de inflexão ameaçador, deixando de ser uma causa menor da degradação ambiental, há tão somente 35 anos, para se constituir a causa mais importante do desaparecimento e fragmentação de habitats e da consequente perda de matas e biodiversidade”, escreveram Marcelo Cabido e Marcelo Zak, pesquisadores argentinos e integrantes do Painel Intergovernamental sobre a Mudança Climática (IPCC).
E aqui se abre o campo das perguntas e matizes, das propostas e alternativas. “A agricultura não é inimiga da biodiversidade. Mas, sim, uma forma intensiva e industrializada de cultivar plantas. E isto se aplica em geral a muitas atividades humanas, já que o mesmo se pode dizer de plantações florestais que são realizadas somente com a finalidade de produzir alimentos ou produtos diretos como a madeira”, explica a este meio de comunicação o doutor em Ciências Biológicas e pesquisador do Conselho Superior de Pesquisas Científicas (CSIC), Fernando Valladares. Uma afirmação avalizada pela FAO, desde 1996, quando apontou que a principal causa da erosão genética, ou seja, da perda de biodiversidade, é a substituição de variedades autóctones por outras de origem industrial, por causa do desenvolvimento da agricultura industrial e mercantil.
Antes que inimiga, a agricultura inclusive fomenta, em muitas diferentes ocasiões, uma maior biodiversidade. “A tradicional deu lugar a muitas variedades de espécies vegetais e gerou novas interações entre animais e plantas, o que é em si mesmo outra forma de biodiversidade e gera, por sua vez, novidades evolutivas que também aumentam a biodiversidade. Algumas das zonas de maior biodiversidade do planeta, como a bacia mediterrânea, foram cultivadas durante milênios e se geraram interessantes sinergias entre zonas mais geridas e outras mais naturais que favoreceram a conservação destes altos níveis de biodiversidade”, comenta Valladares.
Uma tese próxima é a que defendem Isabel Vara-Sánchez e María Carmen Cuéllar, do Instituto de Sociologia e Estudos Campesinos da Universidade de Córdoba, que falam de “biodiversidade cultivada”, que é a que se dá nos sistemas agrários. “São a mão e os conhecimentos das pessoas que manejam e planejam esses espaços os que geram essa diversidade. Quando falamos de ‘biodiversidade cultivada’, dizemos que a dimensão cultural humana vai ao encontro”, acrescenta Cuéllar.
O debate, portanto, está em ver e decidir que tipo de agricultura se pratica, dado que a formação no campo nem sempre implica uma mesma filosofia e manejo. Para Valladares, é preciso uma relação amigável com o meio ambiente, que respeite a flora e fauna nativas dos lugares onde se realiza, com um uso mínimo e racional de agroquímicos e de recursos-chave como a água e o solo fértil, e que se apoie e favoreça a economia local. Para este especialista, assim seria compatível com a conservação. Por sua parte, María Carmen Cuéllar aposta na “diversificação produtiva”.
A Espanha é o país da União Europeia com maior superfície dedicada a cultivos ecológicos, mais de dois milhões de hectares, segundo Eurostat. Embora a Áustria seja o primeiro em porcentagem – 21% frente a 10% da Espanha -, devido em parte a uma aposta estratégica do Governo, há anos atrás. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável também caminham nesta direção de mudança ao reconhecer a necessidade de transformar os sistemas alimentares e a agricultura.
A pesquisadora Ainhoa Magrach acrescenta uma nova aresta: as necessidades de alimentação de uma população mundial em aumento, ainda que com matizes: “O problema em muitos casos é a distribuição e o acesso aos alimentos e também o desperdício, que nesse momento representa cerca de 30% do consumo”. Esta especialista do Basque Centre for Climate Change (BC3) explica que, no âmbito científico, se abriu um debate não resolvido sobre o que é melhor, se a separação das áreas de produção de alimentos das zonas de conservação da biodiversidade (land sparing) ou a integração dos dois espaços (land sharing). A primeira alternativa “assume que, caso sejam separadas as duas zonas e se aumenta a produção nas zonas agrícolas ao aumentar a intensificação imediatamente, isto dará lugar a um aumento das áreas naturais. Mas, raras vezes ocorre, já que em muitos casos essa mesma intensificação tem efeitos negativos sobre as áreas naturais próximas, por contaminação por pesticidas, excesso de uso de fertilizantes, etc...”, destaca.
Por isso, Magrach, que participou da pesquisa internacional Dezesseis anos de mudança na pegada humana terrestre global e suas implicações para a conservação da biodiversidade, publicada por Nature Communication, acrescenta que “cada vez mais se fala da intensificação ecológica como solução”, o que implica na substituição de muitos produtos, como os fertilizantes, por serviços ecossistêmicos. E coloca exemplos: a presença de pássaros insetívoros em zonas agrícolas rodeadas de matas pode aumentar o controle de pestes sem a necessidade de usar produtos químicos; ou quando se deixam zonas com abundância de flores, os polinizadores selvagens, novamente as abelhas, podem aumentar a produção de muitos cultivos.
A Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) afirma inclusive que “a agricultura orgânica está vinculada e comprometida à conservação e ao aumento da biodiversidade dentro dos sistemas agrícolas, tanto em uma perspectiva filosófica, quanto do ponto de vista pragmático de manter a produtividade”. Além disso, recordam que muitos bancos de sementes e programas de conservação de variedades indígenas estão relacionados com projetos de agricultura orgânica.
Ainhoa Magrach finaliza a modo de conselho: “Dada à crise de biodiversidade em que estamos imersos, a conservação deveria assumir um papel prioritário nas decisões que se toma quanto aos usos do solo”. Ou seja, em relação aos produtos da cesta de compra, na Espanha. E também em Ohio.
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O futuro da biodiversidade passa pela cesta de compra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU