10 Mai 2018
Em entrevista coletiva, parlamentar se disse "chateado" com acusação. Seu colaborador foi morto a tiros no mês passado dentro do carro.
A reportagem é de Felipe Betim, publicado por El País, 09-05-2018.
Uma das pistas mais importantes sobre a execução da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes foi relevada nesta terça-feira, 55 dias depois do assassinato no 14 de março, por uma reportagem do jornal O Globo: o vereador carioca Marcello Moraes Siciliano, do Partido Humanista da Solidariedade (PHS), tramou o assassinato junto com o ex-policial militar e miliciano Orlando de Oliveira de Araújo. Isso ao menos segundo uma testemunha ouvida pelas polícias Federal e Civil.
Marcello Siciliano. | Foto: Tomaz Silva/Ag Brasil
Siciliano, de 46 anos, prestou depoimento à Polícia Civil como testemunha junto com outros vereadores. Dois dias depois, no domingo de 8 de abril, um de seus assessores parlamentares foi brutalmente executado dentro de seu carro, algo que foi interpretado como uma tentativa de queima de arquivo. Já Orlando está preso desde outubro do ano passado e cumpre pena por envolvimento com a milícia no bairro de Curicica, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. A testemunha, que não foi identificada e contará com proteção policial, também informou os nomes de quatro homens escolhidos pela dupla para cometer o crime que teria começado a ser arquitetado em junho do ano passado.
Em três depoimentos, a testemunha, que assegura ter sido coagida a trabalhar para o ex-policial, conta ter presenciado ao menos quatro reuniões entre ele e Siciliano. Sobre uma delas, ocorrida em um restaurante no Recreio, contou: "Eu estava numa mesa, a uma distância de pouco mais de um metro dos dois. Eles estavam sentados numa mesa ao lado. O vereador falou alto: 'Tem que ver a situação da Marielle. A mulher está me atrapalhando'. Depois, bateu forte com a mão na mesa e gritou: 'Marielle, piranha do [deputado estadual Marcelo] Freixo'. Depois, olhando para o ex-PM, disse: 'Precisamos resolver isso logo'".
Nesta quarta-feira, Siciliano convocou uma entrevista coletiva para refutar as acusações, frisando que sua relação com Marielle era de amizade e que estava "chateado" com a acusação. "Agora mais do que nunca faço questão de que esse crime seja esclarecido mais rápido que nunca. Estou sendo massacrado nas redes sociais por algo que foi supostamente dito por uma pessoa que a gente nem sabe a credibilidade que tem", disse. "A região da Cidade de Deus nunca foi meu reduto. Em Curicica, também não tive votos. Coisas totalmente sem pé nem cabeça", acrescentou. Disse não conhecer o ex-policial Orlando e que nunca esteve em uma reunião formal com ele, mas não descartou já ter interagido com o miliciano em alguma de suas passagens por favelas da Zona Oeste. Durante a entrevista, ainda comentou o seguinte: "Eu acho que a gente transforma a cidade dando direito de oportunidades. O resto, milícia, tráfico, são problemas de polícia. E não de política. O meu reduto é Vargens e cheguei adotando creches. A educação transforma. O direito de cidadania é pelo que eu luto. Eu sou totalmente contra qualquer tipo de poder paralelo. A polícia esta aí para me proteger. Que vão lá e façam o trabalho deles. Eu nunca fui interpelado".
Siciliano está em seu primeiro mandato como vereador do Rio de Janeiro, eleito pelo PHS com 13.500 votos. A maioria deles, segundo verificou o EL PAÍS no site do Tribunal Regional Eleitoral do Rio, são provenientes de bairros da Zona Oeste da cidade, nos arredores de Jacarepaguá, Recreio, Vargem Grande e Vargem Pequena. São regiões da cidade que abrangem áreas — como Anil, Gardênia Azul e Rio das Pedras — dominadas por milicianos, grupos paramilitares formados por agentes do Estado da ativa e da reserva, tais como policiais e bombeiros, que controlam serviços como o de transporte, distribuição de gás e instalação de internet e TV a cabo, além de possuir o respaldo de políticos e lideranças comunitárias. Estima-se que cerca de 160 comunidades, e dois milhões de pessoas, estejam submetidos ao poder das milícias em todo o Estado do Rio. Elas já elegeram deputados estaduais e vereadores, vários deles presos após a CPI das Milícias de 2008 comandada pelo deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL).
Siciliano aterrissou na Câmara após sucessivas derrotas eleitorais e mudanças de partido. Em 2010, tentara se eleger deputado estadual pelo Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), mas seus 8.013 votos se mostraram insuficientes. Quatro anos depois, em 2014, voltou a concorrer ao cargo, dessa vez pelo Partido Social Democrata Cristão (PSDC). Naquele ano, o jornal O Globo publicou uma reportagem sobre um relatório sigiloso, chamado “Extrato de inteligência de número 2 das eleições 2014”, que fez com que o Tribunal Superior Eleitoral solicitasse apoio das Forças Armadas para garantir o bom funcionamento das eleições no Rio. O documento identificou 41 áreas dominadas por milicianos e traficantes nas quais "grupos (criminosos) atuariam na coação das pessoas que residem naquelas localidades como forma de impedir o pleno gozo dos direitos políticos". Candidatos encontravam dificuldade para fazer campanha, mas alguns deles tinham passe livre para fazer propaganda. Siciliano era um deles. Sua imagem e do também candidato Domingos Brazão predominavam entre placas e cartazes na Gardênia Azul, bairro de Jacarepaguá sob domínio de milicianos. O jornal carioca também constatou que ambos montaram comitês dentro da comunidade e mostrou relatos de moradores que diziam obrigados a colocar em seus muros as placas dos candidatos. Siciliano melhorou seu desempenho e conquistou 18.287 votos, mas ainda assim insuficientes para elegê-lo.
Nascido em 1972, o hoje vereador se casou muito cedo, aos 19 anos. Pai de quatro filhos e avô de três netos, suas falas sempre são carregadas de menção a sua família e a Deus. Com ensino médio completo, mas sem passagem pela universidade, se consolidou como um bem sucedido empresário da construção civil com diversas ações sociais, geralmente ligadas ao esporte e educação, em bairros e comunidades da zonas Norte e Oeste. Seu mandato como vereador também vem sendo marcado por ações e projetos sociais em seu reduto eleitoral, onde possui livre movimentação apesar das facções criminosas que dominam muitos dos bairros. Tem boa relação com o prefeito Marcelo Crivella (PRB), com quem geralmente aparece em vídeos publicados em sua página no Facebook.
A relação com a vereadora Marielle Franco também era boa, garante Siciliano. Quando foi morta, o vereador publicou em seu Facebook uma mensagem lamentando o ocorrido junto com uma foto em que apareciam abraçados. Os dois chegaram a assinar juntos um projeto de lei que criava um programa de desenvolvimento cultural do funk tradicional carioca. Mas um vídeo publicado pela vereadora em agosto de 2017 mostra que nem sempre a relação era cordial. No plenário da Câmara, Marielle aparece repreendendo Siciliano por sua postura nos debates. "A minha palavra é palavra de mulher, mas vale. Não é só palavra de homem que vale, não", disse na ocasião.
Desde que Marielle e Anderson foram assassinados há quase dois meses, familiares e amigos, entre eles políticos do PSOL, vem reafirmando a confiança nas investigações da Polícia Civil, que vem trabalhando praticamente desde o início com a hipótese de que o crime foi cometido por milicianos, devido ao grau de profissionalismo envolvido na operação. As 13 balas disparadas contra o carro da vereadora saíram não de uma pistola, mas sim de uma submetralhadora HK MP5, de alta precisão e utilizada por forças de elite da polícia militar do Rio, como o Bope.
Siciliano foi um dos 10 vereadores ouvidos como testemunhas pela Delegacia de Homicídios da Polícia Civil. Na lista de escutados também estão Juninho da Lucinha (PMDB) e Zico Bacana (PHS), também suspeitos de envolvimento com a milícia. Porém, alguns fatos ocorridos após as mortes de Marielle e Anderson rondam o vereador Siciliano. Na noite do domingo de 3 de abril, dois dias depois de Siciliano ter prestado depoimento na polícia, seu colaborador parlamentar, Carlos Alexandre Pereira Maria, foi assassinado a tiros dentro do carro. O corpo de Alexandre Cabeça, como era conhecido, foi encontrado por volta das 22h dentro do veículo abandonado na estrada Curumau, em Jacarepaguá, zona oeste do Rio. Uma testemunha contou ao jornal Extra que, antes de dispararem contra Alexandre, os pistoleiros teriam dito que era preciso "calar a boca dele", um sinal de que o crime teria sido uma queima de arquivo — ou de assim fazer acreditar.
Dois dias depois, na terça-feira, o subtenente reformado da PM Anderson Claudio da Silva, suspeito de estar envolvido com milicianos, também foi morto a tiros. Ele estava saindo de casa, no Recreio, Zona Oeste do Rio, quando um carro impediu que o ex-policial saísse com sua BMW da garagem. Cinco homens começaram a atirar em Anderson, que chegou a reagir. Uma arma foi encontrada dentro de seu carro. A polícia, que chegou a prender um ex-PM ferido na perna perto do local do crime, também trabalha com a hipótese de queima de arquivo.
Há ainda algumas questões à respeito da acusação contra Siciliano que devem ser respondidas pela sigilosa investigação do caso. Além de seu depoimento, a testemunha também apresentou provas documentais, tais como fotos, mensagens ou gravações que mostram a ligação entre Siciliano e o ex-policial e miliciano Orlando? Siciliano se tornou para a Polícia Civil o principal suspeito de ter mandado executar a vereadora? Caso afirmativo, por que não foi decretada sua prisão preventiva? Ou o fato de não ter sido decretada mostra que o depoimento é inconclusivo? Os indícios que apontam para Siciliano indicam de fato que ele foi o mandante da execução, ou só servem para despistar os investigadores e a opinião pública sobre os reais autores? Afinal, quem matou e mandou matar Marielle e Anderson?
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Marcello Siciliano, de filantropo a vereador acusado de mandar matar Marielle Franco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU