15 Abril 2018
Com investigação sob sigilo, execuções completam um mês sem respostas; ativista e amigo de Marielle afirma que, apesar da tristeza e medo, palavra de ordem é resistir.
A reportagem é de Jeniffer Mendonça e Maria Teresa Cruz, publicada por Ponte, 14-04-2018.
Na noite do dia 14 de março, uma distância de mais de 1.600 quilômetros separavam o ativista social e midialivrista Raull Santiago, do Coletivo Papo Reto, da cidade dele, o Rio de Janeiro. Ele estava em Salvador participando do Fórum Social Mundial. Depois de participarem das atividades do dia, ele e outros amigos estavam no Rio Vermelho, perto do tradicional Acarajé da Dinha, quando a mensagem de um amigo apitou em seu celular: “Olha, parece que mataram uma vereadora do Psol amiga de vocês”.
Raull tremeu. Havia duas possibilidades: Talíria Petrone, vereadora em Niterói, e Marielle Franco, da capital fluminense. Em grupos de Whatsapp, Raull lançou a pergunta: “Pessoal, alguma informação da Marielle?”. E a confirmação chegaria como toda má notícia: depressa. “Esse mesmo amigo, que havia dado a primeira informação, disse que havia recebido a fotografia da identidade da pessoa alvejada e era a Mari”, lembra Raull.
A vereadora Marielle Franco (Psol) deixava a Casa das Pretas, na Lapa, no centro do Rio, depois de participar de um evento sobre empoderamento de mulheres e negritude quando foi alvejada, no Estácio, por disparos de 9mm. Ela estava no banco de trás do carro, formando uma diagonal com o motorista Anderson Gomes, que também foi atingido e morreu.
O clima na cidade do Rio depois desse trágico acontecimento oscila entre consternação e medo. “Teve gente que desacelerou, teve gente que ficou com medo. Eu fiquei muito triste, muito revoltado com tudo o que rolou e também muito preocupado com a realidade de como é fácil assassinar alguém que vem de onde a gente vem, que tem a cor da nossa pele, que tem o nosso endereço, que tem nosso histórico de luta pró direitos humanos”, desabafa Raull Santiago.
“Fiquei vários dias pensando em como a Mari enquanto parlamentar, com espaço público na política, foi assassinada de uma forma tão dolorosa, fiquei pensando no quanto é fácil é fazer uma violência nesse nível com cada um de nós”, afirmou. Para militantes dos direitos humanos, as execuções foram um recado evidente “para todo preto, pobre, mulher negra, periférica, favelada que chegam a espaços de poder, onde não somos aceitos, não somos bem vistos. A Mari chegou e conquistou esse espaço”.
Mas Raull destaca que, apesar de tudo, a palavra de ordem é resistir. “Tudo que aconteceu mostrou para mim que é preciso continuar, que a gente tem que ir pra cima, que a gente não pode deixar a morte da Mari ser apagada, as pautas que ela levava, a importância que ela tem para mulheres negras e periféricas, do quanto o caminho que ela trilhou a partir da luta e dos espaços que ela alcançou que me dão muita inspiração sobre a mulher foda que a Mari é. E por honra ao que ela fez, ao que ela era e aos significados que ela tem, o meu impulso é continuar lutando”, explica.
Quando questionado sobre quem poderia ter matado Marielle, Raull, assim como a maioria das pessoas que tiveram envolvimento com a vereadora, é cauteloso. “É muito difícil você apontar para qualquer direção em um caso tão bem organizado. Eu não acho que foi uma pessoa comum. Pelo contrário, foi alguém muito poderoso, que montou um plano, que teve uma estrategia construída passo a passo para a coisa acontecer da forma com que aconteceu, no lugar onde aconteceu. Eu acho que tem que haver uma cobrança. O Estado e a polícia tem que dar uma resposta de alguma forma, por mais que a gente desconfie dessa segurança pública, dessa polícia, a pressão popular tem que ser em cima disso: encontrar quem cometeu esse brutal assassinato, mas também e principalmente quem mandou”.
Raull alerta que, embora o crime contra Marielle tenha características específicas, é impossível não destacar que ele é parte de um contexto de militarização da segurança pública, que ganhou incremento com a intervenção federal e que sempre atingiu as favelas. “Poucos dias depois do assassinato da Mari e do Anderson dessa forma tão bizarra, terrível, houve uma grande operação na favela em que a polícia assassinou diferentes gerações. Em pouco mais de dez minutos, a policia assassinou o Benjamin, uma criança que ia fazer dois anos no Complexo do Alemão e dois senhores de idade, Seu José e Dona Maria. Em dez minutos diferentes gerações de favela, negros, periféricos, sangraram por arma de fogo em uma falsa ideia de guerra as drogas. A ancestralidade e a esperança sangrando lado a lado nesse cenário da intervenção federal”.
Raull também destaca a operação policial ocorrida no dia 24/3, que deixou 7 jovens assassinados. “E tivemos depois disso os 5 jovens de Maricá, todos de movimento social, do rap, assassinados com tiro na nuca”, conta. “Então é aquela frase típica, né? Nosso luto é um verbo, porque ele se repete e ao mesmo tempo que a gente vai sentindo dor, a gente tem que lutar”, explica Raull Santiago, do coletivo Papo Reto. Para ele, a intervenção é um absurdo e só serve para alimentar a narrativa do racismo e da ideia de que a vida de quem vive dentro da favela vale menos. “O cotidiano de militarização a que é submetida parte da população agora se veste nas palavras intervenção federal. Só mudou a farda, só federalizou o processo, mas continuamos sendo observados a partir de uma ótica racista e preconceituosa que nos vê como menos ou como violentos. Ou seja, quando falamos em segurança pública, não somos vistos como aquele ou aquela que precisa de segurança, mas como inimigos”, critica.
Sob sigilo, as investigações estão a cargo do Departamento de Homicídio (DH) da Polícia Civil do Rio de Janeiro e muito pouco se sabe sobre resultados práticos da investigação. Até o momento, não foram apresentados nem suspeitos de terem atirado nem os mandantes do crime. A novidade mais recente foi o fato de parte das digitais terem sido encontradas em cápsulas na cena do crime. Segundo informações do jornal O Globo, a Polícia Civil do Rio de Janeiro recebeu na quinta-feira (12/4) o laudo pericial de um projétil e, de acordo com um perito, o atirador seria canhoto por conta do ângulo dos disparos que foram feitos de baixo para cima. O alvo era Marielle, mas por causa do da direção dos tiros, feito na diagonal pela traseira do veículo que ela, a assessora e o motorista estavam, Anderson acabou atingido.
Foram realizados 13 disparos de pistola calibre 9mm. Dos quatro disparos que atingiram a vereadora, três foram na cabeça. A venda desse calibre passou a ser autorizada pelo Exército para uso de policiais fora de serviço em agosto do ano passado. Nove delas foram periciadas, sendo que oito faziam parte do lote UZZ-18, vendido pela CBC (Companhia Brasileira de Cartuchos) à Polícia Federal, em dezembro de 2006, e que foi desviado naquele ano. As munições também teriam sido usadas na maior chacina de São Paulo, em agosto de 2015, quando 17 pessoas foram assassinadas em Osasco e Barueri. Uma semana depois do ocorrido, a própria CBC doou munições e armas para a intervenção do Rio.
O ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, chegou a afirmar que o lote teria sido roubado na sede dos Correios na Paraíba e descartou a possibilidade de ter sido alguém das forças de segurança para atirar em Marielle. Mas, no dia seguinte, os Correios desmentiram o ministro e informaram que não havia registro de ocorrências do tipo e que a empresa “não aceita postagem de remessas contendo armas ou munição, exceto quando autorizado por legislação específica”. Em 19/3, Jungmann voltou atrás e afirmou que se referia a um roubo que aconteceu no ano passado, numa agência na Paraíba, e que “a PF encontrou cápsulas de munições diversas, dentre elas do lote ora investigado” na cena do crime.
Na última semana, duas mortes – a de Carlos Alexandre Pereira Maria, colaborador do vereador Marcello Siciliano (PHS-RJ), e do subtenente reformado da PM Anderson Claudio da Silva – imediatamente passaram a figurar como parte de possível ligação com o assassinato da vereadora, por serem suspeitos de envolvimento com milicianos. Nesse sentido, as mortes poderiam ter sido “queima de arquivo”. O envolvimento de milícias é ainda a principal linha de investigação da polícia por causa do trabalho de Marielle como assessora do deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) na CPI das Mílicias, em 2008. A Polícia Civil informou que vai comparar as digitais dos dois com aquelas detectadas nas cápsulas.
Carlos Alexandre, conhecido como Alexandre Cabeça, foi encontrado morto a tiros dentro de um carro, no último domingo (8/4), no bairro de Taquara, zona oeste do Rio, segundo informações do jornal Extra. De acordo com testemunhas ouvidas por policiais do 18º BPM, um dos atiradores teria dito à vítima, antes de efetuar os disparos, “Chega para lá que a gente tem que calar a boca dele”. A assessoria do vereador informou que Carlos era apenas um líder comunitário e colaborador que encaminhava demandas da população na região.
Dois dias depois (10/4), o corpo do subtenente Anderson Claudio da Silva também foi encontrado com marca de tiros num veículo na zona oeste do Rio, mas no Recreio dos Bandeirantes. Agentes do 31º BPM encontraram outro ex-policial na localidade que estava ferido e com uma pistola dentro do carro. David Soares Batista foi detido suspeito de participação no assassinato do PM. Ele nega.
O vereador Marcello Siciliano (PHS) foi ouvido na semana anterior pela Polícia Civil como testemunha. Ele é citado em um relatório feito pela Subsecretaria de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública sobre a influência de milicianos para conseguir votos nas eleições de 2014. Na época, ele era candidato a deputado estadual pelo PSDC e foi suplente.
Além dele, outros dois parlamentares ouvidos como testemunha pela Polícia Civil também são suspeitos de estarem relacionados com paramilitares: Juninho da Lucinha (PMDB) e Zico Bacana (PHS), este último indiciado na CPI das Milícias, em 2008.
A partir da análise de câmeras de segurança na casa legislativa, reportagem do The Intercept Brasil revelou que um ex-PM também indiciado na CPI visitou o gabinete de Zico Bacana acompanhado de dois homens poucas horas antes do assassinato da vereadora, no dia 14/3. O veículo já havia revelado antes que o ex-vereador Cristiano Girão, também indiciado na CPI, esteve na Câmara exatamente uma semana antes do crime, no dia 7/3, conforme registro interno da Casa.
Além dos três, outros sete vereadores deram depoimentos à Divisão de Homicídios como testemunhas: Jair da Mendes Gomes (PMN), Val da Ceasa (PEN), Tarcísio Motta (PSOL), Ítalo Siba (Avante), Babá (PSOL), Renato Cinco (PSOL), Leonel Brizola Neto (PSOL). A Polícia Civil investiga as movimentações na Câmara, o relacionamento com os parlamentares e de pessoas que possam ter desavenças com a vereadora. Além disso, a Justiça concedeu quebra de sigilo das ligações de parlamentares após a polícia identificar o número do celular do motorista do carro usado no crime, conforme noticiou o The Intercept Brasil.
No dia 1/4, uma reportagem publicada pelo jornal O Globo apontava que duas testemunhas do assassinato de Marielle e Anderson não foram ouvidas pela Delegacia de Homícidios e teriam sido ordenadas a voltarem para suas casas por policiais do 4º BPM.
Uma delas informou ao jornal que “o homem que deu os tiros estava sentado no banco de trás e era negro. Eu vi o braço dele quando apontou a arma, que parecia ter silenciador”. Ambas, que estariam a 15 metros do local do crime e que não se conheciam, informaram que não tinham visto um segundo carro no ataque, embora imagens de câmeras de segurança tenham flagrado um possível veículo, um Logan, que aparece circulando pelo quarteirão várias vezes. A Polícia também sustenta a participação de um segundo carro na emboscada, que teria auxiliado o Cobalt prata, onde estava o atirador, que tinha a placa clonada.
As testemunhas também apontam que os assassinos fugiram pela rua Joaquim Palhares. A Polícia sustenta que a rota de fuga, no entanto, foi pela Rua João Paulo I, onde o carro onde estava a vereadora foi encontrado.
Ao El País, o porta-voz da intervenção federal, coronel Roberto Itamar, informou que o procedimento é normal para evitar que o ambiente seja contaminado e que as testemunhas poderiam ser pessoas curiosas no local.
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Um mês e a pergunta continua: quem matou Marielle e Anderson? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU