13 Março 2018
“O pontificado de Francisco deve ser interpretado, porque ele esconde um mistério”, afirma Raniero La Valle, jornalista e já senador vitalício, na Itália, em conferência proferida na sede da Federação Italiana de Imprensa, no dia 2 de março de 2018, e publicada por Chiesa Di Tutii Chiesa Dei Poveri, 10-03-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, “da mesma forma que se falava de um "mistério Roncalli", "le mystère Roncalli", aludindo ao mistério do carisma do Papa, que tinha convocado o Concílio, também existe um segredo nesse pontificado que deve ser questionado, que deve ser revelado. E talvez dessa interpretação, mesmo depois que for concluído, dependerá o futuro da Igreja”.
Após cinco anos de papa Francisco, certamente é possível confirmar o que já aparecia no início de seu pontificado, que ele tinha vindo para reabrir a questão de Deus, diante de uma modernidade que a havia fechado. De fato, o ministério do papa Francisco é uma proclamação contínua do evangelho de Deus, um Deus inédito, um Deus que surpreende, um Deus não mais "tremendum", mas apenas "fascinans".
Mas, hoje, dizer isso não é mais suficiente. É preciso um tipo de "relectio do papa Francisco”, uma releitura que ultrapasse os dois estereótipos que costumam ser usados quando se fala dele: exaltação e denegação, apologética contra reprovação. Prefiro pensar que a abordagem correta seja de uma interpretação: o pontificado de Francisco deve ser interpretado, porque ele esconde um mistério.
Da mesma forma que se falava de um "mistério Roncalli", "le mystère Roncalli", aludindo ao mistério do carisma do Papa, que tinha convocado o Concílio, também existe um segredo nesse pontificado que deve ser questionado, que deve ser revelado. E talvez dessa interpretação, mesmo depois que for concluído, dependerá o futuro da Igreja.
Há uma interpretação generalizada desse pontificado que costuma considerá-lo um pontificado profético. Isso é certamente verdadeiro, e isso nem mesmo é desmentido pelo fato que sofra contestações, porque, aliás, é justamente característica da profecia ser combatida. Porém se fosse apenas profético, não haveria nada de realmente extraordinário, porque a história da Igreja, tanto no lado da sucessão apostólica como das tradições dos discípulos, é cheia de profetas, papas incluídos: basta pensar em Leão Magno, que com sua carta a Flaviano doa à Igreja a fé de Calcedônia, ou em Gregório Magno que, através da figura de São Bento, é o verdadeiro pai da Europa.
Mas eu penso que possa ser dada outra interpretação, não só como um papado profético, mas um pontificado messiânico.
Mesmo isso por si só seria extraordinário; porque messiânico nada mais é que outro nome para cristão, Cristo nada mais é que o grego de Messias, então "um papa messiânico" é o mesmo que dizer "um cristão no trono de Pedro", como se afirmava do Papa João; mas como nos esquecemos dessa identidade messiânica e o povo cristão ignora o grego, não é tão óbvio, e um pontificado messiânico realmente parece extraordinário.
Mas que tipo de messianismo é este? Na verdade nem todos os messianismos são bons, tanto que alguns mestres talmúdicos afirmaram: "Se este é o Messias, não quero vê-lo".
Existe um messianismo apocalíptico, como o de Qumran e do quarto livro de Esdras, que anuncia um novo mundo, mas através da catástrofe do mundo presente, e certamente não se trata disso, aliás, como explica o padre Antonio Spadaro em seu último livro, esse pontificado é um "desafio ao Apocalipse", e como nós dissemos na assembleia da Chiesa di tutti Chiesa dei poveri, no máximo uma força de frenagem, que resiste, que detém a catástrofe, como o katécon messiânico paulino.
Depois, há um messianismo utópico que espera a realização das promessas messiânicas na história, mas sofre a angústia de sua não realização, de sua demora; segundo o historiador e filósofo judeu Gershom Scholem, isso teria transformado a vida judaica em uma vida em condições de adiamento, uma vida vivida em diferimento, enquanto de acordo com muitos sábios do judaísmo, um ativismo messiânico que procurasse encurtar tal atraso, se resolveria em tragédia.
O messianismo do pontificado de Francisco não se assemelha a qualquer um desses modelos. Não o apocalíptico; no máximo, como afirma a estudiosa bíblica Rosanna Virgili, é escatológico, onde a escatologia anima uma espera em que se abre o espaço para o presente.
Mas o pontificado de Francisco não se assemelha nem mesmo ao messianismo que, todo voltado para o futuro, vive, como explica Scholem, "em uma situação de irrealidade"; o significado messiânico do pontificado de Francisco não está na lógica do diferimento. Sua verdadeira casa é ‘o hoje de Deus’, o hoje bíblico da escuta de sua voz, como afirma a Carta aos Hebreus (Hb. 3: 7), é um nunc, é o nun kairós paulino (Rom 3, 26; 8,18; 11,5), é o tempo investido pelo evento messiânico, é a irrupção do tempo de Deus no tempo histórico, no tempo do agora. Não é o tempo que virá, é o tempo que está chegando e é agora, Jesus diz à mulher samaritana. Está aqui, na história.
Mas é um presente, um hoje que não está fechado na conservação e na eterna repetição de si mesmo, não é "um tempo homogêneo e vazio", como afirma Walter Benjamin, mas é o tempo em que o novo acontece e a história avança. Mas não se trata de um crescimento contínuo, de um desenvolvimento constante e gradual do antigo ao moderno e ao pós-moderno, como pensa o progressismo; não, esse não é um papado ‘melhorista’ (corrente política italiana que defende a possibilidade de melhorias a partir de dentro, ndt). Na verdade, assume o tempo de agora, mas o assume no sentido da descontinuidade, uma descontinuidade que acontece no presente. Há uma mudança, pacífica, com certeza, mas verdadeira, é uma revolução.
Restam então identificar alguns momentos-chave, típicos dessa descontinuidade messiânica, dessa mudança epocal (porque, como costuma se dizer, esta não é uma época de mudanças, mas uma mudança de época). Eu apontaria três.
1) O primeiro é que está se fechando a idade do desperdício. Ou seja, encerra-se um ciclo completo da história do Ocidente, e não só do Ocidente, que se fundou e desenvolveu na ideia da desigualdade entre os homens. Se quisermos identificar simbolicamente um nome que melhor represente tal pensamento de desigualdade, que lhe deu autoridade e o tornou cultura generalizada, eu indicaria, e espero não escandalizar ninguém, o nome de Aristóteles. Ainda em 1500, na época da conquista das Américas, para mostrar que os índios não eram realmente homens e, portanto, que os espanhóis tinham o direito de escravizá-los, recorria-se à antropologia de Aristóteles, segundo a qual existem homens e coletividades que por não serem por limites inatos dotados de razão suficiente, são escravos por natureza, naturaliter servi. É a tese que também menciona Francisco de Vitoria em sua Relectio de Indis, para refutá-la: mas, entretanto, os índios tinham sido assujeitados como incapazes de serem livres e donos de si mesmos, e esse pensamento da desigualdade chegará até Hegel, Croce, de Gobineau e aos racismos do século XX europeu.
Mas para a teoria da inevitável diversidade de destino entre “sommersi e salvati” (referência ao livro de Primo Levi sobre os campos de concentração, ndt) suportes vieram também das culturas de castas do Oriente e, entre nós, das teologias da eleição, da predestinação, da natureza não curada pela graça, do “extra Ecclesiam nulla salus", que são as teologias de um privilégio.
O direito havia tentado afirmar que não existe e não pode existir uma humanidade de descarte, mas basta ver o que acontece no Mediterrâneo como os descartados que em nome do direito, em nome da lei pela qual os perseguidos pela fome, ao contrário dos perseguidos pelos senhores do poder e da guerra, não têm o direito de passar; para a Europa não têm o direito de existir.
A descontinuidade messiânica de papa Francisco está nisso, que hoje, e não amanhã, ninguém deve ser descartado, ninguém deve ser excluído, não existem tantas humanidades quantos são os Estados, as línguas, as religiões, há apenas uma e única humanidade, e é o próprio Deus que a atesta, porque se fez humanidade no Filho, revestiu-se de humanidade como de uma túnica que de forma alguma pode ser rasgada e dividida. É nessa imagem, nessa descontinuidade messiânica que reside o paradoxo de uma teologia missionária que rejeita o proselitismo, um papa que "está em Roma, mas sabe que os índios são seus membros", como já havia recordado o Concílio, citando São João Crisóstomo e, portanto, considera um absurdo anexá-los porque eles já estão na unidade de Deus.
2) O segundo ponto crucial desse messianismo é a saída da ideologia da retaliação. A retaliação é a justiça de peso igual, como a chamava Isaque de Nínive: você fez alguma coisa para mim, eu faço algo a você. É a lei de talião, olho por olho, dente por dente. É a balança da justiça que coloca em um prato o crime e no outro a vingança; uma vingança que, é claro, a civilização não permite mais que seja privada, mas deve ser pública, mas da qual os privados não desistem e continuam a reclamar, para sua satisfação, justamente do Estado. Quando dizem "queremos justiça", significa que querem vingança. Deus também está incluído nesse círculo infernal. Se não condena não é justo. Se for ressarcido, se for satisfeito, se lhe se oferece uma reparação, um sacrifício, então pode perdoar. Se quisermos identificar o nome que melhor representa tal pensamento, que lhe deu autoridade e o generalizou (e, mais uma vez, eu não quero escandalizar ninguém), eu escolheria o nome de Dante. O Ocidente não precisa do catecismo, basta a Divina Comédia.
O imaginário é aquele, inferno, purgatório e paraíso, retaliação e ranger de dentes.
O pontificado messiânico reside no fato que anuncia a misericórdia, como a totalidade de Deus. Não é a alquimia da retribuição, há um do ut des divino. A Divina Comédia acabou. Deus é o pai que não só te espera, mas reduz o tempo da espera, suprime o adiamento, chega antes, "primerea", como fala o Papa em seu neologismo argentino. E assim devem fazer os homens, de acordo com o Evangelho: setenta vezes sete, ou seja, sempre. Adiar isso para amanhã é o apocalipse, fazê-lo hoje é messianismo.
Existe uma infinidade de frases do papa Francisco, que poderiam ser citadas a este respeito. Vou mencionar apenas uma, dirigida em 4 de janeiro último a um grupo de garotos romenos abrigados em um orfanato. Um menino tinha lhe contado que a respeito de um colega, que tinha morrido no ano anterior, um padre ortodoxo (porque os romenos são ortodoxos) havia dito que havia morrido pecador e por isso não teria ido para o céu. E o papa respondeu: "Talvez aquele padre não soubesse o que estava dizendo, talvez naquele dia aquele padre não estava bem, tinha algo em seu coração que o fez responder assim. Vou te contar uma coisa que talvez te surpreenda: nem de Judas podemos dizer isso". E ele acrescentou: "Deus quer nos levar a todos para o paraíso, sem exceção. Deus não fica lá sentado, ele se movimenta, como nos mostra o evangelho, está sempre se mexendo para encontrar aquela ovelha, e mesmo que estejamos sujos de pecados, se fomos abandonados por tudo e pela vida, ele nos abraça e nos beija. Tenho certeza que é isso que o Senhor fez com o seu amigo".
A descontinuidade messiânica está entre o que aquele sacerdote tinha em seu coração, com base na teologia que lhe havia sido ensinada, e a boa notícia que Francisco deu para os garotos, e que está dando ao mundo, que o Senhor não deixa ninguém para trás. Se pensarmos na angústia de Lutero em relação à salvação, e às primeiras quatro teses de Wittenberg, segundo as quais toda a vida dos fiéis deve ser um santo arrependimento, vivido na mortificação da carne até a entrada no reino dos céus, vemos que a verdadeira Reforma é esta. A "sola misericórdia" é a verdadeira resposta para a "sola fide", a transcende; é por isso que, 500 anos depois, o ecumenismo agora pode acontecer.
3) A terceira descontinuidade messiânica é a proclamação de que Jesus realmente retorna, e retorna hoje. O coração do messianismo cristão está na confiança que o Senhor retorne. Os cristãos aguardam o retorno de Jesus. Mas ele não pode voltar se tudo já está escrito, se a revelação está fechada, e tudo que resta fazer é levar a bom termo o que a Tradição já nos entregou. Teve também o bom trabalho feito pela exegese, que para além do Cristo da fé encontrou o Jesus histórico, mas justamente por ser histórico aquele Jesus é definitivo. Se quisermos indicar o nome que melhor representa este pensamento do impossível retorno de Jesus, eu escolheria o nome do Grande Inquisidor de Dostoiévski, que fala a Jesus, retornado a Sevilha, para não vir perturbar o seu trabalho.
O messianismo desse pontificado está em mostrar que Jesus continua a falar, não só explicando melhor e fazendo-nos entender melhor o que já foi dito, mas justamente falando coisas nova, inéditas, que eram desconhecidas até para ele. O Papa sabe que no Evangelho nem tudo foi escrito, porque, aliás, como afirma João no final, se estivessem escritas todas as coisas realizadas por Jesus, "o próprio mundo não bastaria para conter os livros que seriam escritos"; e há coisas que Pedro não entendeu nem mesmo quando tinha Jesus aos seus pés lavando-os, e que só entenderá mais tarde, não amanhã, porque amanhã vai traí-lo, mas nos séculos vindouros; por exemplo, Pedro percebeu somente agora que a pena de morte não deve ficar no Catecismo, e disse aos seus para tirá-la, porque "é necessário... que a Igreja possa expressar a novidade do Evangelho de Cristo que, embora encerradas na Palavra de Deus, ainda não vieram à luz; esta Palavra não pode ser guardada na naftalina": Jesus de Nazaré caminha conosco, o Espírito Santo não pode ser amarrado e Deus não cessa de falar com a Igreja (discurso de 11 de outubro de 2017).
Isso fala o Papa: a revelação não está fechada, e a melhor notícia é aquela que hoje ainda não é notícia, não pode ser dita, não pode estar nos telejornais, porque é uma notícia que ainda não existe. E então Jesus pode retornar. Mas não para ser dispensado novamente com um beijo, como o do exangue Grande Inquisidor, mas para ser acolhido e poder falar e ser ouvido, claro, através das vozes dos anjos que o aclamam, mas também através das vozes da vasta multidão de homens, de mulheres, dos pobres que ele ama e que são, depois dele, os segundos filhos de Deus na terra; de nós que somos os segundos filhos do Pai.
Suas vozes, nossas vozes. Nas palavras do Papa João na noite de abertura do Concílio, na janela diante da Praça de São Pedro, na noite iluminada pelas tochas: "Ouço vossas vozes", escuto as vossas vozes ....
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Um papado messiânico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU