08 Março 2018
“Outro Fórum Social Mundial é possível e necessário: este só garante o eventismo, a imposição de organizadores de uma franquia que segue as agendas das ONGs europeias e estadunidenses, a fragmentação, o abandono da batalha das ideias, o desprezo e utilização das organizações sociais e da possibilidade de buscar e debater, juntos, espaços e formas de seguir a luta em circunstâncias muito difíceis, muito mais difíceis que há 17 anos”, escreve Aram Aharonian, jornalista, comunicador, codiretor do Observatório Latino-Americano de Comunicação e Democracia e presidente da Fundação para a Integração Latino-Americana (FILA), em artigo publicado por ALAI, 06-03-2018. A tradução é do Cepat.
Outro mundo é possível: esse foi o gatilho que apaixonou aqueles que lutavam contra a injustiça e a destruição do planeta, e o Fórum Social Mundial passou a ser, a partir de 2001 e por vários anos, um ponto de encontro dos movimentos sociais contrários à globalização neoliberal e se constituiu em voz alternativa às diretrizes do Fórum Econômico Mundial de Davos.
Para influenciar nesses valores comuns, para mudar o imaginário coletivo sobre a realidade, sempre se necessitou de organização e clareza nas metas. Mas, enquanto se recitava horizontalidade e transparência, sempre existiu a tentação de que se convertesse em uma franquia, aplicada por todo o mundo (e não apenas pelo mundo em desenvolvimento), sem metas comuns claras que superassem a tentação do 'eventismo'.
Dentro do progressismo, há companheiros que resistem às críticas sobre a realidade do FSM, talvez porque genuinamente defendem algo que é próprio de sua história e a crítica lhes parece inconveniente para este momento de tantas fragilidades. Há alguns que destacam que a autocrítica permanente nem sempre é frutífera (que é o mesmo que dizer sim, às vezes, é).
Muitos assumiram posturas próximas à máxima que diz que “em uma fortaleza sitiada, a crítica é traição” (a única coisa fora de debate são os princípios), outros temem perder seus patrocinadores. O que deveria sair de um debate é a definição de qual é a estratégia a seguir: continuar dentro do FSM para introduzir estes debates tão necessários, construir outra ferramenta e, nos dois casos, com quem. E, além disso, vivemos em plena ofensiva neocolonial.
De várias regiões, denuncia-se que o comitê brasileiro nunca quis deixar o poder em um modelo anárquico abstrato, baseado talvez na visão das comunidades de base católicas brasileiras, sem nenhuma relação com a realidade. E o Comitê Internacional, de personalidades, seguiu dirigido por pequenos grupos e figuras que, além do altermundialismo, representam ONGs (algumas remuneradas), cada uma delas com linhas e propósitos tão concretos como próprios, e muitas vezes apenas a si mesmas.
Após 17 anos, seria o momento de rever a carta de princípios, adaptá-la ao mundo de hoje, com uma listagem de temas acordados e sobre os quais, seguramente, todos ratifiquem, como a mudança climática, as guerras, as armas, a finança especulativa, as migrações. E é o momento do FSM voltar a ser um ator que incida no mundo.
Ou existe alguém que seja contra uma declaração unívoca contra as guerras, contra a destruição do planeta e contra a enorme desigualdade, pela qual oito pessoas possuem a mesma riqueza que 2,3 bilhões de pessoas?
Não parece normal que este FSM de Salvador não tenha o tema da mudança climática como um eixo importante, profundamente sentido pela sociedade civil. Parece que os temas vêm canalizados por ONGs europeias e estadunidenses, interessadas em temáticas que não são urgentes para nossas sociedades, mas que contam com financiamento para sua organização.
Acima, na estrutura do FSM, está a figura do arquiteto brasileiro Francisco ‘Chico’ Whitaker, escasso de horizontalidade desde que recebeu o Prêmio Nobel alternativo, quando o Fórum era um ponto de referência para aqueles que queriam mudar o mundo, com os poucos intelectuais de peso que fizeram o debate sobre a necessidade de outro mundo possível, necessário, imprescindível.
O verso da horizontalidade se contradiz permanentemente com o autoritarismo e a manipulação, a partir das estruturas de poder (do FSM), mais entusiasmadas em organizar eventos (tudo é eventual, não há continuidade e nem acompanhamento dos temas e debates) entre convencidos, do que em lutar pelo pensamento crítico anticapitalista.
Quando os movimentos políticos começaram a se aproximar do Fórum, foi feito tudo o que era possível para distanciá-los, com a desculpa de evitar a contaminação. E nossos presidentes progressistas não foram bem-vindos. Nem sequer se aproveitou suas experiências, suas dúvidas, suas propostas, para debatê-las. E mais, o grupo brasileiro impediu que o Comitê Internacional emitisse um comunicado contra o julgamento político da presidente Dilma Rousseff, que desembocou no golpe de Estado judicial-midiático-policial-empresarial. Também não se defende a democracia?
Nos primeiros fóruns, por exemplo, o painel que que foi organizado sobre a Utopia, com José Saramago, Eduardo Galeano, Federico Mayor e 60.000 participantes, demonstrou a necessidade do debate, da batalha de ideias, na guerra cultural contra o capitalismo e as forças neocoloniais. Já não estão Saramago e nem Galeano. Foram sem que fosse possível lhes aproveitar: não houve nem sequer um resumo do debate para socializá-lo. Não havia interesse?
É preciso compreender que horizontalidade e organização não são dois valores opostos. Os organizadores do FSM emitem um documento que defende que há centenas de painéis, e destacam que buscar integrá-los vai contra da horizontalidade. Sem dúvidas, todos estes painéis são uma prova da riqueza do debate, e também uma fragmentação: cada um sabe de seu painel, mas não o que se debate em outros painéis sobre o mesmo tema... e menos ainda sobre outros temas.
Hoje, as personalidades que deram vida e prestígio ao FSM concordam que o mesmo está em uma profunda crise, como apontam os números e a falta de repercussão e entusiasmo, e insistem na necessidade de abrir passagem a uma horizontalidade sempre inclusiva e transparente, mas aceitando que é necessário um mínimo de organização e estruturação.
O verso da horizontalidade se choca com a necessidade de informação e também de comunicação (e também foi assim no Comitê Internacional que acreditou que isso era tarefa de jornalistas). Desde o início do processo, insistiu-se (a partir dos meios de comunicação alternativos) na necessidade de que fossem criados instrumentos para compartilhar com os que não vinham, porque compartilhar é uma responsabilidade coletiva e individual dos que querem e lutam por um mundo diferente.
E o FSM foi ficando com iniciativas endogâmicas: de cada Fórum não saiu nada das experiências para o restante do mundo. Seria simples combinar regras que sejam respeitadas pelos organizadores de painéis: nomear um relator, que ao final do painel entregue um resumo do debate e de suas conclusões, para que possa ser compartilhado. Hoje, os meios eletrônicos tornam possível o que, há 17 anos, era impensável.
Seria útil que aqueles que não estão (no painel) possam refletir e compartilhar, o que não tem nada a ver com a tão mencionada horizontalidade, mas, sim, com a inescapável necessidade de coordenar as lutas. O desenho do FSM é facilitador da fragmentação, de que cada painel acredite que o mais importante é sua luta e não a que deu origem ao mesmo: a necessidade de inventar um mundo diferente, justo, equitativo, de paz, de respeito à natureza.
O desenho é para que cada grupo coordene consigo mesmo, prejudicial à própria filosofia do FSM. Como dizia Galeano, nos anos 1970, enquanto alguns fazem a revolução, Brigitte Bardot luta em defesa das baleias azuis...
Em mais de quinze anos, o FSM correu riscos como a rotinização, a proeminência das ONGs, a cooptação, a burocratização, a falta de participação de movimentos reais, a dispersão, a infiltração, o exclusivismo. E esta realidade o confirma. Em meio à crise sistêmica do capitalismo, com uma crise climática, política, social, migratória, alimentar sem precedentes, segue-se apostando na tão mencionada horizontalidade, que só beneficia o pensamento único e o imobilismo.
Estamos à porta do efeito das novas tecnologias na (sobre) vida dos trabalhadores e na economia, assim como as notícias falsas (fake news), a pós-verdade e a inteligência artificial, o que torna necessária uma nova agenda, mas dirigida a partir do sul. Nem se falava de tudo isto em 2001, em Porto Alegre... Seis anos após o início, em 2007, em Belém do Pará, viu-se a primeira mostra coletiva de rejeição à crise do capitalismo e a necessidade de uma ruptura com o mesmo.
Hoje, portas adentro, cresce o debate entre movimentistas “puros” (alguns, hoje, aliados à social-democracia europeia e à Igreja católica) e militantes sociais e políticos sobre o futuro do FSM, sobre a relação entre partidos políticos anticapitalistas e movimentos, sobre os vínculos com governos progressistas da região.
Obviamente, o FSM perdeu peso e influência, talvez porque aqueles movimentos sociais que levaram nossos presidentes reformistas ao governo desapareceram das ruas, porque eles também foram cooptados (e burocratizados) para tarefas do governo e os movimentos desmobilizados.
Hoje, muitos outrora altermundialistas buscam fóruns sobre temas que são de interesse das ONGs europeias e estadunidenses e fogem de temas urgentes para o futuro de sua própria gente, talvez para não perder a ginástica forista. O que vimos há pouco, na reunião da OMC em Buenos Aires, onde invisibilizaram a luta contra o TLC entre o Mercosul e a União Europeia, entre outros temas.
Outro Fórum Social Mundial é possível e necessário: este só garante o eventismo, a imposição de organizadores de uma franquia que segue as agendas das ONGs europeias e estadunidenses, a fragmentação, o abandono da batalha das ideias, o desprezo e utilização das organizações sociais e da possibilidade de buscar e debater, juntos, espaços e formas de seguir a luta em circunstâncias muito difíceis, muito mais difíceis que há 17 anos.
Não se trata de destruir nada, mas, sim, de transformá-lo para que novamente entusiasme os lutadores sociais, para que acabe o imobilismo. O desafio é saber por onde caminhar, com quem caminhar. Não suportamos a verdade única: o debate sempre é enriquecedor, para todos. Hoje, não há caminho, mas dizia Antonio Machado (que nada sabia de fóruns, mas, sim, de luta): “Caminhante, são tuas pegadas o caminho, e nada mais/ Caminhante, não há caminho, se faz caminho ao andar”.
(Foto: Carminda Max Lorin/FSM)
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Outro FSM é possível, necessário - Instituto Humanitas Unisinos - IHU