06 Março 2018
No momento em que Dom Charles Scicluna, de Malta, retorna de sua investigação in loco do suposto acobertamento de abuso sexual que teria sido feito pelo bispo da diocese chilena de Osorno, Dom Juan Barros, alguns católicos americanos compararam este mais recente capítulo dos escândalos de abuso sexual clerical a um transtorno de estresse pós-traumático.
A reportagem é de Christopher White, publicada por Crux, 02-03-2018. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Depois da cobertura devastadora feita pela equipe do jornal The Boston Globe em “Spotlight” no ano de 2002, que desvendou anos de abuso sexual e acobertamento, os bispos católicos dos EUA adotaram a Carta para a Proteção das Crianças e Jovens em junho daquele ano para padronizar a conduta de relatar às autoridades e responder as acusações de abuso sexual dentro da Igreja no país.
Desde então, a política de tolerância zero da Igreja americana junto a abusadores sexuais passou a ser considerada por muitos como o padrão para outros países usarem em seus próprios programas. Dadas as polêmicas recentes do caso Barros, no entanto, muitos católicos se perguntam como uma situação parecida seria tratada nos EUA, hoje, tanto dentro da Igreja quanto fora dela.
Em essência, a resposta parece ser a de que, falando estritamente em termos de procedimentos eclesiásticos internos, não sabemos se haveria um contraste maior entre os EUA e outros lugares num caso em que a acusação contra um bispo não é o abuso em si, mas o acobertamento.
Entretanto, diferenças fundamentais entre os EUA e grande parte do mundo em termos jurídicos, políticos e das pressões da imprensa sugerem que algo como a saga de Barros seria tratado, não obstante, de forma diferente.
Em 2011, o Pe. Fernando Karadima, que conduzia uma famosa paróquia chilena, foi considerado culpado de abusar sexualmente menores e sentenciado a uma vida de oração e penitência. Um dos padres próximos a Karadima era Barros, que já era bispo havia mais de 20 anos. Quando Francisco nomeou Barros para ser o bispo da Diocese de Osorno em 2015, ocorreram protestos em toda a diocese e no país, destacando as acusações de que Barros tinha ciência do histórico abusivo de Karadima e que ajudou a acobertá-lo.
Barros nega as acusações e até mesmo apresentou um pedido de renúncia a Francisco. Francisco não só rejeitou a renúncia, mas, quando estive no Chile em janeiro deste ano, reforçou a sua defesa de Barros, dizendo que ele, o papa, nunca teve em mãos evidências por parte dos acusadores.
Quando surgiu a notícia no mês passado de que uma carta de oito páginas escrita por uma das vítimas detalhando o envolvimento de Barros havia sido entregue a Francisco em 2015 pelo Cardeal Sean O’Malley, presidente da Comissão para a Tutela dos Menores, desencadearam-se novas acusações de que o papa estava lidando equivocadamente com o caso e que as reformas vaticanas na área dos abusos sexuais foram, efetivamente, nulas.
Segundo Martin Nussbaum, advogado que representou várias dioceses americanas em casos de abuso sexual e que foi consultor para a Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos – USCCB, o direito civil americano e a acusação fundada nos ilícitos é um sistema que ajuda na responsabilização da Igreja, mas também às vezes pode estar sujeito a um uso abusivo.
“Uma das políticas públicas de sustentação do direito civil é que ele incentiva o bom comportamento (por exemplo, para que as pessoas não ataquem umas às outras), contou ao Crux Nussbaum. “O nosso direito civil incentiva a todos, em particular os que trabalham com crianças, a certificarem-se de que as crianças estejam seguras”.
“O resultado é que a nossa legislação possui um efeito que ensina que se você não fizer a coisa certa, irá se ver numa descoberta embaraçosa, num escândalo exibido na imprensa e pagando indenizações”, aconselha Nussbaum.
Em sua experiência, no entanto, Nussbaum fala que, junto com o incentivo à boa conduta por parte do direito civil, ele crê que a boa vontade é igualmente importante.
O entrevistado contou ao Crux que já trabalhou com dezenas de bispos e que foi a sua determinação obstinada depois das revelações de abuso no final dos anos 80 na sequência do caso do padre abusador em série Gilbert Gauthe o que levou a maioria dos bispos a começar a implementar as políticas de tolerância zero dentro das dioceses, levando à codificação em 2012 da Carta da USCCB.
“O que os bispos aprenderam foi esquecer a ideia de que os profissionais de saúde mental podem corrigir efebófilos e pedófilos”, disse Nussbaum. “A tolerância zero foi a coisa mais eficaz que a Igreja fez”.
No entanto, o entrevistado também advertiu contra o que descreve como um “grande negócio”, onde se faz um uso abusivo do sistema em nome busca de indenizações.
“Há escritórios de advocacia de beira de esquina que se especializam em processos de abuso sexual e quase todos começam com acusações de abuso sexual católico”, explicou Nussbaum. “Enriqueceram muito fazendo isso”.
Mario Paredes, que já assessorou o Vaticano e os bispos dos EUA sobre temas latino-americanos durante décadas, sendo ele próprio natural do Chile, contou ao Crux que a situação jurídica dos EUA muito frequentemente influi na maneira como casos de abuso sexual são tratados e que o sistema chileno é qualitativamente diferente.
“O sistema jurídico chileno se baseia muito no sistema jurídico francês, e portanto é bem diferente dos sistemas inglês e americano”, disse Paredes. “Isso quer dizer: não são as instituições, mas os indivíduos que provavelmente terão de enfrentar as consequências”.
Observou a ironia de que, no Chile, “o padre Karadima, que desencadeou todo este debate, foi absolvido pelo sistema chileno, mas acabou condenado pelo Vaticano”.
Paredes atribuiu o clamor público contra o abuso sexual no Chile não à ameaça da pressão jurídica, mas a uma desconfiança crescente entre o povo da Igreja institucional.
“No Chile, o que aconteceu é que as instituições da Igreja – a conferência episcopal e os bispos diocesanos locais – não prestaram atenção como deveriam”, completou Paredes. “O público começou a perceber que a Igreja estava acobertando, de uma maneira muito abusiva, e foi isso o que, de fato, fez explodir a fúria do povo”.
Nos EUA, padre algum que cometeu abuso sexual de menores pode exercer o ministério público, segundo as normas da Igreja Católica. Em quase 30 estados, os padres também são chamados no direito civil de “relatores compulsórios”, que quer dizer que eles têm o dever de informar os casos de abuso sexual.
Se um caso do tipo Barros ocorresse na Igreja americana, hoje, pós-2002, algum padre estaria na obrigação de informar as acusações de abuso às autoridades tanto civis quanto eclesiásticas. Isso aconteceria na maioria dos estados.
No entanto, de acordo com a Irmã Sharon Euart, ex-coordenadora da Canon Law Society of America, o recurso legal por si só não basta.
“Após as acusações de abuso terem sido feitas à autoridade eclesiástica, a Igreja tem a responsabilidade de responder imediatamente com a preocupação pastoral junto ao acusado, oferecendo uma resposta compassiva de dignidade e respeito”, contou ela ao Crux.
Após a eleição do papa em 2013, uma reforma vaticana na questão dos abusos sexuais foi considerada, por muitos, como estando na lista das obrigações essenciais de Francisco, caso se deseje ter sucesso no objetivo de reformar a Cúria Romana.
Em junho de 2016, Francisco emitiu um motu proprio, documento legal emitido sob a autoridade pessoal do papa, intitulado “Como uma mãe amorosa”, onde delineou a resposta do Direito Canônico para casos de abuso sexual envolvendo bispos.
De acordo com o motu proprio, um bispo pode ser destituído do cargo “se, através de negligência, cometeu ou, através de omissão, facilitou atos que causaram grave prejuízo físico a outros, seja a pessoas físicas ou à comunidade como um todo. O prejuízo pode ser físico, moral, espiritual ou por meio do uso do patrimônio”.
Numa situação onde um bispo é acusado de acobertamento, como no caso de Barros, o motu proprio de 2016 também diz que ao bispo deve ser dada a chance de se defender das acusações. Se o bispo for considerado inocente das acusações feitas contra ele, também se exige que esforços sejam feitos para lhe restaurar a reputação.
No entanto, alguns sustentam que o paralelo mais próximo ao caso de Barros nos EUA ilumina um sistema que precisa melhorar si próprio ainda.
Em junho de 2015, Dom John Nienstedt e seu bispo adjunto, Dom Lee Anthony Piche, renunciaram aos cargos que ocupavam em meio a acusações criminais contra a Arquidiocese de Saint Paul e Minneapolis por não relatarem às autoridades casos de abuso sexual.
As suas renúncias foram feitas sob o Código de Direito Canônico que permite que os bispos renunciem antes de se aposentarem, seja por doença ou algum outro “motivo grave” que os incapacita para o ofício.
Segundo peças jurídicas da queixa contra a arquidiocese, Nienstedt esteve bem-informado das acusações de abuso dentro de sua diocese – assim como o seu antecessor Dom Harry Joseph Flynn, a quem Nienstedt sucedeu em 2008. Visto que Nienstedt fora nomeado coadjutor para Flynn antes de sucedê-lo, os paralelos com Barros existem sim.
Apesar das acusações documentadas contra Wehmeyer, Nienstedt promoveu-o para supervisionar a fusão de duas paróquias dentro da diocese. De acordo com algumas peças jurídicas, quando foi informado da promoção, Wehmeyer perguntou a Nienstedt:
“O senhor está ciente do meu passado? Tem ciência do meu histórico?” Nienstedt teria respondido: “Eu não tenho que olhar para essas coisas”.
Os documentos judiciais, no entanto, revelaram que Nienstedt havia sido advertido dos antecedentes de Wehmeyer antes de promovê-lo.
Wehmeyer acabou excomungado e, desde então, se declara culpado de três acusações de abuso infantil e de acusações múltiplas relacionadas à posse de pornografia infantil.
As acusações contra Wehmeyer e o acobertamento por parte de Nienstedt e da Arquidiocese de Saint Paul e Minneapolis vieram à luz, em grande parte, devido a uma investigação de longo prazo feita pela Rádio Pública de Minnesota e pelo depoimento de Jennifer Haselberger, que trabalhou como chanceler para assuntos canônicos para a diocese.
Depois das múltiplas tentativas de Haselberger para fazer com que as autoridades arquidiocesanas confrontassem as décadas de acobertamento de abuso sexual e de advertir contra a promoção de Wehmeyer, vendo os seus esforços serem ignorados, ela renunciou e passou a ser uma denunciante no caso.
Apesar de o motu proprio receber elogios por estabelecer diretrizes gerais para a destituição de bispos, pessoas como Haselberger disseram que o documento não basta e que concede muita leniência aos bispos.
Ela aponta para o caso de Nienstedt como um exemplo de que a renúncia não necessariamente gera punição.
“Quais foram as consequências? A renúncia ele apresentou. Além da humilhação de apresentar esta renúncia, não vemos outras penalidades”, contou ela ao Crux. “Ele ainda participa de reuniões, desempenha suas tarefas de padre”.
“Este caso deveria ser um catalisador para um movimento do tipo ‘Eu Também’ dentro da Igreja”, disse, em referência ao movimento cultural desencadeado em 2017 para promover o abuso sexual generalizado que ocorre na indústria do entretenimento, na imprensa, nos negócios e em outros importantes empreendimentos.
Em Boston, em Minnesota e alhures, os meios de comunicação seculares desempenharam um papel fundamental na responsabilização da Igreja – em particular, através de um jornalismo investigativo de longo prazo. Esta forma de responsabilização levou a mudanças que muitos analistas dizem ter beneficiado a Igreja nos EUA e além.
De acordo com Helen Osman, ex-secretária de comunicações da USCCB e atual presidente da SIGNIS, a Associação Católica Mundial para a Comunicação, “quando investem em reportagens de qualidade, profissionais e investigativas – o que custa dinheiro e leva tempo –, os meios de comunicação são capazes de encorajar as lideranças para que sejam transparentes e honestos sobre as falhas e as fraquezas de suas instituições e departamento pessoal”.
Osman disse ao Crux que a decisão de ratificar a Carta de 2002 foi extremamente incomum, pois era um acordo para responsabilizar uns aos outros enquanto bispos.
“Não tenho certeza de que alguma outra conferência episcopal já fez isso antes”, disse, “e aquilo só aconteceu por causa do escrutínio intenso da imprensa, que ocorreu porque os meios de comunicação finalmente começaram a ouvir as vítimas e seus advogados, na tentativa de verificar as suas histórias, etc.”
Osman também disse que mais de quinze anos depois, a Igreja ainda está descobrindo as ramificações da Carta. Falou que vários bispos expressavam surpresa depois do encontro de Dallas, em 2002, onde a Carta fora aprovada, mas “a realidade em geral é que esse é o único modo como as instituições e sociedades vivenciam importantes mudanças”.
Susan Gibbs, ex-diretora de comunicação para a Arquidiocese de Washington, ecoou estes sentimentos de Osman e disse ao Crux: “A Igreja tem feito grandes avanços no sentido da prevenção e resposta ao abuso infantil. No entanto, toda organização – religiosa, atlética ou escolar – precisa se manter vigilante e não se tornar complacente”.
“Situações do alto escalão em torno de como lidar com as acusações de abuso podem servir como recordações para que estejamos vigilantes e sejamos catalisadores da mudança”, acrescentou.
Dom Chris Coyne, da Diocese de Burlington, Vermont, que, ainda quando era padre somente, trabalhou de porta-voz para a Arquidiocese de Boston no rescaldo das revelações de abuso devastadoras que aí se seguiu, contou ao Crux que as acusações de abuso em outros lugares do mundo possuem um efeito cascata e que a imprensa desempenha um papel importante no processo.
“Por causa da realidade das notícias na era digital, se algo acontece no Chile e há um acobertamento, ela redunda em um acobertamento para nós”, disse Coyne, que também trabalha como presidente da Comissão para as Comunicações da USCCB.
“Como bispos, estamos todos cientes da importância que a comunicação tem nisso tudo. Os bispos estão cientes disso, a conferência está ciente disso, mas se algo acontece noutro lugar, ainda sim irão apontar o dedo para nós”.
Esta responsabilização – através de uma combinação do direito, do escrutínio da imprensa e de reformas internas – leva Coyne a acreditar que a Igreja americana tem dado passos sólidos para garantir que os padres que estiveram próximos de abusar sexualmente não sejam nomeados ao episcopado.
“Como tem sido há mais de uma geração desde 2002, e a maioria dos casos de abuso aconteceram no final dos anos 80 e 90, estamos falando de algo em torno de 30, 35 anos desde o ápice do pecado dos abusos”, falou Coyne.
“Essa mudança geracional é tão grande que não encontraremos muitas pessoas sendo apresentadas como possíveis bispos e que foram padres naquela época. Os padres considerados como possíveis bispos hoje têm cerca de 25, 30 anos de ordenação”, segundo Coyne em entrevista ao Crux.
“Dada a nossa história, seria raro demais encontrar bispos numa região, mesmo alguém que tenha uma pequena suspeita de acobertamento ou conhecimento de abusos, cujo nome seja recomendado para uma terna”, acrescentou o religioso.
Terna é a lista de candidatos potenciais a serem nomeados a bispo; ela é apresentada ao núncio apostólico e, então, enviada ao papa para a sua consideração. No caso de Barros, não se sabe se o seu nome esteve listado numa terna ou se a sua nomeação veio por recomendações externas dadas por pessoas próximas as Francisco.
“Não lidaremos com isso aqui nos Estados Unidos, a menos que alguém verdadeiramente cometa um engano”, disse Coyne.
Mesmo assim, apesar da promessa de responsabilização, transparência e reforma, a sombra do caso de Barros se faz presente não só no Chile, mas nos EUA e em toda a Igreja no mundo.
No momento em que Francisco se aproxima do seu 5º aniversário, Paredes diz ao Crux que, até ser adequadamente resolvida a questão dos abusos sexuais, este problema irá tirar a atenção de todo e qualquer movimento deste papado.
“Está bastante óbvio que esse assunto continuará dominando o debate até o momento em que o Vaticano realmente traçar um limite bem claro no caso do Chile”, disse Paredes. “Com as lições do Chile, posso sonhar e pensar que medidas muito mais drásticas serão tomadas”.
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Direito, política e a imprensa fazem escândalos sexuais serem diferentes nos EUA - Instituto Humanitas Unisinos - IHU