Por: João Vitor Santos | 02 Dezembro 2017
O doutor em Educação Roberto Rafael Dias da Silva acredita que um currículo escolar concebido a partir do sentido pleno do conceito de democracia pode catapultar indivíduos através de uma educação libertadora. Entretanto, lamenta que a proposta da Base Nacional Comum Curricular - BNCC em discussão é o oposto. “Dificilmente a BNCC não se configurará como um instrumento de centralização e de tentativa de homogeneização das práticas pedagógicas desenvolvidas em nosso país”, pontua. Isso porque a Base “pode ser posicionada na justaposição entre financeirização da vida e a primazia de saberes utilitaristas”, que tem como conceito orientador a noção de competência. “O processo de construção da Base negligencia um debate acerca dos propósitos ou finalidades públicas da escolarização. No mesmo espírito das políticas contemporâneas, a proposta curricular analisada deixa de lado uma reflexão acerca do ‘como’ e do ‘porquê’ da educação”, critica.
Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Silva ainda explica que esse negligenciamento não é gratuito. “Dizem os especialistas na questão que, a partir da predominância de uma lógica econômica, explicita-se a emergência de uma ‘nova ordem moral’ para orientar as instituições educativas”, explica. Assim, a escola se transforma numa empresa, o aprendizado vira índice e o aluno é forjado numa lógica de empreendedorismo de si, primando pela eficiência. Mas como fugir a essa lógica? “Seria possível, em linhas gerais, através de movimentos de diversificação curricular, com uma ênfase na noção de qualidade social e com uma aposta em modelos cooperativos”, responde. E ainda sugere, em tom de desafio: “a longo prazo, inspirando-me em Hardt e Negri, talvez seja possível reinscrever o conhecimento escolar no território do comum”.
Roberto da Silva | Foto: Arquivo pessoal
Roberto Rafael Dias da Silva é doutor em Educação, professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unisinos, no qual atua na linha de pesquisa Formação de professores, currículo e práticas pedagógicas. Recentemente, publicou os seguintes textos: Curricular policies for Secondary Education in Latin America: Between capacities and opportunities (revista European Journal of Curriculum Studies), Currículo e conhecimento escolar na sociedade das capacitações: o Ensino Médio em perspectiva (revista E-Curriculum) e Investir, inovar e empreender: uma nova gramática curricular para o Ensino Médio brasileiro? (revista Currículo sem Fronteiras).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais os avanços e limites da proposta de Base Nacional Comum Curricular - BNCC?
A BNCC pode ser posicionada na justaposição entre financeirização da vida e a primazia de saberes utilitaristas
Roberto Rafael Dias da Silva – A defesa de um currículo nacional em nosso país não se configura como uma novidade. Ao longo das últimas décadas foram recorrentes as preocupações em torno das definições de conhecimentos, habilidades, valores e, mais recentemente, competências que fossem posicionadas como indispensáveis para a formação dos cidadãos brasileiros. Via de regra, os pesquisadores do campo do currículo olham com cautela para este tipo de iniciativa, visto que facilmente declinam para tentativas de padronização dos processos formativos, de regulação do trabalho docente e de utilitarismo nos critérios de seleção dos conhecimentos. Todavia, um debate em torno dos conhecimentos a serem ensinados é “incontornável”, como tem assinalado a professora Carmen Teresa Gabriel [1].
Antonio Flávio Moreira [2], importante pesquisador brasileiro, defende que poderíamos retomar os debates acerca das políticas curriculares nacionais. Todavia, reitera que sua defesa abrange não meramente um currículo nacional, “mas uma política curricular nacional, centrada em princípios que possam nortear políticas em nível estadual ou municipal, assim como os planos curriculares das instituições escolares” [3]. Interessa ao pesquisador um conceito de qualidade negociada que ultrapasse os limites de um currículo padronizado.
Porém, tal como percebemos a concepção e os primeiros sinais da implementação da Base Nacional Comum Curricular, parece estar vinculada a modos de gerenciamento do desenvolvimento curricular. Como explicita-nos um texto-manifesto publicado pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação - Anped, o Ministério da Educação, nas variadas fases de elaboração da Base, foi “cedendo voz ao projeto unificador e mercadológico na direção que apontam as tendências internacionais de uniformização/centralização curricular + testagens larga escala + responsabilização de professores e gestores traduzidos na BNCC e suas complementares e hierarquizantes avaliações padronizadas externas”.
IHU On-Line – Como avalia todo o processo de construção da BNCC?
Estamos diante do ressurgimento do conceito de “competência” que parecia estar esmaecido na literatura curricular brasileira
Roberto Rafael Dias da Silva – Quando lemos a página destinada à BNCC, no site do Ministério da Educação [4], deparamo-nos com uma definição bastante elucidativa que nos permite ampliar o escopo desta problematização que estou propondo. Define-se no documento que “a Base Nacional Comum Curricular é um documento de caráter normativo que define o caráter orgânico e progressivo das aprendizagens essenciais que os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica”. A base, sob este entendimento, orientará as propostas pedagógicas destinadas à Educação Básica, nas redes públicas e nas redes privadas, definindo os conhecimentos, as competências e as habilidades que todos os estudantes brasileiros devem aprender na escola.
Ao longo dos últimos anos, foram vários os conceitos utilizados para organizar e regular a seleção dos conhecimentos. Noções como “expectativas de aprendizagem”, “currículo mínimo”, “direitos de aprendizagem”, “competências cognitivas e socioemocionais”, dentre outras, foram utilizadas no decorrer deste processo de longos embates políticos. Na última versão do documento conseguimos ter uma visão mais abrangente e definitiva dos conceitos orientadores. Ao apresentar os fundamentos pedagógicos da BNCC, o documento indica como primeiro aspecto que os conteúdos curriculares devem estar “a serviço do desenvolvimento de competências”.
Ou seja, estamos diante do ressurgimento do conceito de “competência” que parecia estar esmaecido na literatura curricular brasileira. Isto também sinaliza para os modos pelos quais a BNCC pode ser levada a operar: busca pela eficiência, intensificação dos regimes de avaliação, centralidade do rendimento dos estudantes e do desempenho dos professores e, no limite, performatividade e accountability. Dizem os especialistas na questão que, a partir da predominância de uma lógica econômica, explicita-se a emergência de uma “nova ordem moral” para orientar as instituições educativas.
IHU On-Line – No que consiste a ideia de um currículo de base comum para todo o país? Como garantir que essa base não seja um instrumento de centralização e homogeneização das diferenças regionais?
Dificilmente a BNCC não se configurará como um instrumento de centralização e de tentativa de homogeneização das práticas pedagógicas desenvolvidas em nosso país
Roberto Rafael Dias da Silva – Do ponto de vista metodológico, tenho procurado compreender as políticas curriculares em seus variados regimes de implementação. Isso implica reconhecer que tais políticas são movidas por interesses variados, heterogêneos e, muitas vezes, antagônicos. Na análise da BNCC não consigo pensar diferente. A proposta de uma base, construída sob princípios democráticos, tem sido justificada por variados campos políticos, valendo-se de uma significativa variação de prismas analíticos. Por exemplo, alguns grupos defendem esta base como uma estratégia de padronização dos conteúdos a serem ensinados, ou mesmo como possibilidade de orientar a fabricação de materiais didáticos. Encontramos setores que postulam sua importância para a melhoria dos resultados nas avaliações de larga escala. Movimentos mais progressistas defendem a BNCC como uma possibilidade de suprir as deficiências na formação dos professores ou na organização dos sistemas de ensino. Enfim, a própria ideia de um currículo nacional instaura-se em um campo político povoado por intermináveis disputas. Há dificuldades também de ordem epistemológica para definir o que conta como “comum” ou “nacional” para orientar um currículo.
Dificilmente a BNCC não se configurará como um instrumento de centralização e de tentativa de homogeneização das práticas pedagógicas desenvolvidas em nosso país. Acredito que uma política curricular possa delinear princípios e produzir outras formas de educação de qualidade, mas não por esse caminho. Uma possibilidade de produzir alternativas poderia estar na retomada do conceito de “justiça curricular”. Produzir tal iniciativa suporia afastar-se dos posicionamentos destacados anteriormente e reenquadrar o debate desde outros entendimentos, que não percam de vista sua dimensão crítica e compreensiva. Poderíamos seguir pensando em uma política curricular justa, na medida em que pudesse ser estabelecida sob os critérios da redistribuição, do reconhecimento e da participação. A combinação destes critérios, de acordo com a filósofa Nancy Fraser [5], poderia impulsionar outros sentidos para a justiça em nosso tempo.
IHU On-Line – De que forma a BNCC deve impactar o processo de ensino e aprendizagem nos três níveis escolares, Educação Infantil e Ensinos Fundamental e Médio? E quais devem ser os reflexos na universidade e educação profissionalizante?
O processo de construção da Base negligencia um debate acerca dos propósitos ou finalidades públicas da escolarização
Roberto Rafael Dias da Silva – Para além de estabelecer uma cartografia dos eventuais impactos da BNCC nos variados níveis de ensino, penso que vale a pena destacar um aspecto que talvez seja uma das principais lacunas no processo de construção desta política. O processo de construção da Base negligencia um debate acerca dos propósitos ou finalidades públicas da escolarização. No mesmo espírito das políticas contemporâneas, a proposta curricular analisada deixa de lado uma reflexão acerca do “como” e do “porquê” da educação, bem como de suas potencialidades para a vida democrática. Ao optar por priorizar uma “cultura de medição”, as atuais políticas desviam desta questão imprescindível. O filósofo Gert Biesta [6] tem insistido que “existe uma falta de atenção geral e de clareza conceitual a respeito da pergunta do propósito da educação”. Em outras palavras, existe uma intensa preocupação com os métodos, com as didáticas e, mais recentemente, com o design pedagógico, e a consequência, de acordo com o filósofo, seria um esvaziamento do debate crítico sobre as finalidades da escola.
Na mesma direção, em publicação recente, o sociólogo Stephen Ball [7] tem defendido um “retorno ao básico”, como estratégia de deslocamento das perspectivas empresariais presentes na educação atual. Em sua percepção, isto significaria “repolitizar a educação”, ou seja, “reconectá-la com as vidas, esperanças e aspirações de crianças e pais, não através da escolha da escola e da competição, mas sim através da participação, do debate e do compromisso educativo das escolas com suas comunidades”. Em um tempo no qual a responsabilidade adquire uma conotação técnica e gerencial, poderíamos reinvestir a responsabilidade educativa de um enfoque democrático.
Parece-me que o processo de construção da BNCC demonstra-se incapaz de reconectar o debate curricular com as finalidades públicas da escolarização. Isto seria possível, em linhas gerais, através de movimentos de diversificação curricular, com uma ênfase na noção de qualidade social e com uma aposta em modelos cooperativos. Sem a pretensão de estabelecer um receituário, suponho apenas que ainda é possível produzirmos insurgências críticas aos pressupostos neoliberais e neoconservadores predominantes nas políticas curriculares brasileiras.
IHU On-Line – Em sua última entrevista à IHU On-Line [8], o senhor destacava que, num contexto de crises, como o que se vive no Brasil, a educação utilitarista e de cunho neoliberal se apresenta como alternativa de superação dessas crises. Em que medida a proposta de BNCC se associa a essa lógica?
O neoliberalismo poderia ser entendido como uma racionalidade orientadora das vidas contemporâneas
Roberto Rafael Dias da Silva – Há um consenso entre os analistas de política curricular que o atual direcionamento que a BNCC tem recebido associa-se aos pressupostos de uma racionalidade neoliberal. Todavia, isso não começou agora, nem mesmo a Base é seu principal constructo político. A definição de um currículo padronizado está articulada com a predominância das avaliações externas, com os critérios utilitaristas para selecionar os conteúdos, com o estímulo à competitividade entre profissionais e entre estabelecimentos de ensino ou mesmo com as novas figuras subjetivas emergentes deste cenário. A BNCC, com maior ou menor intensidade, apresenta-se como um instrumento para a autorregulação docente e para a performatividade, construindo aquilo que Ball nomeou como um “sistema de terror”.
Porém, para melhor avançar na descrição das articulações entre educação e neoliberalismo, alguns breves comentários precisam ser realizados. O primeiro comentário vincula-se à compreensão do neoliberalismo. Justapondo teorizações críticas e estudos foucaultianos, Dardot [9] e Laval [10] explicam que seria prudente ampliar os entendimentos acerca do neoliberalismo, interpretando-o para além de um doutrina econômica, da crença da naturalidade do mercado ou mesmo de uma redução do Estado. A interpretação produzida pelos autores, objetivamente, sugere que o neoliberalismo poderia ser entendido como uma racionalidade orientadora das vidas contemporâneas. Ou ainda, pensar que “o neoliberalismo não destrói apenas regras, instituições, direitos. Ele também produz certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades”.
Em termos das relações entre educação e neoliberalismo, meu segundo comentário dá visibilidade para as economias da dívida emergentes da gramática pedagógica do “aprender a aprender”. Dialogando com Lazzarato [11], vale destacar que as relações capitalistas não seriam mais somente explicadas através das relações entre capital e trabalho, mas poderiam ser explicadas sob as condições da relações débito-crédito. A forma predominante do homo economicus estaria muito próxima à figura do “homem endividado”, comprometido permanentemente em investir em sua vida, capitalizando-a de maneira que se torne mais competitivo. Em outras palavras, mais que um modo de governança, o neoliberalismo também operaria no âmbito da própria vida, impelindo os sujeitos a sentirem-se endividados e buscarem uma contínua reinvenção, “financeirizando e/ou capitalizando” seus próprios percursos formativos.
Por fim, em termos curriculares, o terceiro comentário diz respeito à primazia de valores e saberes utilitaristas. Na medida em que a vida passa a ser explicada através dos interesses individuais, que enfatizam o componente econômico como princípio explicativo da ação humana, os currículos escolares tornam-se mobilizados por relações utilitárias. Lembra-nos Yves Lenoir [12], por exemplo, que “a tendência forte que emerge e que defende esta orientação conduz numerosos alunos a irem à universidade para obter um diploma que lhes permita ‘vencer na vida’, e não para estudar e desenvolver suas capacidades intelectuais”.
Em síntese, a BNCC pode ser posicionada na justaposição entre financeirização da vida e a primazia de saberes utilitaristas. Sob essa perspectiva, não é difícil compreender por que seu conceito orientador é a noção de competência. Ao mesmo tempo, em um exercício mais ampliado de pensamento, faz-se possível entender o recente sucesso das pedagogias inovadoras centradas nos interesses dos estudantes, em suas capacidades e nas promessas de autorrealização em um mundo financeirizado.
IHU On-Line – O debate em torno da proposta “escola sem partido” [13] está associado a um modelo neoliberal de ensino? Por quê?
Mais que um modo de governança, o neoliberalismo também operaria no âmbito da própria vida
Roberto Rafael Dias da Silva – Como sinalizei na questão anterior, em termos globais, há uma clara predominância das racionalidades políticas inspiradas pelo neoliberalismo. Porém, é importante enaltecer que outras lógicas de reflexão também operam nestes cenários, sendo inegável a força que têm adquirido os movimentos neoconservadores. No caso da “Escola sem Partido”, no Brasil, sua conotação atende a princípios neoconservadores. Seu conteúdo, seus métodos e suas formas de inspiração pedagógica – seja no plano macropolítico, seja nos cotidianos escolares – conduzem a pauta moralizante.
O historiador Antonio Viñao [14], comentando essa questão no contexto espanhol, explicita que as racionalidades neoliberal e neoconservadora parecem operar em ampla coalizão. Muitas vezes, as estratégias de ação são neoliberais, enquanto os objetivos ou as pautas pedagógicas são neoconservadores. Nas palavras de Viñao, tal articulação favorece a instauração de “uma nova versão destas políticas com vistas ao desmantelamento ou a debilitação do direito social à educação junto com outros direitos sociais próprios do chamado Estado de Bem-Estar Social, assim como a imposição de uma mentalidade, ideologia e modos de fazer tradicionalmente conservadores e autoritários”. Precisamos ficar atentos, dessa forma, à composição de políticas neoliberais que trazem em sua agenda conceitos e concepções neoconservadoras.
Os princípios pedagógicos defendidos e difundidos pelo movimento “Escola sem Partido” evidenciam uma conotação neoconservadora. Isso se explicita na medida em que, no site que apresenta o movimento, assinala-se que seu foco é o engendramento de uma lei contra “o abuso da liberdade de ensinar”. Os alvos são aqueles que “a pretexto de transmitir aos alunos uma ‘visão crítica’ da realidade, [configuram-se como] um exército organizado de militantes travestidos de professores [que] prevalece-se da liberdade de cátedra e da cortina de segredos das salas de aula para impingir-lhes a sua própria visão de mundo”. Enfim, os delineamentos futuros da agenda neoconservadora merecem nossa atenção enquanto pesquisadores e professores, sobretudo pelo modo como os jovens têm aderido a concepções dessa natureza.
IHU On-Line – Ao longo do debate dessa última versão da BNCC, emergiu a discussão sobre questões de gênero e o ensino religioso confessional. Como compreender as questões de fundo no debate desses dois temas?
Roberto Rafael Dias da Silva – Não sou um pesquisador destas questões, embora possa me reconhecer como um pesquisador curioso acerca das questões do nosso tempo. Sem adentrar em um detalhamento específico destas discussões, parece-me que a reiterada ênfase na “ideologia de gênero” e a recente aprovação do “ensino religioso confessional” poderiam ser dimensionadas no próprio declínio da democracia. Quando um grupo político luta exclusivamente para que determinadas formas de vida sejam suprimidas do jogo político, ou quando introduz a possibilidade de que a sua religião seja ensinada pela escola pública (e financiada pelo Estado), em minha leitura, significa que estamos com dificuldades para definir democraticamente nossos modos de convivência e direcionamentos para a vida coletiva.
Ao longo da Modernidade, lembra-nos Zygmunt Bauman [15], em uma de suas últimas obras, que “a democracia foi sustentada pela tradução contínua de interesses privados em questões públicas e de necessidades públicas em direitos e deveres privados”. De acordo com o sociólogo, parece que o pêndulo mudou de direção e hoje explicamos o público através das demandas privadas. Sob essa leitura, não é apenas o Estado que declina de suas históricas responsabilidades acerca da proteção coletiva. Mais uma vez dialogando com pensador social, parece que “o mundo não se manifesta para nós como objeto de nossa responsabilidade”. Uma necessidade teórica para o campo dos Estudos Curriculares talvez seja uma retomada dos debates acerca da alteridade e da responsabilidade coletiva pelo mundo.
IHU On-Line – A Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB brasileira é tida por especialistas como modelo. Entretanto, reconhece-se que há uma aplicação parcial de seus dispositivos. A aplicação plena da Lei hoje dispensaria a emergência da ideia de “reforma da educação”? Por quê?
O processo de construção da BNCC demonstra-se incapaz de reconectar o debate curricular com as finalidades públicas da escolarização
Roberto Rafael Dias da Silva – Para produzir algumas problematizações em torno desta questão, precisamos ponderar os modos pelos quais as reformas educativas operam como estratégia governamental. Esclarece-nos o sociólogo Christian Laval que o neoliberalismo aciona determinadas modalidades de crise que tendem a fabricar a necessidade de reformas. Em outras palavras, as reformas são derivadas da própria necessidade do Estado neoliberal em promover mudanças que justifiquem seus modos de proceder e intervir através das regras da concorrência e do modelo empresarial, que são seus pilares. Atualmente, então, precisaríamos considerar que a crise ocupa um papel estratégico, isto é, torna-se “um modo de governabilidade que consiste em usar a crise como ponto crucial para acelerar o estabelecimento da lógica de mercado e as regras de concorrência no âmago do emprego e da sociedade”.
Ainda acerca das conexões entre crise e neoliberalismo, importa enaltecer que nesta conjuntura “a prática empresarial converteu-se no sentido comum da vida da organização”, tal como argumenta Stephen Ball. Ao tomar a empresa como modelo organizacional, privilegiam-se novas lógicas de competição e de exploração, bem como novos procedimentos explicativos são demandados. A linguagem empresarial explica o mundo educacional, o mundo profissional e até mesmo o componente emocional. Mais uma vez recorrendo a Ball, “o neoliberalismo se plasma em um ‘novo tipo de indivíduo’, um indivíduo formado na lógica da competição: um ‘homem empresarial’, calculador, solipsista e instrumentalmente dirigido”.
Nas políticas curriculares, as reformas permanentes podem ser lidas a partir dessa grade explicativa. Um grande conjunto de reformas deriva-se do Programa Internacional de Avaliação de Alunos - Pisa [16], fortalecido internacionalmente por meio de um conjunto de atores e instituições e promovido intensamente pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE. Os exames derivados do Pisa criam seus próprios padrões de qualidade educativa e, mais que isso, estimulam determinadas formas de competitividade e de indução a reformas. Da reforma educativa como estratégia governamental, conforme explica o pesquisador alemão Ludwig Pongratz [17], “cada aluno e cada professor se convertem em seu próprio centro de competência e, em consequência, o conceito de competência orienta-se ao centro da reflexão pedagógica”.
Sob as condições das crises engendradas no contexto neoliberal, as políticas educativas (e as políticas em geral) são regidas pela necessidade constante de reformas. Tais reformas consideram a qualidade como foco e os padrões internacionais do Pisa são tomados como grade de leitura do que conta como “boas práticas pedagógicas”. Assim sendo, não conseguimos analisar se a LDB seria um bom modelo e que se fosse bem aplicada teriam processos mais consolidados. No limite, apenas poderíamos interrogar: quais foram nossos êxitos pedagógicos após a conversão do ensino e da aprendizagem em elementos calculáveis?
IHU On-Line – Quais os desafios para se conceber um currículo escolar comum que trabalhe na perspectiva da educação libertadora e não utilitarista e tecnicista?
Roberto Rafael Dias da Silva – Em termos de teorias ou práticas curriculares acredito que precisamos produzir alguns avanços na direção do mapeamento das resistências e alternativas às políticas derivadas do neoliberalismo ou do conservadorismo. Talvez seja o momento de interrogarmos os currículos escolares de outros modos, para além do público ou do privado, buscando alternativas mais abertas, democráticas e coletivas que problematizem os propósitos da escolarização, conforme apontei anteriormente. Gosto muito do desafio proposto pelos colegas espanhóis Jordi Collet [18] e Antoni Torti em torno das possibilidades de “uma governança escolar a serviço de processos de justiça e democracia”.
Todavia, importa sinalizar que noções como justiça e democracia, em minha leitura, não apresentam sentidos últimos ou definitivos, mas são redimensionadas ou reposicionadas no agonístico território das lutas coletivas. Para pensar o currículo sob outros enquadramentos, três desafios emergem de minhas investigações, quais sejam: a) a necessidade de manter aberto o debate acerca dos conhecimentos escolares, visando à ampliação do repertório cultural dos estudantes de nosso país; b) a importância da promoção e da valorização das diferenças culturais, em justaposição ao questionamento das desigualdades sociais; c) o fortalecimento da cooperação, do diálogo, das formas de reconhecimento, da alteridade e de todas as possibilidades que contestem as lógicas da performatividade e do desempenho individual.
Tenho a convicção de que as atuais políticas de reforma curricular, dentre as quais a BNCC é um exemplar privilegiado, ao enfatizarem as avaliações de larga escala e as concepções utilitárias de conhecimento dela derivadas, não garantem aos estudantes as condições necessárias para participar ativamente da vida democrática. A longo prazo, inspirando-me em Hardt [19] e Negri [20], talvez seja possível reinscrever o conhecimento escolar no território do comum.
IHU On-Line – Quais os desafios para a formação docente no nosso tempo?
Os currículos escolares tornam-se mobilizados por relações utilitárias
Roberto Rafael Dias da Silva – Tendo em consideração as questões da docência e da formação de professores, no contexto de predominância das racionalidades políticas apresentadas anteriormente, proponho que duas questões precisam ser consideradas com maior atenção. A primeira delas vincula-se à centralidade de uma nova linguagem da aprendizagem na educação, como tem argumentado o filósofo Gert Biesta. Hoje, em todo o mundo, o discurso pedagógico enuncia recorrentemente a posição dos professores como gestores de aprendizagem, do ensino como criação de possibilidades de aprendizagem ou mesmo das escolas como comunidades de aprendentes. Esta “learnification” enuncia um aprendiz vitalício e tende a produzir certa “erosão” nas funções públicas da docência. Parece consolidar-se uma leitura individualista e demasiadamente individualizante da tarefa educativa.
Outra questão que merece ser destacada e que está conectada com o aspecto anteriormente referido é a centralidade das práticas como princípio explicativo do trabalho docente. As “boas práticas” são cada vez mais cartografadas, os bons modelos formativos são centrados na prática e as boas aulas são aquelas lúdicas, interativas e criativas. A ênfase nas práticas, ainda que revestida de intenções desejáveis como no caso do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência - Pibid, fabrica um tipo específico de professor e, mais que isso, delineia o que vale a pena ser feito em sala de aula. O pesquisador Thomas Popkewitz [21], em texto recente, pontua que “a prática é uma abstração que expressa teorias sobre o futuro professor cosmopolita ideal, para ser atualizado mediante investigação que tem que maximizar a utilização do sistema escolar”. Isso não significa que as práticas sejam importantes, mas tornar problemática esta predominância das práticas e dos conhecimentos úteis para a formação de professores torna-se indispensável.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Roberto Rafael Dias da Silva – Como pesquisador interessado em ampliar as fronteiras analíticas de minha área do conhecimento, tenho apostado em análises críticas que consigam justapor a relevante herança do pensamento crítico com os estudos foucaultianos sobre a governamentalidade e a biopolítica. Em meus últimos trabalhos tenho me dedicado a problematizar os “dispositivos de customização curricular” que delegam aos próprios jovens a responsabilidade sobre seu processo formativo. Diagnostico, nestas investigações, que a individualização dos percursos formativos no Ensino Médio tende a ampliar as desigualdades educacionais, uma vez que não considera que os sujeitos mobilizam recursos desiguais.
Tais elaborações podem ser importantes para aqueles que planejam ou executam políticas curriculares. Porém, o trabalho da crítica é maior do que esse. Desejo muito seguir interrogando essa questão e, tal como aprendi com Laval em uma de suas últimas passagens pelo Brasil, ampliando nossas ferramentas de trabalho através da consideração de literaturas diversificadas. Permito-me encerrar a entrevista valendo-me das palavras do sociólogo referido: “[...] os que lutam não precisam somente de panfletos, precisam de uma perspectiva histórica e de ferramentas teóricas. Necessitam sobretudo de provas, armas intelectuais reais, e não de belas frases. É isso o que procuramos fazer ao não distinguirmos trabalho sério de engajamento”.
Notas:
[1] Carmen Teresa Gabriel: doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, atualmente é professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. (Nota da IHU On-Line)
[2] Antonio Flávio Barbosa Moreira: licenciado em Química pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, ainda é graduado em Pedagogia pela Sociedade Universitária Augusto Motta, mestre em Educação pela UFRJ e doutor em Educação pelo Instituto de Educação da Universidade de Londres. Atualmente é professor titular da Universidade Católica de Petrópolis, onde coordena o Programa de Pós-Graduação em Educação. Tem experiência na área de educação, com ênfase em currículo, atuando principalmente nos seguintes temas: escola, teorias de currículo, prática curricular, história do currículo, multiculturalismo e formação de professores. (Nota da IHU On-Line)
[3] MOREIRA, 2012, p. 182. (Nota do entrevistado)
[4] Acesse o endereço eletrônico aqui. (Nota da IHU On-Line)
[5] Nancy Fraser (1947): filósofa feminista estadunidense ligada à Teoria Crítica. É titular da cátedra Henry A. and Louise Loeb de Ciências Políticas e Sociais da New School University, Estados Unidos. Para ela, o conceito de justiça deve ser entendido a partir de três dimensões inter-relacionadas, que seriam a distribuição (de recursos produtivos e de renda), o reconhecimento (das contribuições variadas dos diversos grupos sociais) e a representação (na linguagem e nos demais meios simbólicos). (Nota da IHU On-Line)
[6] Gert Biesta: professor da School of Education & Laboratory for Educacional Theory, da University of Stirling, Stirling, Scotland, Reino Unido. (Nota da IHU On-Line)
[7] Stephen J. Ball: é professor do Instituto de Educação da Universidade de Londres, onde é Karl Manheim Professor of Sociology of Education. Ele se dedica a pesquisas sobre política educacional da atualidade. Suas pesquisas oferecem interessantes recursos intelectuais que permitem compreender como as políticas são produzidas, o que elas pretendem e quais os seus efeitos. (Nota da IHU On-Line)
[8] A entrevista está disponível em http://bit.ly/2ADQP2U. (Nota da IHU On-Line)
[9] Pierre Dardot: é filósofo e pesquisador da universidade Paris-Ouest Nanterre-La Défense, especialista no pensamento de Marx e Hegel. Desde 2004, com Christian Laval, coordena o grupo de estudos e pesquisa Question Marx, que procura contribuir com a renovação do pensamento crítico. Publicou no Brasil, juntamente com Christian Laval, o livro A nova razão do mundo (Boitempo, 2016). (Nota da IHU On-Line)
[10] Christian Laval: é pesquisador e professor de sociologia da universidade Paris-Ouest Nanterre-La Défense. É autor de L’Homme économique: Essai sur les racines du néoliberalisme (Gallimard, 2007) e também de um volume de história da sociologia, L’ambition sociologique (Gallimard, 2012). Publicou no Brasil, juntamente com Pierre Dardot, o livro A nova razão do mundo (Boitempo, 2016). (Nota da IHU On-Line)
[11] Maurizio Lazzarato: sociólogo e filósofo italiano que vive e trabalha em Paris, onde realiza pesquisas sobre a temática do trabalho imaterial, a ontologia do trabalho, o capitalismo cognitivo e os movimentos pós-socialistas. Escreve também sobre cinema, vídeo e as novas tecnologias de produção de imagem. É um dos fundadores da revista Multitudes. O IHU já publicou uma série de textos e entrevistas com Maurizio Lazzarato entre elas: O “homem endividado” e o “deus” capital: uma dependência do nascimento à morte. Entrevista com Maurizio Lazzarato, publicada na IHU On-Line, edição 468, de 29-6-2015; Subverter a máquina da dívida infinita. Entrevista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notícias do Dia, de 2-6-2012, no sítio do IHU; "Atualmente vigora um capitalismo social e do desejo". Entrevista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notícias do Dia, de 5-1-2011, no sítio do IHU; "Os críticos do Bolsa Família deveriam ler Foucault..." Entrevista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notícias do Dia, de 15-12-2006, no sítio do IHU; Capitalismo cognitivo e trabalho imaterial. Entrevista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notícias do Dia, de 6-12-2006, no sítio do IHU; As Revoluções do Capitalismo. Um novo livro de Maurizio Lazzarato. reportagem publicada em Notícias do Dia, de 6-12-2006, no sítio do IHU. (Nota da IHU On-Line)
[12] Yves Lenoir: professor titular da chaire de recherche du Canada sur l'intervention éducative. Ex-Presidente da Associação Mundial de Ciências da Educação – ASME, Associação Mundial de Ciencias de la Educación – AMCE, Associação Mundial de Pesquisas Educacionais - Waer, organização não-governamental com relações oficiais com a Unesco. (Nota da IHU On-Line)
[13] Programa Escola sem Partido [ou apenas Escola sem Partido]: é um movimento político criado em 2004 no Brasil e divulgado em todo o país pelo advogado Miguel Nagib. Ele e os defensores do movimento afirmam representar pais e estudantes contrários ao que chamam de "doutrinação ideológica" nas escolas. Ganhou notoriedade em 2015 desde que projetos de lei inspirados no movimento começaram a ser apresentados e debatidos em inúmeras câmaras municipais e assembleias legislativas pelo país, bem como no Congresso Nacional. (Nota da IHU On-Line)
[14] Antonio Viñao Frago: é catedrático de Teoria e História da Educação na Faculdade de Educação da Universidade de Múrcia, na Espanha. Atualmente é presidente da Sociedade Espanhola de História da Educação. As suas principais linhas de investigação são os processos de alfabetização, escolarização e profissionalização docente, a história do currículo e o ensino secundário, assim como a análise das políticas e reformas educativas nas suas relações com as culturas escolares. (Nota da IHU On-Line)
[15] Zygmunt Bauman (1925-2017): Sociólogo polonês, professor emérito nas Universidades de Varsóvia, na Polônia e de Leeds, na Inglaterra. Publicamos uma resenha do seu livro Amor Líquido (São Paulo: Jorge Zahar Editores, 2004), na 113ª edição da IHU On-Line, de 30-8-2004, disponível aqui. Publicamos uma entrevista exclusiva com Bauman na revista IHU On-Line edição 181 de 22-5-2006, disponível para download em http://bit.ly/ihuon181. Por ocasião de sua morte, o IHU, na seção Notícias do Dia de seu sítio, publicou diversos textos sobre a importância de Bauman para compreender o nosso tempo. Entre eles, Zygmunt Bauman representava algum conforto em um mundo cada vez mais cinzento, artigo de Ricardo Lísias, reproduzido em 10-1-2017. (Nota da IHU On-Line)
[16] Programa Internacional de Avaliação de Alunos – PISA: é uma rede mundial de avaliação de desempenho escolar, realizado pela primeira vez em 2000 e repetido a cada três anos. É coordenado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), com vista a melhorar as políticas e resultados educacionais. (Nota da IHU On-Line)
[17] Ludwig A. Pongratz (1948): é um educador alemão. De 1992 a 2009 foi professor de educação geral e educação de adultos na Technische Universität Darmstadt, Alemanha. (Nota da IHU On-Line)
[18] Jordi Collet Sabé: sociólogo, educador social e professor associado de sociologia da educação na Universidade de Vic (UVic), em Barcelona. (Nota da IHU On-Line)
[19] Michael Hardt (1960): teórico literário americano e filósofo político radicado na Universidade de Duke. Com Antonio Negri escreveu os livros internacionalmente famosos Império (5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003) e Multidão. Guerra e democracia na era do império (Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2005). (Nota da IHU On-Line)
[20] Antonio Negri (1933): filósofo político e moral italiano. Durante a adolescência, foi militante da Juventude Italiana de Ação Católica, como Umberto Eco e outros intelectuais italianos. Em 2000, publicou o livro-manifesto Império (Rio de Janeiro: Record), com Michael Hardt. Em seguida, publicou Multidão. Guerra e democracia na era do império (Rio de Janeiro/São Paulo: Record), também com Michael Hardt – sobre esta obra, a edição 125 da IHU On-Line, de 29-11-2004, publicou um artigo de Marco Bascetta, disponível aqui. (Nota da IHU On-Line)
[21] Thomas S. Popkewitz (1940): é um teórico do currículo e professor dos Estados Unidos da América, na faculdade da Escola de Educação da Universidade de Wisconsin-Madison. Seus estudos estão preocupados com os conhecimentos ou sistemas de razão que regem políticas e pesquisas educacionais relacionadas à pedagogia e à formação de professores. (Nota da IHU On-Line)
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A Base Curricular que reverencia a lógica da financeirização. Entrevista especial com Roberto Rafael Dias da Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU