Por: Cesar Sanson | 06 Julho 2016
O pesquisador da área de educação e reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro Roberto Leher, faz um balanço sobre a concepção de educação presente nos documentos, no discurso e nas primeiras ações do governo interino de Michel Temer. A entrevista compõe o especial 'Ataque aos direitos', da Revista Poli e reproduzida por EPSJV/Fiocruz, 05-07-2016.
Eis a entrevista.
Qual é a sua avaliação sobre a concepção de educação presente nos documentos associados ao governo interino e depois nas entrevistas que foram dadas à imprensa?
É perceptível que nós temos uma agenda que contém novidades graves no que se refere, primeiro, ao tamanho do ajuste fiscal que está sendo defendido e praticado pelos atos concretos do governo. Conforme observou um dos teóricos desse processo, um dos que elaboram essa agenda em curso, o diretor da Casa das Garças, Edmar Bacha, a única maneira de congelar os gastos públicos nos marcos do que está sendo votado [PEC 241/2016, que estabelece um teto de gastos para o governo federal] é fazendo modificações constitucionais. E isso significa objetivamente atacar a vinculação constitucional da educação e da saúde e a vinculação dos benefícios sociais com o salário mínimo.
Essa é uma agenda que o governo ainda não conseguiu operar, mas o primeiro passo dela, o pressuposto, já está em curso, que é o não crescimento dos gastos públicos num prazo que eles querem, de 20 anos. Isso seria o macroajuste das contas públicas em moldes gregos, portugueses. A lógica do ajuste fiscal já estava em curso no governo Dilma, mas a institucionalização de medidas que serão coercitivas, no sentido de não possibilitar a ampliação dos gastos sociais, isto seguramente é um elemento novo da política. Eu nem diria que a presidenta Dilma não tivesse isso como um cenário possível, mas independentemente da avaliação, ela não conseguiu fazer e isso não estava na agenda.
O segundo ponto que é novo, e que a meu ver também é muito preocupante, é a incorporação, na agenda educacional, de uma parte da base de apoio do governo Temer que foi fundamental no processo de admissibilidade do impeachment na Câmara. E aqui há uma descontinuidade em relação ao governo anterior. São setores fundamentalistas vinculados a igrejas e centros de pensamento ultraconservador, que abrem uma agenda moral, sobre comportamentos, controle de visão de mundo, que faz convergências com agendas que já estavam em curso, no bojo da política institucional, como a agenda empresarial. Não há uma união da agenda empresarial com a agenda fundamentalista, mas há convergências como, por exemplo, o Movimento Escola sem Partido.
Você vê pontos da agenda empresarial no Escola sem Partido?
Vejo no sentido de que a agenda empresarial aborda e formula o que é dado a pensar na escola como algo que deve compor conhecimentos, entre aspas, mensuráveis e aferíveis, como os descritores de competência e outros que compõem uma visão conservadora do currículo nacional comum, também vinculado ao processo de avaliação. Eu não digo que elas se confundem, estou dizendo que há uma certa interação na perspectiva de que [também para a agenda empresarial] a escola pública não é um lugar de produção e circulação viva de conhecimento, de criação. Deve ser uma instituição em que o que é dado a pensar obedece a descritores de competências. Então aqui há uma proximidade, inclusive, de expectativas em relação ao caráter da escola.
O problema agora é que essa formulação, que estava no Todos pela Educação, no Grupo Lemann, passa a incorporar uma outra agenda que é, essa sim, ultraconservadora. São propostas que promulgam que a escola não pode tornar pensáveis os problemas que a humanidade enfrenta no tempo presente, que ela não pode ser uma escola de ciência, porque a ciência sempre envolve a problematização do conhecimento estabelecido.
O Escola sem Partido, em essência, está dizendo que a escola não pode ser uma instituição capaz de problematizar os valores, as perspectivas de vida, o horizonte de mundo. É uma escola que não está aberta ao tempo histórico, não está aberta à ciência, não está aberta a perguntas. E que, ao mesmo tempo – numa aparente contradição que não é contradição e sim parte de uma lógica –, carrega a escola de ideologia: de homofobia, de perspectivas sobre controle sexual, sobre a questão das identidades. Isso é novo.
O governo da presidenta Dilma e Lula seguramente foram muito mais abertos e críticos no que diz respeito às questões da contemporaneidade.Havia uma perspectiva muito mais aberta, muito mais iluminista e republicana da escola pública.
Você, como muitos outros estudiosos da educação, sempre foi crítico a programas como o Fies, Prouni e Pronatec, entendidos como mecanismos privatizantes de ataque ao fundo público. Hoje, movimentos sociais, várias entidades e segmentos da população têm incluído a diminuição de recursos para esses programas como parte da perda dos direitos que estariam sendo implementados pelo governo interino. Queria que você falasse um pouquinho sobre isso.
Isso é algo que já vinha há tempos: setores da juventude e da sociedade como um todo vinham defendendo o Prouni e o Fies por seu caráter democratizador. E esse caráter, digamos, de democratização, não é uma ilusão, ele existe no que diz respeito ao acesso. Sem sombra de dúvida, houve um crescimento do acesso dos setores mais explorados e expropriados da sociedade, só que mais ao setor privado. Então, sob o ponto de vista dos indivíduos que são beneficiários desses programas, é óbvio que existe uma tendência natural de fazer uma defesa porque muitas vezes foi o mecanismo a partir do qual esses jovens conseguiram ingressar na universidade.
Esse é um ponto que, a meu ver, deve motivar uma autocrítica também da esquerda. Porque a defesa da escola pública, a luta pela escola pública, não conseguiu mobilizar e encantar essa juventude em prol da tese de que esses recursos, se fossem aplicados nas instituições públicas, possibilitariam um número maior de vagas. E eu não tenho dúvida quanto a isso. Nós teríamos um maior número de estudantes, com muito melhor qualidade, porque eles teriam, de fato, uma formação universitária.
Apenas a título de exemplo: no Chile, nós tivemos mobilizações enormes da sociedade compreendendo a importância da educação pública. Lá os jovens não querem mais educação privada, embora também existam mecanismos de financiamento estudantil no Chile. Isso fez parte de um processo de tomada de consciência, de organização, de vitalidade do movimento estudantil, que é algo que nós não conseguimos aqui, até porque a própria direção majoritária dos movimentos de estudantes vinha defendendo o Prouni e o Fies como a única saída democratizante possível. O que rigorosamente não é verdade.
Entre 2007 e 2015, no chamado Reuni, o Ministério da Educação alocou R$ 9 bilhões de recursos para expansão e melhoria das condições [das instituições públicas de ensino superior]. Só em 2014 o Fies significou R$ 13,5 bilhões. Em um ano! Em 2015 foram aproximadamente R$ 16 bilhões. Em 2016, a previsão é de R$ 18 bilhões. Se somarmos só esses recursos dos últimos quatro ou cinco anos, vamos ter quase R$ 60 bilhões. Ora, com R$ 60 bilhões, nós teríamos espalhado universidades públicas, crescido, melhorado as nossas universidades, que estariam fervilhando de estudantes, felizes aqui dentro por estarem frequentando uma instituição pública. Mas nós não tivemos R$ 60 bilhões para a educação pública, nós tivemos R$ 60 bilhões para instituições que, a rigor, nem são propriamente instituições de ensino porque são, antes de tudo, financeiras.
Ou seja, são braços financeiros de fundos de investimentos, que têm uma outra lógica. Em suma, eu não tenho dúvida de que temos muitos professores e estudantes dedicados e qualificados nessas instituições, que estão lutando por melhores condições possíveis, mas isso se dá dentro de um ambiente institucional que não favorece o desenvolvimento pleno das potencialidades que os seres humanos têm de criação. Então, essa é uma defesa que, a meu ver, expressa uma limitação da compreensão do que está em curso na educação brasileira, uma adaptação que eu chamaria de exótica do movimento estudantil a essa lógica. Mas, ao mesmo tempo, temos que reconhecer que os setores que defendem a educação pública estranhamente também não conseguem mobilizar, encantar, apaixonar as pessoas pela luta em prol da educação pública. Isso não é um problema de hoje. Se você pergunta a um jovem: ‘você está estudando?’, ele responde: ‘não, eu não consegui passar no vestibular’ ou ‘eu só consegui passar naquela instituição’.
Ele internaliza isso como um fracasso pessoal: é o indivíduo que foi aprovado ou não, que estudou o bastante ou não. E isso, na realidade, muitas vezes é falso. Um entrou porque teve a nota 7,01, e o outro teve a nota 7,00. Rigorosamente quem tem 7,00 e 7,01 tirou a mesma coisa, mas não entrou porque não tinha vaga. Então, tem uma forma de raciocínio, percepção e representação do mundo e da educação que às vezes peca por falta de uma cultura política mais histórica sobre como os povos têm buscado assegurar o seu direito à educação de alta qualidade nas instituições públicas. De todo modo, a meu ver é um erro avaliar que esses programas vão ser muito significativamente cortados. Vai ter uma freada, mas apenas porque era um processo que vinha num patamar absurdo.
O documento chamado 'Travessia Social', que apresenta as propostas sociais do PMDB, não cita uma única vez o ensino superior, a não ser para defender uma reformulação do ensino médio para que nem todos precisem ser preparados para ingressar na universidade. No entanto, destaca a educação básica como o segmento em que o governo deve ter mais presença. Qual a sua avaliação sobre isso?
Na minha interpretação, o crescimento e o fortalecimento do setor privado e mercantil vão seguir como uma política forte, o que já leva o ministro [interino da Educação, Mendonça Filho] a falar, nas primeiras entrevistas, na possibilidade de cobrança de mensalidade. Está colocado, a meu ver, que o sistema público não cresce mais. [No caso das instituições de ensino superior], é claro que concordamos que agora não é o momento de expandir porque precisamos consolidar o que foi feito, mas vai haver uma pressão crescente sobre os gastos das universidades públicas. E o tema do fim da gratuidade está claramente colocado.
É só ver o artigo que o Edmar Bacha escreveu recentemente no Globo, que diz explicitamente isso: não tem condição de ter nem SUS para todos nem educação pública para todos. O que está sendo sinalizado aqui? Não é só uma lógica econômica, é um horizonte para a formação humana no Brasil. A educação privada massificada, o Pronatec, que são políticas que já existiam, continuam porque, na avaliação dos setores dominantes, essa é a massa da força de trabalho no Brasil. E eles não vão mudar isso. Daí porque não tem nenhum horizonte para a educação pública.
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‘Não é só uma lógica econômica, é um horizonte para a formação humana no Brasil’. Entrevista com Roberto Leher - Instituto Humanitas Unisinos - IHU