08 Setembro 2017
No conclave, Cormac foi visto como um “fazedor de reis”.
Ao final do conclave de 2005, Joseph Ratzinger surgiu como Papa Bento XVI; em 2013, os cardeais elegeram Jorge Bergoglio como Papa Francisco. O único cardeal inglês presente no primeiro dos dois conclaves aprendeu uma lição que seria decisiva para o segundo.
O comentário é de Austen Ivereigh, foi secretário e assessor de imprensa do Cardeal Cormac Murphy-O’Connor entre 2004 e 2006 e é autor da biografia “The Great Reformer: Francis and the Making of a Radical Pope”, publicado por The Tablet, 06-09-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
A sugestão lançada pelo Cardeal Cormac Murphy-O’Connor em encontros no Colégio Inglês dias antes do conclave de 2005 assume uma nova significação, vendo hoje. Era a primeira eleição papal em que todos – com exceção de dois – dos 115 cardeais já haviam participado pelo menos uma vez, e Murphy-O’Connor estava no centro das conversas.
Westminster era uma espécie de reduto para os cardeais dos países de língua inglesa, e o seu arcebispo, alto e jovial, servia como ponto de referência para africanos e asiáticos, bem como muitos americanos. Na linguagem dos conclaves, Cormac era visto como um “fazedor de reis”.
Na época, eu trabalhava como assessor de imprensa para Cormac, certificando-o para que fosse cuidadoso em soltar informações sobre quais “papabili” estavam em alta e quem havia saído do páreo. Mas, ao fim de cada congregação geral – encontros organizados antes do conclave onde, em sede vacante, os cardeais agem como uma espécie de conselho governante –, se o cardeal inglês não estivesse em retirada para um daqueles jantares nos colégios onde os presentes trocam impressões com os demais, ele se sentaria com uma água tônica ao lado e me contaria o que estava achando até então. Eu mencionava um nome e ele balançaria a cabeça, ou faria um aceno de positivo, mas em seguida realizaria um movimento com as mãos como quem dissesse: “Humm, não tenho certeza sobre este…”.
“O que sabe sobre os latino-americanos?”, Cormac me perguntou certa noite. Animado com a perspectiva de o papado passar para este continente, lembrei de dois candidatos: o franciscano brasileiro dedicado a temas de justiça social, Cláudio Hummes, e o explosivo hondurenho, Oscar Rodríguez Maradiaga, delineando para o Patrão quem eu achava que eram os homens fortes dessa região. Ele me interrompeu.
“E Buenos Aires?”, indagou. “O que sabe sobre ele?” Não muito, na verdade, além do que já havia conhecido na capital argentina três anos antes, quando, na medida em que a economia entrava em colapso, o arcebispo jesuíta começava a surgir como uma figura nacional. “Por quê?”, perguntei. “Vocês estão falando dele?” Cormac acenou seriamente, e me lançou aquele olhar de pessoa idosa e sensata, como quem diz: “Marque essas minhas palavras”.
Vendo hoje, percebo que esta foi a única vez em nossas conversas onde ele não se agitou ao mencionar um candidato. Porém o fez de um modo tão reservado que eu quase não guardei na memória. O que causara um impacto maior foram as suas observações sobre a maneira como o Cardeal Joseph Ratzinger, na qualidade de Decano do Colégio Cardinalício, estava conduzindo as congregações gerais, combinando habilmente o conjunto mais heterogêneo, global e disparatado de cardeais da história da Igreja. Embora Cormac nunca tenha dito, achei que esta qualidade, em tais circunstâncias, com os cardeais ainda em choque depois do drama extraordinário da morte do Papa João Paulo II, fazia do cardeal alemão – na ausência de qualquer outro desafiante – um vencedor natural naquela eleição. E foi isso mesmo.
No entanto, existiu um desafiante. Mais tarde, naquele ano, um cardeal italiano publicou o seu diário do conclave, revelando que os “progressistas” em torno do arcebispo de Milão, o Cardeal Carlo Maria Martini, cujo mal de Parkinson o excluíra como “papabile”, tinham promovido e votado no Cardeal Jorge Mario Bergoglio. Cormac, ficou-se sabendo depois, fazia parte deste grupo. Meses antes, quando fiquei sabendo que o cardeal estava saindo para se encontrar com outros líderes eclesiásticos em St. Gallen, na Suíça, supus que era uma reunião do Conselho das Conferências Episcopais da Europa – CCEE. Cormac explicou que não era exatamente isso, e sim um grupo informal, que se reúne anualmente para discutir temas de preocupação mútua. Tudo parecia bastante misterioso.
O “grupo de St. Gallen” se formou originalmente em meados da década de 1990 em reposta ao desmembramento feito por Roma da CCEE. Depois de o Vaticano não conseguir pôr nem o CCEE nem o CELAM (Conselho episcopal dos bispos latino-americanos) sob o controle direto da secretaria-geral do Sínodo dos Bispos, as assembleias/reuniões regionais foram levadas a transformar estes organismos em mecanismos para implementação de ideias (e não para o discernimento delas). O CELAM, muito mais antigo e maior do que o CCEE, conseguiu resistir muito mais a esta iniciativa do que os europeus.
Como descrito na biografia autorizada do Cardeal Godfried Danneels, emérito de Bruxelas, os reformistas, ou pastoralistas, da CCEE decidiram segurar as suas reuniões, mantê-las fora do radar, para fazerem informalmente aquilo que não mais poderiam fazer formalmente: discutir o estado da Igreja.
O grupo de 7 ou oito cardeais – na prática coordenado por Martini, a quem Cormac admirava profundamente – incluiu Basil Hume e, depois de 2001, Cormac. Quando escreveu em suas memórias (“An English Spring: memoirs”, 2015) que “entre alguns dos cardeais europeus em particular, havia o desejo por um estilo mais pastoral, um anseio por uma mudança de foco na atenção, do centro da Igreja para as periferias”, Cormac resumiu a essência da agenda do grupo de St. Gallen.
Era uma visão que começou a surgir na época do consistório de 2001, quando os cardeais latino-americanos no Colégio de repente aumentaram de número e assumiram uma causa comum com os pastoralistas europeus, instando reformas. Essa alteração no Colégio Cardinalício é, em vários sentidos, a origem do papado de Francisco. Cormac e Bergoglio, ambos feitos cardeais naquele ano, iriam se reunir e conversar em encontros no Vaticano, onde normalmente se sentavam juntos. Quanto mais Cormac conhecia Bergoglio, especialmente depois de 2005, tanto mais se convencia de ser o religioso latino-americano a pessoa a assumir o comando da Igreja.
No final do pontificado de Wojtyla, Cormac detectou uma divisão entre os cardeais. Com o dom de seu pastor para criar metáforas bíblicas, ele a descrevia como aqueles que queriam uma Igreja do tipo “fermento na massa”, de um lado, e de outro, aqueles que queriam uma Igreja do tipo “cidade sobre a colina”. Essa divisão não tinha muito a ver com doutrina, insistia o cardeal, mas com estilo e ênfase. Cormac era extremamente honesto. Acreditava que a era de São João Paulo II fora um momento necessário para a tradição católica à luz do Concílio Vaticano II, momento que evitou a ruptura e a resistência. Mas ele sentia que uma Igreja sobre a colina carecia de credibilidade numa sociedade pluralista na qual a gramática da fé vem se dissolvendo.
A credibilidade da Igreja precisava vir da sua proximidade às pessoas, a “vicinanza” incorporada por Gaudium et Spes e pelos papas que ele mais admirava, São João XXIII e Beato Paulo VI. Um papado de condenação mais do que de diálogo, de proclamações infinitas ao invés de um discernimento cuidadoso, precisava dar lugar a um papado pastoral, onde o foco volta-se sobre o povo e não sobre ideias. Nada disso poderia acontecer sem reformar a Cúria, e a falta de interesse do papa polonês em assim proceder era motivo de decepção para Cormac. Quando os problemas surgiram sob o comando de Bento XVI, o cardeal inglês ficou triste, mas não surpreso.
Em março de 2013, Cormac estava acima da idade em que poderia participar do conclave. No entanto, foi bastante ativo nos encontros que levam a este evento. O grupo de St. Gallen havia terminado em 2006, mas não o seu sonho, e os seus membros, muitos dos quais hoje prelados eméritos, fizeram suas vozes serem ouvidas nas congregações gerais. Cormac tirou algumas lições de 2005. Observou como o “time pró-Ratzinger” havia agido antes do conclave promovendo o seu candidato, de forma que quando o conclave abriu este era o candidato a ser vencido. Cormac acreditava que o próximo papa deveria ter uma identificação com os pobres, implementar a colegialidade, reformar a Cúria e, acima de tudo, ser um pastor.
Convencido de que esta pessoa era Bergoglio, Cormac passeou pelos jantares dos cardeais e, como revela Catherine Pepinster em seu livro a ser publicado em breve (“The Keys and the Kingdom: the British and the Papacy from John Paul II to Francis”), ele até mesmo organizou um jantar por si próprio, voltado aos cardeais da Commonwealth (Comunidade das Nações), na embaixada inglesa, para se certificar de que o nome de Bergoglio fosse ouvido, assim como fizeram os partidários de Ratzinger em 2005. A ideia era dar ao argentino um forte começo já no bloco inicial, com pelo menos 25 votos na primeira rodada de votação. Isso porque os conclaves essencialmente são um exercício de discernimento entre uns poucos concorrentes. Cormac era o principal organizador deste esforço, auxiliado pelo antigo emérito de Florença, Silvano Piovanelli, que guardava uma lista dos cardeais que provavelmente apoiariam Bergoglio. (Piovanelli morreu em 2016.)
Isso tudo estava dentro das regras, que apenas proíbem acordos secretos entre os candidatos e seus apoiadores. “O time de Bergoglio” estava simplesmente fazendo em 2013 o que “o time de Ratzinger” fizera em 2005.
Se Bergoglio sabia do que eles eram capazes, não deu indicação alguma. De qualquer forma, como certa vez Cormac descreveu, embora seja importante o processo humano que precede a eleição papal, o que acontece após fecharem as partas, no conclave em si, é obra do Espírito Santo. Mais de um cardeal latino-americano me disse o quanto esta eleição fora o resultado de uma convergência orante na Capela Sistina.
Todos tinham ciência da crise na Igreja e da necessidade especial de o próximo Pedro ser a escolha de Deus. Porque havia pouca dúvida de quem este era, foram necessárias apenas quatro votações. De acordo com os relatos, Bergoglio teve pelo menos 25 votos no primeiro escrutínio. Cormac orgulhou-se de ter aberto este canal para o Espírito Santo iniciar os trabalhos. Ele foi sempre um reformador paciente, moderado, cauteloso, como descreve a si mesmo em “An English Spring”. Mas, quando a hora certa chegou, soube quando e como agir com ousadia, destacando suas energias e seu charme para suavizar o caminho da providência.
No momento da eleição de Francisco, Cormac estava na Praça de São Pedro, chorando lágrimas de alegria. O furacão que se seguiu foi o que ele sonhara quando era um jovem padre. Era a conclusão do roteiro cinematográfico para uma vida de serviço amoroso.
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Cardeal Cormac, o “fazedor de reis”: Uma lição decisiva para a eleição de Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU