Por: João Vitor Santos | Tradução: Henrique Denis Lucas | 07 Setembro 2017
O papa é o líder do catolicismo, mas é também um chefe de Estado, que o inscreve numa perspectiva geopolítica. Entretanto, o papa Francisco tem ido além e trazido para dentro de seu pontificado a discussão de temas globais que querem focar no pobre, no povo. Críticos dizem que ele tem exagerado e se ocupado com questões que vão além da Igreja. Emilce Cuda, teóloga e cientista política argentina, diz que é impossível dissociar uma coisa da outra. Para ela, Francisco tem clareza de que a política é uma das formas de materializar os valores evangélicos. “Sua postura de estar ao lado do povo é uma posição evangélica antes de ser política”, aponta. “Há pessoas que pensam que a política é a palavra protagonista que decide o que é o bem comum. Para outros, o silêncio. Para os que pensam assim, é compreensível que duvidem da ideologia de um papa que fala de política como caminho para resolução do agônico, que incita manifestações e diz que a política é a mais alta forma de caridade”, completa, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
A professora, que também trabalha com o conceito de populismo de Ernesto Laclau, diz que o discurso pastoral e profético de Francisco o aproxima do pensamento de Laclau. Porém, considera apressada a classificação de Francisco como populista. “Francisco não é nem deixa de ser populista, mas não restam dúvidas de que ele ‘está’ do lado dos pobres”, declara. Ainda refletindo sobre o conceito, analisa o papel de liderança do pontífice, que pode ser pensamento em contraposição a outro líder também tido como populista, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. “O papa é também uma autoridade moral de milhões de pessoas no mundo que são cidadãos de outros estados. Isto lhe confere um poder transversal que resulta para qualquer outro chefe de Estado em uma ameaça de dupla obediência”, analisa. “E o poder, na política, é medido pelo número de representados”, provoca.
Emilce Cuda | Foto: Ministério da Cultura da Argentina
Emilce Cuda é doutora em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica da Argentina. Estudou Ciência Política na Northwestern University, de Chicago, nos Estados Unidos, sob a direção de Ernesto Laclau. Atualmente trabalha como professora de pesquisa na Universidade Nacional Arturo Jauretche, em Buenos Aires, e na Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Católica da Argentina - UCA. Recentemente lançou o livro Para leer a Francisco. Teología, ética y política (Buenos Aires, Argentina: Matinal, 2016).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual a atualidade do conceito 'populismo' de Ernesto Laclau?
Emilce Cuda – Laclau [1] não é nem um cientista político analisando uma conjuntura social, nem um filósofo contemplativo dizendo como deveria ser o mundo e suas instituições, de acordo com um modelo transcendente e necessário. Ele é um filósofo da práxis, de origem latino-americana e argentina, pós-marxista e pós-estruturalista, enunciando uma lógica política que é realizada sob certas condições. Segundo Laclau e Mouffe [2], estamos em um "momento populista" da história. Por esse motivo a sua atualidade é plena.
Para Laclau, a unidade de análise política é a demanda popular – e não a metafísica –, a qual não se dá através do bem comum no sentido abstrato, mas por necessidades concretas, tais como as questões da terra, da moradia e do trabalho. Isso, no melhor dos casos. Se não, as demandas são por segurança, e acabam criminalizando o migrante, o negro, o indígena, o homossexual, o viciado etc.
Laclau não inventa o populismo. Ele apenas o sistematiza. Ele nota que a sua lógica não responde a princípios universais (o dever ser), mas às necessidades ou interesses concretos (o ser-aí) que são expressados como demandas. Portanto, no sentido que Laclau lhe concede, não dever-se-ia falar de populismo como ideologia, forma de governo ou deformação da democracia, mas como um "momento populista", porque trata-se de uma maneira de construir a configuração política, estabelecendo uma fronteira que divide o social em dois campos, permitindo a constituição de identidades populares.
Podem ser articuladas demandas por interesses individuais, e haverá governos a favor de alguns poucos conhecidos, como os que estão acima; ou demandas por necessidades vitais coletivas insatisfeitas, da mesma forma como haverá governos a favor de muitos conhecidos como os que estão abaixo. Agora, de acordo com Laclau, o primeiro caso só é possível em contextos de desenvolvimento industrial avançado e ele o chama de posição democrática de sujeito. O segundo caso ocorre em contextos de baixa produtividade ou crise econômica, e ele o chama de posição discursiva do sujeito. O primeiro admite a existência de partidos políticos. No segundo, eles são substituídos por movimentos sociais.
Alguns pensam que o social pode ser instituído de acordo com os princípios transcendentes que eles conhecem. Então, estes seres iluminados vão pelo mundo vigiando, corrigindo e punindo aqueles que se desviaram de uma trajetória predestinada. No entanto, a política, diferentemente da teologia, parte de princípios contingentes porque não tem sua origem na revelação, como os teológicos, mas em uma luta histórica particular por demandas não satisfeitas. Essa é a origem do modelo republicano liberal e democrático, que nasce de um antagonismo entre a monarquia e a burguesia.
Em toda luta social, o vencedor propõe seu interesse particular como universal, dando sentido ao mundo que, com o tempo, irá se naturalizar. Isto é conhecido como hegemonia cultural, e é algo que ao teólogo lhe compete dessacralizar, pois, como eles sabem muito bem, isso é idolatria.
IHU On-Line – Segundo Ernesto Laclau, é possível compreender a política e a figura de Donald Trump [3] a partir deste conceito de populismo? Por quê?
Emilce Cuda – Em primeiro lugar, não se pode dizer que Trump é populista se com isso se queira significar demagogia, xenofobia, corrupção etc. Em segundo lugar, se apenas entende-se o populismo de Laclau como articulação discursiva de demandas, então é possível dizer que o triunfo de Donald Trump é produzido por uma lógica antagônica ao momento de traçar uma fronteira discursiva que divide o campo do social em dois, nós e eles. Não se trata de ricos e pobres, nem mesmo de esquerda e direita, mas simplesmente: nós e eles.
No entanto, Laclau e Mouffe apelam para que essa fronteira seja produto de uma mobilização do "povo" ou daqueles que estão abaixo, excluídos, contra o "establishment" ou os que estão acima, excludentes. Alguns diriam que Trump seria populista de direita e Chávez [4], de esquerda – o próprio Laclau dizia que isso poderia ser possível, e dava o exemplo de Hitler [5]. Mas, no século XXI, não tenho certeza se é possível falarmos de direitas ou esquerdas porque, por exemplo, entre os seguidores de Trump há gente de cima e de baixo, mas não creio que haja pessoas de esquerda.
A lógica antagônica de características populistas, no sentido que Laclau entende, reaparece no início do século XXI, em alguns países da América Latina como a Argentina, o Brasil, a Bolívia, o Uruguai, a Venezuela e o Equador, levando líderes populares ao governo que, embora tenham governado para os setores mais carentes, não por isso eram contra ou suprimiam as instituições republicanas – com isto quero dizer que também é preciso que sejamos claros e que definamos o que se entende por esquerda, além de que esquerda estamos falando. Esses líderes não implementaram políticas públicas xenófobas ou ameaçaram construir muros. Pelo contrário, eles tiveram uma posição inclusiva para os migrantes internos e externos, e em alguns casos ampliaram as garantias dos direitos dos trabalhadores frente ao capital financeiro internacional.
Pode parecer que nos populismos latino-americanos o antagonismo, sim, foi realizado entre os que estão acima e os que estão abaixo. E isso não parece ter sido tão terrível para os mais pobres, já que as demandas foram democráticas: terra, teto, trabalho, educação, saúde, assim como a liberdade de expressão e a segurança da propriedade privada. Isso sim, foi ampliado pelo Estado, mas não sei se isso poderia ser chamado de "gasto público". Quem sabe também poderia ser chamado de "investimento social". No entanto, em outros contextos, como o dos Estados Unidos, o discurso antagônico, sob o significante vazio da xenofobia e do machismo, mobilizou interesses particulares de segurança, entre aqueles de cima e aqueles de baixo, não de maneira antagônica, mas que os colocou no mesmo lado da fronteira.
O populismo norte-americano não é o populismo que Laclau esperaria, mas nunca descartou que a fronteira pode ser traçada de diversas maneiras de acordo com a demanda que pode representar o conjunto das insatisfações. Como a fronteira entre "eles e nós" é discursiva, a luta é pelo sentido. Diante de uma hegemonia cultural que altera a percepção de quem são "eles" e de quem somos "nós", impedindo a constituição de identidades populares, a lógica antagônica se produz quando se consegue atingir a hegemonia discursiva de uma demanda capaz de representar o conjunto das demandas não satisfeitas, por um determinado momento e de maneira contingente. Se a fronteira é traçada entre aqueles de cima e aqueles de baixo, a esse momento Laclau chama de "momento da política", e é aí onde o povo se constitui como sujeito. Pode ocorrer que a parte pobre do povo, exigindo as suas próprias necessidades insatisfeitas, acabe articulando sua demanda com interesses que lhe são alheios e, em muitos casos, contrários.
Pode ser exemplo disso a Lei do Campo, na Argentina, onde se uniram às reclamações dos setores agrícolas do qual fazem parte as famílias mais abastadas do país, os setores de baixa e média renda de trabalhadores, sob o significante vazio do "todos somos o campo", pedindo que eles fossem liberados das retenções impositivas para as exportações que finalmente garantiam as políticas públicas para os últimos durante o governo de Cristina Kirchner [6].
Os últimos acontecimentos violentos de Charlottesville [7] poderiam ser um exemplo da lógica antagônica. Agora, nem toda a política atual é um exemplo de populismo. No Brasil, Michel Temer desloca Dilma Rousseff por meio de um golpe de estado jurídico e não sofre a resistência dos setores populares que haviam votado nela, porque a oposição consegue articular a insatisfação dos de baixo mediante um significante vazio como é o da "corrupção". Mas foi o resultado de uma hegemonia construída midiaticamente através de uma demanda instalada, e não de uma demanda hegemônica constitutiva de identidades a partir da organização do campo social em dois. A hegemonia midiática permitiu a Temer permanecer no governo e assim promover leis contrárias aos de baixo, que terminam por anular todas as garantias alcançadas por mais de um século pelos trabalhadores. Macron [8] na França, não tenho certeza de que seja um exemplo de populismo, porque ele ganha os votos contra o discurso de Le Pen [9].
A lógica antagônica é constitutiva do sujeito político, e é a única maneira pela qual o indivíduo se torna sujeito. Constitui-se sujeito a partir de uma posição discursiva que ocorre no momento em que conseguir articular sua demanda em uma cadeia de demandas que passam a ser equivalentes a partir de que uma delas assuma, como significante vazio, a representação hegemônica da totalidade das demandas.
Para Laclau, como para a Teologia do Povo [10], os de baixo ou os de cima, o povo ou o establishment, não são categorias lógicas universais, como pode ser a categoria de classe para o marxismo ou a do indivíduo para o liberalismo. A lógica é a seguinte: não há nem povo nem indivíduo antes da relação, e a relação sempre é a unidade na diferença.
Laclau compreende o povo não como uma categoria, mas como pessoas concretas que se reagrupam de forma contingente, de acordo com as demandas insatisfeitas manifestadas no momento da crise, mas hegemonizadas por uma demanda que foi esvaziada de significado. A imprevisibilidade de sua virada torna necessária a luta pelo sentido. Para os teólogos, o povo é aquele com seu sofrimento e aspirações democráticas. Então, ao invés de proferir discursos iluminados sobre o bem comum, apoiaram o povo pobre, os oprimidos, assim como os seus “nós”, em suas lutas pela sobrevivência. E me parece que Francisco vai por esse lado.
IHU On-Line – Quais são os limites da teoria de Laclau para compreender a política no mundo de hoje?
Emilce Cuda – Não sei se é possível encontrar outra forma de ascender ao poder pela via democrática, em sociedades desiguais, que não seja pela capacidade de articular discursivamente demandas insatisfeitas traçando uma divisão entre nós e eles, colocando em manifesto o antagonismo – que já existe – e buscando saídas republicanas. O oposto é cair em totalitarismos, onde não se admite a diferença, mas que ela seja aniquilada.
A política é isso, a unidade na diferença; o contrário é a violência, ou seja, a suspensão da política. Assim, mediante a unidade na diferença, constituem-se as identidades, históricas – e inclusive celestiais -, não apenas as populares, incluindo as das elites, porque o ser é relacional, no homem e no Deus uno e trino do cristianismo. A identidade se define na relação, que é a diferença e o reconhecimento da diferença. Dessa forma, creio que Laclau não apenas se mantém atual no campo da política, mas também tem muito em comum com alguns princípios teóricos, filosóficos e dogmáticos da teologia cristã.
IHU On-Line – De que forma o pontificado de Francisco pode ser compreendido a partir do conceito de populismo segundo Ernesto Laclau?
Emilce Cuda – A primeira coisa que gostaria de esclarecer é a suspeita – enunciada como acusação – de que o papa é populista. É impróprio dizer que alguém "é" populista. Segundo a filosofia e a Teologia da Libertação [11] latino-americana, não se "é", se "está". Em outras palavras, ninguém "é" nenhuma coisa, mas "está" em uma situação crítica que o coloca no julgamento e na tomada de uma decisão, ato este pelo qual o constitui em sujeito e constitui a sua identidade. A Teologia do Povo, nas palavras de Lucio Gera [12], sustenta que o homem se torna sujeito na decisão como uma característica essencial e inevitável do ser situado ou relacional.
Não se "é", se "está" em uma relação. Quando a relação se torna crítica, agônica, existem apenas duas posições: ou se está agonizando, ou se está vitimando. Se está agonizando, há duas possibilidades: o silêncio ou a palavra antagônica. Esse discernimento é o momento do político. Antes da crise, que para os de baixo significa uma ameaça de morte violenta por injustiça social, o momento antagônico ocorre quando frente ao "eu sou" dos setores protagonistas, os setores silenciados tomam a palavra pública e dizem: "aqui estou".
Não se decide ser antagonista. As pessoas estão em situação agônica em uma cultura que mata – argumentam Francisco e o magistério episcopal latino-americano no Documento de Aparecida [13]. Se isso ocorre, é porque não se tem o papel protagonista, por isso, quando a necessidade surge na forma de demanda, sempre é antagônica. Esse processo, que para Laclau é a lógica antagônica e para Scannone [14] é a lógica analética, para outros é populismo.
Não se escolhe ser populista. A mesma decisão de "estar" do lado do povo pobre – não porque é o que tem razão, mas porque é o que agoniza – é qualificada como populista. Se as pessoas estão situadas à margem do humano e essa situação não é negada nem naturalizada, assume-se ela como produto da injustiça estrutural. Esse é o momento em que a identidade se constitui. É o momento do antagonismo, que não é oposição física, mas social, não é luta armada, mas discursiva.
O papa Francisco não é nem deixa de ser populista, mas não restam dúvidas de que ele "está" do lado dos pobres. A terceira posição é apenas a fantasia de um espírito que quer ser absoluto tornando-se em Estado ou em Deus. Por isso o papa Francisco fala de pontes, que sem anular a diferença, permitem a comunicação entre duas partes que nunca estiveram juntas, mas podem dialogar e buscar conjuntamente o que é bom para cada um e para fins concretos.
IHU On-Line – Como esta noção de povo, tão presente em Francisco, gera impacto em suas perspectivas teológicas e pastorais?
Emilce Cuda – O discurso pastoral e profético do papa Francisco pode ser tomado como um exemplo claro de tomada de posição discursiva do sujeito. "Não" é um "nem". Seu discernimento ocorre à luz do evangelho e do magistério católico, mas também de seu conhecimento situado na realidade latino-americana. No entanto, sua postura de estar ao lado do povo é uma posição evangélica antes de ser política. Mas é uma posição evangélica situada historicamente, típica de um jesuíta, e que o permite saber onde está o povo, sem confundir pobres de espírito com pobres de bens, nem tampouco o povo fiel de Deus com o povo pobre e trabalhador.
Estes conceitos não são, para Francisco, nem contrários nem contraditórios. Apenas são distintos e estão em relação, pois não se identifica um à margem do outro. Portanto, a noção cristã de unidade na diferença que também explica as relações intratrinitárias, e não apenas por analogia, explica as relações históricas. O povo fiel de Deus contém em unidade não apenas os diferentes povos da terra, mas também as diferentes partes deste povo, em particular, neste dado momento da história. Mas todo mundo está em alguma dessas duas partes, até mesmo os pastores.
No entanto, assumir diferentes posições discursivas do sujeito não impede a unidade da Igreja, nem a república democrática. "Não temam", diziam os anjos quando anunciavam uma nova. Unidade na diferença – algo que o papa Francisco promove – é a antropologia cristã trinitária, é a boa nova para um crente nesse Deus, e é a política em condições democráticas para um republicano. Não temam. A unidade pressuposta sem diferenças é totalitarismo. Promover a diferença é evitar a violência.
IHU On-Line – De que forma o campo da teologia, em geral, pode contribuir para a compreensão do campo político? Qual é a importância de uma perspectiva que atravesse e compare as duas áreas? E as resistências a Francisco se dão pelas suas posições políticas?
Emilce Cuda – Alguns dizem que não, a política não é feita por pastores. Que um bom cristão, um bom sacerdote, um bom bispo e, mais ainda, um bom pontífice, não devem "intrometer-se na política". Para Aristóteles [15], a política é a palavra e ela nos torna humanos. Para o cristianismo, a palavra se materializa em carne e se faz homem para salvar todos os homens. Me pergunto: por que o fato de ser cristão impede de fazer política? O que isto significa, que os cristãos são homens de menor categoria? Que os cristãos não têm capacidade de discernimento para ver, julgar e obrar? Se acredita-se que o homem seja criado à imagem e semelhança de Deus, e que o evangelho foi revelado a todos, incluindo os pobres e ignorantes, então: como funciona isso de que só alguns podem discernir na política e apenas alguns poucos conhecem o bem comum de todos? A agonia em que se encontram milhões de pessoas por causa de um sistema que mata, como diz o Papa, não é uma condição suficiente para que eles saibam e digam o que é bom para eles?
Há pessoas que pensam que a política é a palavra protagonista que decide o que é o bem comum. Para outros, o silêncio. Para os que pensam assim, é compreensível que duvidem da ideologia de um papa que fala de política como caminho para resolução do agônico, que incita manifestações e diz que a política é a mais alta forma de caridade. Mas ser católico implica não apenas ler o evangelho de acordo com a interpretação da tradição e do magistério, mas também obedecer ao pontífice romano, que foi eleito pelo colégio de cardeais, o que lhe outorga legalidade, aclamado por milhões em todo o mundo – dentro e fora do catolicismo, e inclusive do cristianismo, o que lhe confere legitimidade. Quando o Papa é questionado, o que realmente está em questão é a condição de inquisidores dos católicos.
IHU On-Line – Francisco e Trump são considerados líderes políticos do mundo atual, mas em polos opostos. Qual é a sua leitura sobre a influência dessas duas figuras no cenário político internacional?
Emilce Cuda – A pergunta me faz lembrar de uma velha fórmula que se instalou nas eleições argentinas, nos anos setenta: Braden [16] ou Perón [17]. Apenas essa frase já basta para alinhar as demandas em cada lado da fronteira discursiva. O nome de Braden – que era o embaixador dos EUA na Argentina, e que não era candidato –, representava o partido conservador. O nome de Perón representava o partido popular. Alinhar-se atrás de um ou outro era posicionar-se a favor ou contra o sistema capitalista financeiro internacional. Hoje, quando escuto que os significantes vazios que articulam as demandas e produzem um cenário político internacional antagônico geralmente são "Trump" ou "Francisco", parece-me que eles refletem o mesmo padrão, mas em nível planetário, onde não está em jogo nenhuma escolha, mas simplesmente se está experimentando o momento discursivo do político que gera a identidade.
O papa, que para os católicos é o seu pontífice, para o resto do mundo é um chefe de Estado, porque a Igreja Católica é uma instituição a mais no mundo moderno, e o Vaticano desempenha sua função na sistemática dos estados. Mas existe uma diferença, que não é menor, entre o chefe de Estado do Vaticano e os outros chefes de Estado. Acontece que o papa é também uma autoridade moral de milhões de pessoas no mundo que são cidadãos de outros Estados. Isto lhe confere um poder transversal que resulta para qualquer outro chefe de Estado em uma ameaça de dupla obediência. Um papa poderia não ter nenhuma autoridade moral, nem dentro nem fora do catolicismo. Ou talvez, apenas dentro do catolicismo. Mas acontece que o atual papa tem autoridade moral dentro e fora do catolicismo. E o poder, na política, é medido pelo número de representados.
Notas:
[1] Ernesto Laclau (1935-2014): foi um teórico político argentino. Pesquisador e professor da Universidade de Essex, recebeu o título de Doctor Honoris Causa de várias universidades: Universidade de Buenos Aires, Universidade Nacional de Rosário, Universidade Católica de Córdoba, Universidade Nacional de San Juan e Universidade Nacional de Córdoba. Em 10-3-2008 concedeu a entrevista 1968 e a construção de um novo discurso político à edição 250 da IHU On-Line. A edição número 508 da IHU On-Line trouxe uma reflexão sobre o conceito mais célebre do autor: o populismo. (Nota da IHU On-Line)
[2] Chantal Mouffe: filósofa belga, autora de Dimensions of radical democracy (London: Verso, 1992) e The democratic paradox (London: Verso, 2000). Mouffe era grande parceira de Ernesto Laclau. A edição 508 da IHU On-Line traz um artigo de Mouffe intitulado O desafio populista. O sítio do IHU vem publicando diversos textos da e sobre a autora. Entre eles A influência de Laclau e Mouffe no Podemos: hegemonia sem revolução; “O kirchnerismo é uma fonte de inspiração”. Entrevista com Chantal Mouffe; e “Existe uma necessária dimensão populista na democracia”. Entrevista com Chatal Mouffe. A edição número 508 da IHU On-Line trouxe uma reflexão sobre o conceito mais célebre do autor: o populismo. (Nota da IHU On-Line)
[3] Donald Trump (1946): Donald John Trump é um empresário, ex-apresentador de reality show e atual presidente dos Estados Unidos. Na eleição de 2016, Trump foi eleito o 45º presidente norte-americano pelo Partido Republicano, ao derrotar a candidata democrata Hillary Clinton no número de delegados do colégio eleitoral; no entanto, perdeu no voto popular. Entre suas bandeiras estão o protecionismo norte-americano, por onde passam questões econômicas e sociais, como a relação com imigrantes nos Estados Unidos. Trump é presidente do conglomerado The Trump Organization e fundador da Trump Entertainment Resorts. Sua carreira, exposição de marcas, vida pessoal, riqueza e modo de se pronunciar contribuíram para torná-lo famoso. (Nota da IHU On-Line)
[4] Hugo Chávez Frías (1954-2013): político e militar venezuelano, tendo sido o 56.º presidente da Venezuela, governando por 14 anos desde 1999 até sua morte em 2013. Líder da Revolução Bolivariana, Chávez advogava a doutrina bolivarianista, promovendo o que denominava de socialismo do século XXI. Chávez foi também um crítico do neoliberalismo e da política externa dos Estados Unidos. Oficial militar de carreira, Chávez fundou o Movimento Quinta República, da esquerda política, depois de capitanear um golpe de estado mal-sucedido contra o governo de Carlos Andrés Pérez, em 1992. Chávez elegeu-se presidente em 1998, encerrando os quarenta anos de vigência do Pacto de Punto Fijo (firmado em 31 de outubro de 1958, entre os três maiores partidos venezuelanos) com uma campanha centrada no combate à pobreza. Reelegeu-se, vencendo os pleitos de 2000 e 2006. Com suas políticas de inclusão social e transferência de renda obteve enorme popularidade em seu país. Durante a era Chávez, a pobreza entre os venezuelanos caiu de 49,4%, em 1999, para 27,8%, em 2010. No plano político interno, Chávez fundiu os vários partidos de esquerda no PSUV. Fortaleceu os movimentos e as organizações populares, estabelecendo uma forte aliança com as classes mais pobres. Nas várias eleições, realizadas ao longo de aproximadamente 15 anos, a oposição foi derrotada. Inconformados, os adversários de Chávez promoveram um golpe de Estado, no início de 2002, com apoio do governo dos Estados Unidos. Apesar de o governo norte-americano ter usado de sua influência para obter o reconhecimento imediato do novo governo, a comunidade internacional – inclusive o Brasil, então governado por Fernando Henrique Cardoso – condenou o golpe. Chávez acabou voltando ao poder três dias depois. (Nota da IHU On-Line)
[5] Adolf Hitler (1889-1945): ditador austríaco. O termo Führer foi o título adotado por Hitler para designar o chefe máximo do Reich e do Partido Nazista. O nome significa o chefe máximo de todas as organizações militares e políticas alemãs, e quer dizer “condutor”, “guia” ou “líder”. Suas teses racistas e antissemitas, bem como seus objetivos para a Alemanha, ficaram patentes no seu livro de 1924, Mein Kampf (Minha luta). No período da ditadura de Hitler, os judeus e outros grupos minoritários considerados "indesejados", como ciganos e negros, foram perseguidos e exterminados no que se convencionou chamar de Holocausto. Cometeu suicídio no seu Quartel-General (o Führerbunker) em Berlim, com o Exército Soviético a poucos quarteirões de distância. A edição 145 da IHU On-Line, de 13-6-2005, comentou na editoria Filme da Semana, o filme dirigido por Oliver Hirschbiegel, A Queda – as últimas horas de Hitler. A edição 265, intitulada Nazisimo: a legitimação da irracionalidade e da barbárie, de 21-7-2008, trata dos 75 anos de ascensão de Hitler ao poder. (Nota da IHU On-Line)
[6] Cristina Kirchner (1953): política e advogada argentina. Ex-senadora pela província de Buenos Aires, Cristina foi presidente de seu país entre 2007 e 2015. De 25 de maio de 2003 a 10 de dezembro de 2007 foi também primeira-dama, pois é viúva do ex-presidente Néstor Kirchner, ao qual sucedeu no governo do país latino. (Nota da IHU On-Line)
[7] O IHU, nas Notícias do Dia publicadas diariamente no seu sítio, tem publicando uma série de textos sobre o episódio. Entre eles Pós-Charlottesville: o fim da "invisibilidade" dos católicos afro-americanos; e Charlottesville: polêmica sobre Trump, que não condena explicitamente a extrema-direita, disponível em. Leia mais aqui. (Nota da IHU On-Line)
[8] Emmanuel Macron [Emmanuel Jean-Michel Frédéric Macron] (1977): é um político, funcionário público e banqueiro francês, atual presidente do seu país. Macron estudou filosofia na Universidade de Paris X - Nanterre, concluiu um mestrado em políticas públicas no Instituto de Estudos Políticos de Paris, e depois se formou na Escola Nacional de Administração em 2004. Em seguida, passou a trabalhar na Inspeção-Geral de Finanças antes de se tornar um sócio do banco Rothschild. (Nota da IHU On-Line)
[9] Marion Anne Perrine Le Pen (1968): mais conhecida como Marine Le Pen, é uma advogada e política de direita da França. Deputada do Parlamento Europeu desde 2004, foi eleita presidente da Frente Nacional em 16 de janeiro de 2011, em substituição a seu pai, Jean-Marie Le Pen. É também conselheira regional de Nord-Pas-de-Calais desde março de 2010 e conselheira municipal de Hénin-Beaumont desde março de 2008. (Nota da IHU On-Line)
[10] Teologia do povo (Teologia del Pueblo): linha teológica surgida na Argentina após o Concílio Vaticano II e a Conferência de Medellín (Colômbia, 1968 ) como uma interpretação da Teologia da Libertação desde a perspectiva dos mais pobres, do povo. Entre os principais teólogos da teologia do povo estão Lucio Gera, Rafael Tello, Justin O'Farrel, Juan Carlos Scannone e Carlos Maria Galli. (Nota da IHU On-Line)
[11] Teologia da Libertação: escola teológica da Igreja Católica desenvolvida depois do Concílio Vaticano II. Surge na América Latina, a partir da opção pelos pobres, e se espalha por todo o mundo. O teólogo peruano Gustavo Gutiérrez é um dos primeiros que propõe esta teologia. A teologia da libertação tem um impacto decisivo em muitos países do mundo. Sobre o tema confira a edição 214 da IHU On-Line, de 2-4-2007, intitulada Teologia da libertação. Leia, também, a edição 404 da revista IHU On-Line, de 5-10-2012, intitulada Congresso Continental de Teologia. Concílio Vaticano II e Teologia da Libertação em debate. (Nota da IHU On-Line)
[12] Lucio Gera (1924-2012): teólogo, imigrante italiano que chegou à Argentina quando criança. Foi líder da Comissão Episcopal de Pastoral (Coepal), constituída pelos bispos argentinos no rescaldo do Concílio Vaticano II. Por isso é considerado um dos mais importantes teólogos da assim chamada Teologia do Povo. (Nota da IHU On-Line)
[13] Documento de Aparecida: A V conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe aconteceu de 13 a 31-5-2007, em Aparecida, São Paulo. As conclusões da reunião compõem o Documento Conclusivo da V Conferência. Sobre o tema, a IHU On-Line produziu uma revista especial em 20-6-2007, edição 224, intitulada Os rumos da Igreja a partir de Aparecida. Uma análise do documento final da V Conferência. (Nota da IHU On-Line)
[14] Juan Carlos Scannone (1931): teólogo jesuíta e professor argentino do Seminário Jesuíta de San Miguel, na Argentina. É uma das principais referências da Escola Argentina chamada Teologia do Povo, ramo autônomo da Teologia da Libertação. Scannone obteve seu doutorado (Ph.D.) na Universidade de Munique (Alemanha). Ele foi um dos mais influentes professores de Jorge Bergoglio, que mais tarde se tornou o papa Francisco. Em 22 de fevereiro de 2014 foi anunciado que Scannone foi incorporado como um colaborador permanente do La Civilta Cattolica, um jornal italiano da Companhia de Jesus. A revista IHU On-Line, na edição número 465, de 18-5-2015, publicou uma entrevista com Scannone, intitulada O Papa Francisco e a Teologia do Povo. (Nota da IHU On-Line)
[15] Aristóteles de Estagira (384 a.C.-322 a.C.): filósofo nascido na Calcídica, Estagira. Suas reflexões filosóficas – por um lado, originais; por outro, reformuladoras da tradição grega – acabaram por configurar um modo de pensar que se estenderia por séculos. Prestou significativas contribuições para o pensamento humano, destacando-se nos campos da ética, política, física, metafísica, lógica, psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia e história natural. É considerado, por muitos, o filósofo que mais influenciou o pensamento ocidental. (Nota da IHU On-Line)
[16] Spruille Braden (1894-1978): foi um diplomata, empresário e lobista americano que serviu como embaixador em vários países latino-americanos e como Subsecretário de Estado para Assuntos Hemisféricos. (Nota da IHU On-Line)
[17] Juan Domingo Perón (1895-1974): militar e político argentino, presidente de seu país de 1946 a 1955 e de 1973 a 1974. Foi líder do Movimento Nacional Justicialista. Genericamente, esse Movimento é chamado peronismo. Os ideiais são baseados no pensamento de Perón. O Movimento Justicialista transformou-se, mais tarde, em Partido Justicialista, que é a força política maioritária na Argentina. Os ideais do peronismo se encontram nos diversos escritos de Perón como "La Comunidad Organizada", "Conducción Política", "Modelo Argentino para un Proyecto Nacional", entre outros, onde estão expressos a filosofia e doutrina política que continuam orientando o pensamento acadêmico e a vida política da segunda maior nação sul-americana. (Nota da IHU On-Line)
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"Francisco não é nem deixa de ser populista, mas não restam dúvidas de que ele ‘está’ do lado dos pobres”. Entrevista especial com Emilce Cuda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU