28 Março 2017
Discípula de Laclau e companheira de marcha dos teólogos da libertação, Cuda acredita que "o populismo é uma nova forma de política, pois o povo se torna consciente de si mesmo... e busca um político que seja capaz de captar as suas necessidades".
A entrevista é de Elena Llorente, publicada por Página/12, 26-03-2017. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
Ser mulher e teóloga é algo bastante estranho na Igreja Católica. Era muito mais há algumas décadas. Agora, especialmente nos países da Europa e dos Estados Unidos, as teólogas mulheres conseguiram um lugar semelhante ao de seus colegas do sexo masculino e participam junto a eles em organizações, como a Catholic Theological Ethics in the World Church (Teologia Ética Católica na Igreja Mundial) que se ocupa de difundir a teologia ética no mundo. A argentina Emilce Cuda é uma delas. Cuda é membro desta rede internacional de teólogos. É doutora em Teologia Ética pela Universidade Católica Argentina, onde agora trabalha como professora. Também leciona na Faculdade de Filosofia da Universidade de Buenos Aires e na Universidade Arturo Jauretche, e trabalha como professora convidada em algumas universidades dos EUA, incluindo o Boston College e a Universidade Northwestern.
Cuda, juntamente a seus colegas da rede de teólogos, veio a Roma para apresentar ao Papa Francisco o próximo congresso mundial da organização - que contará com 1.500 teólogos de todo o mundo - a ser realizado em 2018 na cidade bósnia de Sarajevo. Embora alguns conferencistas não possam participar por conta de sua idade, participarão dessas conferências teólogos como o venezuelano Pedro Trigo, o peruano Gustavo Gutiérrez ou o argentino Juan Carlos Scannone, considerados alguns dos fundadores da Teologia da Libertação. Emilce Cuda dedica-se especificamente à Teologia e Política e acaba de publicar um livro sobre esta temática: “Para leer a Francisco. Teología, ética y política” (Ed. Manantial).
Eis a entrevista.
O que significa ser uma teóloga ética especializada na política?
Muitas pessoas confundem teologia com catequese, acreditando que os teólogos são catequistas. A teologia é como a medicina. Há especialidades. Os estudiosos da Bíblia, os dogmáticos, os moralistas. Nos encarregamos da ética. O estudo da política está no campo da teologia ética. O teólogo pode falar de Deus em si mesmo ou pode falar sobre a obra Dele, que é o mundo, o homem e seus problemas, sendo este último a ética. Não nos interessa a política como um meio de acesso ao poder. Estamos interessados em todos os atos do homem e da história humana, que ao invés de favorecer a libertação do homem, colabora para a sua escravidão.
Foi difícil para você estudar teologia em um universo principalmente dominado por homens e conseguir galgar posições?
A teologia estudada por mulheres é uma coisa relativamente nova, mas não é algo apenas do século XXI. Estudei na Pontifícia Universidade, nos anos 80. Uma mulher poder estudar teologia na faculdade pontifícia, onde apenas sacerdotes estudavam, foi uma coisa muito especial. Além disso, era necessário obter uma permissão especial. Quando eu estudava, éramos somente duas mulheres no curso. Agora já é algo mais livre. Mas continua a ser uma carreira pouco comum na Argentina. Galgar posições foi tão difícil quanto demanda para qualquer pessoa escalar posições nas universidades públicas laicas. Meu diploma é reconhecido pelo estado argentino e pelo Vaticano. Mas apenas recentemente consegui adentrar na universidade pública, pois não aceitavam-me por ser teóloga.
Quais temáticas políticas você tem analisado em seus estudos até agora?
Minha tese de doutorado foi sobre a relação do catolicismo e da democracia nos Estados Unidos e nela descobri a grande influência que os bispos jesuítas irlandeses tiveram entre os trabalhadores irlandeses que eram explorados, conjuntamente ao nascimento da república norte-americana. Então comecei a estudar o populismo, especialmente na Argentina e no Brasil. Estudei vários anos com o filósofo argentino Ernesto Laclau e apresentei minhas pesquisas nos congressos que realizamos pela rede de Teólogos, assim como outros apresentaram o papel das "maras" (gangues latino-americanas nascidas nos Estados Unidos, que mais tarde se transladaram para a América Central), que são grupos completamente impermeáveis a partidos políticos e à Igreja.
O que significou o populismo na Argentina e no Brasil?
Populismo é uma palavra complexa que nos últimos tempos se tornou sinônimo de corrupção. Porém, isso é um erro, pois é possível haver corrupção em qualquer formato político, em uma monarquia, uma república, etc. A primeira coisa que precisa ser esclarecida é que o populismo não é sinônimo de corrupção. Em consonância com o pensamento de Ernesto Laclau, pode-se dizer que o populismo é uma nova forma de política, onde, por um lado, o povo toma consciência de si mesmo a partir da articulação de demandas insatisfeitas, e por outro, a existência de uma figura política que é capaz de captar essas necessidades, que podem ser necessidades populares, como no caso do Brasil e da Argentina, ou podem ser um conjunto de interesses particulares, como no caso dos Estados Unidos. Quando o papa diz que todos os populismos são diferentes, ele está precisamente querendo expressar isso. Alguns pensam que um governo é populista porque satisfaz as demandas dos setores populares. Por isso eles acreditam que Perón, em 1945, era populista. É necessária uma distinção entre governos populares, isto é, os governos que estão a favor dos trabalhadores, e os governos que são conhecidos por sua estrutura populista. Não podemos dizer que o governo de Perón, em 45, tenha sido populista. Foi uma democracia a favor de setores populares, que chegou ao poder pelo apoio de um partido político e do movimento operário.
E Trump é populista?
Trump não chegou ao poder por fazer parte de um partido político ou pelo apoio de organizações sindicais. Ele chega ao poder porque capta e articula as demandas populares insatisfeitas em seus discursos. Claro que é populista, porque o populismo foi o método utilizado para ascender ao governo. Não importa qual setor satisfaça, seja a direita ou a esquerda. No caso da Argentina, Macri também utiliza uma estrutura populista. Ele não chega ao governo através de um partido, mas graças ao agrupamento de alguns setores. Ele não ascende com uma plataforma, com um projeto. Ele ascende apenas acusando o governo anterior e surgindo em uma posição antagônica. Macri é tão populista quanto Trump.
E no caso do Brasil?
O caso do Brasil foi debatido entre teólogos que destacaram uma nova questão: os golpes jurídicos. Se pensarmos na história latino-americana, em geral, a direita não chegou ao poder através de eleições, mas através de golpes de estado. Assim, uma forma de tomar o estado são os chamados golpes brandos, ou seja, os golpes jurídicos. Além disso, no Brasil, eles chegam ao poder acusando seus inimigos de corrupção. Mas, na realidade, todos são acusados de corrupção, tanto de um lado quanto de outro.
Como você descreveria a papado de Francisco?
Alguns pensam que o Papa Francisco está quebrando todas as tradições da Igreja, mas não é bem assim. É uma continuidade no melhor dos sentidos. Ele está retornando aos princípios fundamentais do cristianismo, para a importância do homem, do seu sofrimento, do perdão. Ele tem um discurso contemporâneo, ameno e simples. Todos podem entendê-lo. Antes as encíclicas foram quase incompreensíveis para as pessoas em geral. Agora, não há lugar para dúvidas, pois o papa é plenamente claro.
As duras críticas que certos setores conservadores fazem poderiam afetar a sua estabilidade?
Como em qualquer instituição, há oposição. Mas quem tenha conquistado a legitimidade popular, é muito difícil de ser derrubado. O papa conseguiu um consenso mundial incrível. Ele está na imprensa todos os dias pelas coisas que diz. Por mais que ele tenha adversários, também é verdade que tem grande legitimidade, não só entre os católicos, mas entre os não-católicos. Ele goza de um consenso global.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
"O papa tem um discurso contemporâneo". Entrevista com Emilce Cuda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU