30 Agosto 2017
“Não se pode dizer que o Brasil não tem recursos: só de juros da dívida, são no mínimo 400 bilhões de dinheiro público que é transferido por ano para os mais ricos. Se os juros fossem 0% - como em vários países desenvolvidos -, haveria 400 bilhões para investir em saúde, educação, transporte, saneamento e ainda sobraria”, escreve Ivo Lesbaupin, sociólogo, professor da UFRJ, coordenador da ONG Iser Assessoria.
Segundo ele, “não adianta esconder que este mesmo ajuste fiscal foi iniciado pelo governo Dilma, que a recessão que estamos vivendo foi piorada pelo governo Temer, mas começou lá. O desemprego cresceu em 2015, 2016 e este ano: suas raízes estão no ajuste fiscal, iniciado por Dilma e aprofundado por Temer”,
“O governo e boa parte da esquerda - constata o sociólogo -não entendeu o recado das ruas em junho de 2013. Lá estava a reivindicação por transporte, por melhor saúde, por melhor educação, contra os gastos excessivos na Copa do Mundo em detrimento de melhores políticas sociais. As ruas explodiam por reivindicações às quais o governo não estava atento. Ao invés de reagir atendendo as estas reivindicações, boa parte da esquerda preferiu acusá-las de "armação da direita". Como tem feito até hoje, negou as críticas”.
Nos últimos tempos, o que estamos vivendo é a dominação por parte do grande capital (banqueiros e rentistas – empresários – ruralistas) sobre todas as coisas: sobre a maioria do Congresso, sobre a legislação (aprovação de leis favoráveis ao capital), sobre as terras, sobre os povos indígenas, sobre o meio ambiente, as privatizações, a entrega do petróleo (inclusive do pré-sal).
Nossa resistência só conseguiu, até agora, impedir a reforma da Previdência. No mais, o governo ilegítimo e totalmente desmoralizado (apenas 5% da população o aprova), tem conseguido aprovar, a toque de caixa, todas as leis que propõe.
O retrocesso é impressionante:
Nos direitos trabalhistas, estamos recuando cem anos, voltando aos anos 1920, antes de Getúlio Vargas;
Nos direitos sociais, trata-se de um retorno à Constituição da ditadura civil-militar (1969);
Nos direitos ambientais, é a volta à ditadura;
Quanto aos povos indígenas, é a reedição da política indigenista da ditadura (caracterizada pela afirmação "o índio não pode prejudicar o progresso do país"): o direito de tomar suas terras, agredir, reprimir e matar índios está liberado.
Não estamos numa democracia, as leis que defenderiam a maioria dos cidadãos – a Constituição de 1988 – não valem, são constantemente derrubadas em favor da minoria dominante, o 1% mais rico.
A situação atual resulta do desrespeito ao processo democrático pelo impeachment da presidente sem que houvesse crime de responsabilidade: ele representou o desprezo ao voto popular. Não adiantou uma candidata ter tido 54 milhões de votos, os que se opunham a ela tiraram-na do poder. Daí para a frente, desprezar o processo democrático se tornou corriqueiro, as leis são ignoradas, os juízes fazem o que querem, são dois pesos e duas medidas a todo momento...
As chacinas no campo – contra trabalhadores, contra indígenas – se sucedem; nas periferias urbanas, também. É como se tivesse sido baixado um decreto de que a violência policial está permitida, a violência contra os "inimigos" (trabalhadores, povos indígenas, jovens da periferia, juventude negra). Não é simplesmente que a formação policial da ditadura não foi superada, é que o "espírito" próprio da polícia sob a ditadura foi restabelecido. A polícia sabe que seus crimes ficarão impunes, que serão defendidos e mesmo comemorados.
As leis não são cumpridas, as instituições não funcionam: algumas lideranças, algumas pessoas, um partido, são investigadas e perseguidas sistematicamente, com ampla exposição na grande mídia, outras são protegidas. Sem que qualquer instância superior questione os métodos adotados, as arbitrariedades e ilegalidades cometidas (vazamentos seletivos, divulgação de gravações, denúncias públicas contra pessoas que, em muitos casos, são posteriormente revogadas, com evidentes prejuízos morais para os envolvidos, prisões prolongadas para motivar delações, etc.).
É verdade que as últimas delações atingiram outros partidos e o próprio governo, mas seus efeitos foram rapidamente apagados.
O STF, guardião último da Constituição, tem se caracterizado pela omissão, a começar pelo próprio impeachment, ao se recusar a definir se "pedalada fiscal" era crime de responsabilidade. Evitaram se comprometer e deixaram o Congresso decidir sozinho, para possibilitar o impeachment de Dilma.
Nos julgamentos, não há garantia nenhuma que a jurisprudência seja seguida: as decisões são tomadas segundo as conveniências políticas do momento. Isto se verificou no julgamento do TSE sobre a chapa Dilma-Temer. Isto se viu anteriormente no caso de Renan Calheiros quando presidente do Senado. O STF havia decidido que um réu não poderia estar na linha de sucessão do presidente da República e, duas semanas depois, quando Renan não quis cumprir a ordem de deixar a presidência do Senado, o mesmo STF permitiu que Renan continuasse no seu posto.
Não há mais regras claras, quem tem poder faz o que quer. Há uma completa desmoralização deste órgão superior de Justiça.
É sabido que, no Congresso – tanto na Câmara quanto no Senado –, a maioria está aprovando projetos de lei com votos comprados, isto é, através de corrupção, suborno, propina. A grande mídia denuncia a compra de votos. Mas esta corrupção, presente, atual, aos olhos de todos, não é investigada.
Os projetos de lei sequer são debatidos, são votados em bloco, como se fosse uma "linha de montagem". Leis que vão mudar radicalmente políticas públicas essenciais para os próximos anos ou décadas – como saúde, educação, trabalho - são votadas e aprovadas sem debate com a sociedade que será gravemente afetada por estas mesmas leis.
Nós estamos num Estado de Exceção.
A pergunta que nos fazemos é: por que se fez uma campanha cerrada pela derrubada da presidente eleita por 54 milhões de votos e a reação popular foi tão pequena? Quem protestou contra este processo foram os movimentos organizados, mas a massa da população (a maioria de seus eleitores) esteve ausente: não estava de acordo, mas também não saiu a defender a presidente.
Primeiro fator: o estelionato eleitoral. A presidente, eleita depois de uma campanha eleitoral dura, e que ganhou graças à intervenção maciça dos movimentos sociais em seu favor nas últimas semanas, optou, no dia seguinte às eleições, por fazer o programa econômico do adversário: o ajuste fiscal. Ela o fez para conseguir as boas graças do "mercado", e com isso abandonou o voto dado por seus eleitores.
Não se pode dizer que a presidente não foi alertada para a gravidade desta opção. Nas primeiras semanas após as eleições, vários economistas de esquerda advertiram Dilma dos riscos em que jogaria o país se adotasse o ajuste fiscal. Mostraram que ela repetiria os erros das políticas de austeridade europeias, com recessão e aumento do desemprego. Apontaram outros caminhos possíveis para tirar o país da grave situação em que se encontrava, ofereceram um programa alternativo.
O governo não cedeu, adotou o ajuste fiscal e as consequências foram se sucedendo exatamente como previsto.
A direita, apesar de estar satisfeita com o programa econômico implementado, aproveitou para denunciar o estelionato eleitoral e mostrar a incoerência da presidente: usou a grande mídia para desmoralizar o governo.
Daí em diante, mesmo percebendo o caminho antidemocrático seguido pelas manifestações de setores da classe média, pela grande mídia, pelo parlamento, as massas não reagiram. Não havia motivação para defender o governo que estava aplicando as políticas que lhes eram contrárias.
Esta é uma das razões pelas quais os eleitores de Dilma não foram às ruas para defendê-la.
Desde o início dos governos Lula-Dilma, o que ocorreu foi um estelionato eleitoral. É verdade que a Carta ao Povo Brasileiro (junho de 2002) já fazia prever uma mudança de rumo nas promessas feitas pelo candidato Lula. Mas a mudança foi mais longe: a política econômica do governo Lula, seguida no essencial pelo governo Dilma, foi de atendimento aos interesses do capital financeiro. Ela era centrada no pagamento da dívida pública e de seus juros, o que favorecia o 1% mais rico da sociedade: no orçamento público realizado, a cada ano aumentava a proporção dedicada à dívida, de 35% a 45%. Nestes 13 anos, a taxa de juros real esteve sempre entre as mais altas do mundo, mesmo nos períodos em que a taxa nominal baixou. Os juros aumentaram de 200 bilhões de reais nos primeiros anos até 500 bilhões em 2015.
É inegável que o governo Lula e, depois, o governo Dilma, implementaram políticas públicas que melhoraram muito a situação dos mais pobres e dos trabalhadores: a política de valorização do salário-mínimo, o Bolsa-Família, os programas de Farmácia Popular, o Luz para Todos, o programa de construção de cisternas no semiárido, o Minha Casa Minha Vida e muitas outras coisas. Estas políticas retiraram da miséria 30 milhões de brasileiros e melhoraram a renda dos trabalhadores, permitindo uma capacidade de consumo que há décadas não tinham. Houve políticas muito boas, é preciso reconhecer.
Porém: a parcela dos recursos públicos que foi para os ricos foi muito maior do que aquela para os pobres. Os lucros dos bancos nos governos Lula-Dilma foram maiores que durante o governo FHC.
O que permitiu os pobres ganharem ao mesmo tempo que os ricos foi a situação econômica mundial e o aumento do valor dos bens de exportação, as commodities – uma situação que não existe mais.
Os grandes beneficiários nos governos Lula-Dilma foram, em primeiro lugar, o capital financeiro (bancos e rentistas), as empreiteiras e o agronegócio. O PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), com vários megaprojetos de hidrelétricas a serem construídas na Amazônia, foi a felicidade das empreiteiras – como as revelações da Lava-Jato estão permitindo comprovar. Jirau, Santo Antônio, Belo Monte, foram pagamento de doações para as campanhas eleitorais por parte da Odebrecht, OAS, Camargo Correia, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão. Basta examinar quem foram os maiores doadores das campanhas de 2006, 2010 e 2014 para ver que elas estão em primeiro lugar, junto com os bancos e o agronegócio.
Os povos indígenas foram vítimas dos governos Lula-Dilma, mesmo reconhecendo que "Raposa Serra do Sol" (terra indígena em Roraima) foi homologada por Lula. A construção das hidrelétricas - a maior das quais foi Belo Monte, no rio Xingu -, resultaram no genocídio de várias etnias indígenas, além da população ribeirinha. Não adiantaram as mobilizações dos atingidos, dos povos indígenas das regiões visadas, das Igrejas: tanto o governo Lula quanto o governo Dilma foram insensíveis a suas reivindicações.
O discurso era "energia elétrica para o povo pobre". Porém os bem informados sabiam que o objetivo era atender às empreiteiras e às empresas que queriam se instalar na Amazônia (alumínio, mineração, etc.).
Cabe observar que o mesmo governo que falava da necessidade de hidrelétricas para gerar energia nada fez para desenvolver a energia solar num dos países mais ensolarados do mundo, que é o Brasil: o investimento é menos de 10% do que investem Alemanha, China e Espanha, para citar apenas três exemplos.
Temos denunciado vigorosamente a política de ajuste fiscal (“austeridade”), que retira direitos da maioria, dos trabalhadores, dos mais pobres e transfere recursos públicos (de todos, portanto) para a camada mais rica da sociedade, o 1% já privilegiado.
Não se pode dizer que o Brasil não tem recursos: só de juros da dívida, são no mínimo 400 bilhões de dinheiro público que é transferido por ano para os mais ricos. Se os juros fossem 0% - como em vários países desenvolvidos -, haveria 400 bilhões para investir em saúde, educação, transporte, saneamento e ainda sobraria.
Não adianta esconder que este mesmo ajuste fiscal foi iniciado pelo governo Dilma, que a recessão que estamos vivendo foi piorada pelo governo Temer, mas começou lá. O desemprego cresceu em 2015, 2016 e este ano: suas raízes estão no ajuste fiscal, iniciado por Dilma e aprofundado por Temer.
Não podemos esquecer que o Ministro da Fazenda do atual governo, Henrique Meirelles, foi, durante 8 anos, o presidente do Banco Central no governo Lula, garantindo a prioridade dos interesses do capital financeiro.
O atual governo – embora impopular e desmoralizado – está defendendo uma reforma da Previdência prejudicial à maioria dos cidadãos. Mas cabe lembrar que o governo Lula fez, no primeiro ano de governo, a reforma da previdência do setor público, aquela mesma que Fernando Henrique não conseguira fazer, porque os movimentos sociais e o PT daquele tempo impediram. E Dilma estava preparando um projeto de reforma da previdência que o Ministro Nelson Barbosa não se cansou de anunciar.
Então, nós estamos diante de um governo de direita, que está levando a seu extremo as políticas neoliberais, mas várias destas políticas foram feitas nos governos Lula-Dilma, embora de forma mais lenta e menos agressiva. Banqueiros e rentistas nunca ganharam tanto como nestes 13 anos, graças à centralidade do papel da dívida pública nestes governos, dando continuidade à política econômica de FHC. O “fator previdenciário”, uma medida introduzida pelo governo FHC e prejudicial para os trabalhadores, foi mantido por Lula e por Dilma. Caiu por obra da oposição, contra a vontade de Dilma.
As privatizações que, antigamente, permitiam distinguir o PT do PSDB, foram retomadas nos governos Lula e Dilma, tanto de portos, aeroportos, rodovias e ferrovias como os leilões de petróleo, inclusive de áreas do pré-sal (governo Dilma).
A diferença é que, nestes governos, houve uma preocupação também pelos mais pobres, pelos trabalhadores, na política do salário-mínimo, no Bolsa-Família, entre outras coisas, que permitiram que os pobres também ganhassem e não apenas os ricos.
A Reforma Agrária – pela qual os trabalhadores lutam desde a década de 1950 -, não foi feita, nem pelo governo Lula nem pelo governo Dilma, porque o agronegócio era aliado do governo e elemento central da política de exportações.
Quanto aos movimentos sociais, a preocupação do governo Lula era que continuassem como seus apoiadores, mesmo percebendo que suas principais reivindicações não eram atendidas. O governo manteve uma busca permanente de cooptação, atendendo a necessidades imediatas, não a suas demandas por reformas estruturais. Era preciso convencê-los de que ou apoiavam ou fariam o “jogo da direita".
Portanto, a maior parte dos movimentos sociais manteve seu apoio aos governos do PT, apesar de saberem que atendiam em primeiro lugar aos interesses dos grandes grupos econômicos.
O governo Lula enfraqueceu os movimentos sociais, contribuiu para que abandonassem as lutas pela transformação social em troca de resultados mais imediatos. Quem leu os manifestos e as tomadas de posição de vários movimentos sociais nos últimos anos, pode observar que, na maioria deles, está ausente a defesa dos povos indígenas (porque colocaria em xeque os megaprojetos governamentais de hidrelétricas), assim como a exigência de “Auditoria da Dívida Pública” (porque questionaria a submissão aos interesses do capital financeiro).
Os escândalos de corrupção a que assistimos nos últimos anos têm uma raiz: é o esforço que o governo faz para ter maioria no Congresso, para ter o que é chamado de “governabilidade”. Ter maioria para poder aprovar seus projetos, para levar à frente seu projeto de poder, para ter apoio para seus candidatos, para eleger aqueles que indicar. Neste processo, “os fins justificam os meios”, vale tudo: o governo faz as alianças que julga necessárias para alcançar seus fins, pouco importa o caráter pouco ou nada ético dos compromissos assumidos. Passam para trás os compromissos assumidos com os movimentos sociais, de construir algo novo no país, passam para a frente os interesses da velha política.
Aqui se jogou fora toda a história de ética exigida por um novo modo de fazer política (o PT era “um partido diferente dos outros”), se jogou fora a campanha pela “ética na política”, liderada pelo saudoso Betinho nos anos 90. Jogou-se fora “o modo petista de governar”, que implicava inversão de prioridades, participação popular e ética, e temos muitos exemplos significativos de coerência dos primeiros tempos do PT, tanto de parlamentares quanto de governantes, como foi o caso da gestão de Luiza Erundina, em São Paulo e Olívio Dutra, em Porto Alegre.
A aliança com Sarney – do mesmo modo que com Romero Jucá, Jader Barbalho, Renan Calheiros, Collor e Maluf – se justificava para garantir a “governabilidade”. Mas ela implicou, da parte do governo, abandonar muitas das promessas feitas a seus eleitores.
Seu modo de agir sinalizou para todos, especialmente para os jovens, que a única política possível é esta, feita à base da barganha, do “toma-lá-dá-cá”.
A aceitação deste argumento – a “governabilidade” – levou à aceitação de toda sorte de práticas, comuns aos partidos tradicionais (desde “caixa 2” até outras), concessões tantas que, ao final, já não se reconhecia mais o PT das origens e, certamente, não era mais um partido “dos trabalhadores”.
Não houve reforma política porque o governo já se dava muito bem com o sistema tradicional, caracterizado pelo “balcão de negócios”. Não era mais necessário mudar o modo de fazer política, porque se conseguia fazer política daquele jeito antigo de fazer.
Não era preciso a democratização dos meios de comunicação, porque era possível lidar com a grande mídia, com a Globo, de forma favorável. O que permitiria desconfiar que, se a grande mídia aprovava as políticas do governo, é porque elas atendiam, em boa parte, a seus interesses.
Em suma, o partido que veio para mudar se transformou num partido igual aos outros.
E vários movimentos sociais de maior alcance nacional e maior peso, ao invés de serem questionadores das políticas de direita seguidas pelo governo, acabaram se tornando sua base de apoio.
Até junho de 2013, com 70% de aprovação popular, o governo se dava ao luxo de desprezar os protestos de minorias. Assim, ignorou as reações de movimentos contra a construção das hidrelétricas na Amazônia, contra a transposição do rio São Francisco, contra os investimentos insuficientes em saúde e em educação, contra o desprezo pela grave situação carcerária e assim por diante. Neste mês, explodem manifestações em favor de um transporte digno (passe livre) que, em virtude da forte repressão, se ampliam e alcançam todo o país.
O governo e boa parte da esquerda não entendeu o recado das ruas. Lá estava a reivindicação por transporte, por melhor saúde, por melhor educação, contra os gastos excessivos na Copa do Mundo em detrimento de melhores políticas sociais. As ruas explodiam por reivindicações às quais o governo não estava atento. Ao invés de reagir atendendo as estas reivindicações, boa parte da esquerda preferiu acusá-las de "armação da direita". Como tem feito até hoje, negou as críticas. Dos cinco pactos propostos pelo governo Dilma para responder ao clamor das ruas, o primeiro era para acalmar o mercado, para atender às elites (pacto por responsabilidade fiscal, estabilidade da economia e controle da inflação).
Ao invés de assumir publicamente suas falhas e dar um exemplo de governo comprometido com a maioria - os trabalhadores, as classes populares -, seguiu em frente, acertou-se com o Congresso. E preparou medidas para aumentar a repressão. Neste ano, não conseguiu, mas dois anos depois, a presidente Dilma assinou a Lei Antiterrorismo, pouco antes de sofrer o impeachment.
Foram importantes as conquistas do Bolsa Família, o resgate de milhões de pessoas da miséria, mas Junho mostrou que a sociedade exigia mais, eram necessárias mudanças estruturais que fossem materializadas em serviços públicos de qualidade. No entanto, a esquerda não quis ouvir essa voz. Ao invés de aproveitar o impulso para promover mudanças, jogou Junho nos braços da direita.
Podemos elencar os aspectos positivos do governo Lula
- Houve um aumento real do salário-mínimo (de 74%, entre 2003 e 2010);
- a taxa de desemprego diminuiu (de 19% para 11,9%) e o número de empregos formais cresceu;
- o atendimento à rede de energia elétrica aumentou (“Luz para Todos”);
- o acesso à educação melhorou, inclusive o acesso à universidade por parte dos mais pobres;
- o Bolsa-Família atingiu a 50 milhões de pessoas (12 milhões de famílias);
- o mercado interno (o consumo das famílias) aumentou;
- o combate ao trabalho escravo se tornou mais sistemático (foram libertados 33 mil trabalhadores entre 2003 e 2010);
- as operações da Polícia Federal tiveram um enorme incremento (216 operações entre 2003 e 2010) e, pela primeira vez no Brasil, atingindo indivíduos ricos;
- houve a revalorização do Estado (funcionalismo, universidades públicas, etc.);
- valorizou-se a liberdade de ação dos órgãos de controle social (Ministério Público, Polícia Federal, CGU, STF);
- a política externa se tornou mais independente;
- após a crise econômica mundial de setembro de 2008, para evitar o aumento do desemprego, o governo mudou a política econômica, abandonando alguns dogmas neoliberais .
Tudo isto evidencia que houve melhorias efetivas para o conjunto da população, especialmente a população mais pobre.
Estas políticas diferenciaram o governo Lula do governo anterior (FHC): neste sentido, pode-se dizer que ele não foi simplesmente a cópia do governo anterior. Na comparação, há várias iniciativas positivas. Além do mais, houve uma mudança importante do governo Lula do primeiro para o segundo mandato: a atuação do Estado para promover a atividade econômica, rompendo com o princípio neoliberal de não intervenção do Estado na economia.
Porém, todas estas diferenças não mexem no fundamental. No essencial, a opção deste governo foi feita desde o começo e não mudou: a política econômica foi centrada nos interesses do capital financeiro, no atendimento dos interesses das empreiteiras (transposição, hidrelétricas, obras do PAC), dos grandes proprietários de terra vinculados à exportação (agronegócio).
É só olhar a diferença no orçamento, entre o que foi para o pagamento dos juros da dívida e o Bolsa-Família:
200 bilhões por ano, no mínimo (em 2008, foram 282 bilhões; em 2009, 380 bilhões; em 2015, 500 bilhões), para os banqueiros e rentistas (que não chegam a 1 milhão de pessoas);
27 bilhões para o Bolsa-Família (cerca de 50 milhões de pessoas) – em que o valor máximo é 350 reais por família por mês.
Frente ao descalabro da política nacional, das ilegalidades cometidas por Temer e seu governo, das concessões à bancada ruralista, da distribuição de benefícios aos parlamentares para se manter no poder, apesar de tudo isso, não há manifestações de protesto à altura.
Houve reações até um determinado momento, em março, abril e maio deste ano. Mas, depois disso, arrefeceram. É possível que as pessoas, percebendo a ineficácia de seus esforços, tenham se cansado e desistido de ir às ruas. (Sem contar que a forte repressão desanimou as pessoas...).
A maior parte da população, as massas, se mantiveram ausentes. Estão atordoadas com o que está ocorrendo – o golpe, as medidas antipopulares que estão sendo aprovadas em ritmo acelerado, o desemprego atingindo ou ameaçando a todos/as.
Provavelmente, não acreditam piamente na grande mídia ou, pelo menos, desconfiam da versão dada por ela. Por outro lado, houve o fato de que o governo que representava o lado deles, dos trabalhadores, se mostrou indigno de confiança (ajuste fiscal, medidas impopulares, recessão, estelionato eleitoral).
Mesmo Lula, que é a liderança ainda respeitada pela maioria, perdeu parte do seu encanto em razão das sucessivas denúncias de corrupção (desde o "mensalão" até o "petrolão"), alardeadas pela grande mídia. Mesmo que nem todos acreditem na campanha mediática contra Lula, algo do que foi denunciado ficou.
É verdade que faltam alguns instrumentos importantes: os partidos políticos, que foram impulsionadores da campanha das Diretas Já em 1984, não representam mais nada hoje. O PT, embora tenha recuperado um pouco de seu brilho, não é mais símbolo de mudança.
O esforço permanente de esvaziamento da capacidade crítica dos movimentos sociais por parte dos governos Lula e Dilma levou a uma “desidratação” dos mesmos (veja-se a fraca atuação da CUT, da UNE – e mesmo do MST -, por exemplo, durante os governos Lula-Dilma).
Tudo isso pode explicar a ausência das massas nas ruas até o presente momento.
Há, porém, brasas embaixo das cinzas. Há um acúmulo de indignação, de desejo de protestar na grande maioria das pessoas. Falta pouco para esta raiva explodir, mas não sabemos quando nem onde nem o que provocará esta explosão. Porém, ela virá, mais cedo ou mais tarde. Em muito pouco tempo, menos de três anos, a situação da população trabalhadora, dos mais pobres, se deteriorou: desemprego, demissões, baixos salários, precarização, perda de renda, perda de moradia, perda de planos de saúde, aumento da população de rua. Ao mesmo tempo, os ricos ficaram mais ricos. E o governo gasta milhões para garantir a continuidade de seu apoio no Legislativo e no Judiciário.
Isto vai ter consequências, mais cedo ou mais tarde.
Precisamos construir uma saída para esta situação. Hoje, não apenas há um governo ilegítimo que tomou o lugar do governo eleito: este governo está fazendo aprovar em pouco tempo – sem discussão com a sociedade - uma nova constituição, um conjunto de leis que desmontam o Estado que tínhamos anteriormente. O programa que está sendo implementado é o programa de governo que foi derrotado nas eleições de 2002, 2006, 2010 e 2014. A legislação trabalhista foi derrubada, a Constituição Cidadã foi rasgada, os recursos para as principais políticas públicas – saúde, educação – estão sendo cortados. E os recursos tirados dos mais pobres estão indo para os mais ricos.
Precisamos, em primeiro lugar, denunciar esta situação: o desmonte do Estado, o golpe na democracia.
Só há um meio de sermos ouvidos: as ruas. Sim, temos meios de nos fazermos ouvir: a comunicação via meios alternativos, via redes sociais. Mas não podemos parar na comunicação digital: temos de nos fazer presentes, fisicamente presentes.
E temos de nos organizar: nos bairros, nas escolas, nas universidades, no campo, nas cidades, nas aldeias. Discutir o que estamos vivendo, pensar coletivamente saídas, montar estratégias. Este trabalho dos pequenos grupos, das associações, das articulações, parece pouca coisa, mas é ele que vai embasar as grandes mudanças: o grande nasce do pequeno. Sem este trabalho de base, não se criam as raízes para as mobilizações.
Precisamos discutir o Brasil que queremos, elaborar um Projeto de Brasil. Não basta eleger um candidato: precisamos definir o que queremos que se faça, o programa de governo, qualquer que seja o governante.
Queremos, para começar, que todas as medidas que foram votadas depois do impeachment da presidente (agosto de 2016), sejam submetidas a referendo popular. Elas só podem ser validadas depois de julgadas pela população, pelos cidadãos e cidadãs. Porque elas foram aprovadas por um Congresso constituído em boa parte por suspeitos de corrupção e em sua maioria por votos comprados. Portanto, estas leis não têm valor: são fruto da corrupção, da propina, do suborno.
Qualquer candidato que se apresente para nos representar tem de se comprometer com este programa.
Estamos vivendo um momento difícil, de muitos retrocessos, de muitas derrotas. Mas as coisas não vão permanecer assim, nós vamos mudá-las: lentamente, de baixo para cima, do pequeno para o grande, de poucos para muitos, nós chegaremos lá.
“Não temais os que podem matar o corpo, mas não têm poder para matar a alma”. Eles não podem matar a esperança.
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Uma ponte para o passado: como chegamos até aqui? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU