03 Julho 2017
É fácil explicar a saída do cardeal alemão Gerhard Müller da Congregação para a Doutrina da Fé como uma purga ideológica, mas existem várias inconsistências nessa perspectiva, incluindo o fato de que o seu substituto não é nenhum progressista como seria o esperado.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 02-07-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Visto a maneira como o cardeal alemão Gerhard Müller acabou sendo identificado, no Vaticano, como o principal cético da abertura cautelosa do Papa Francisco referente à Comunhão para fiéis divorciados e recasados no civil, abertura presente em Amoris Laetitia, estava escrito nas estrelas que, quando e se Müller fosse substituído na presidência da Congregação para a Doutrina da Fé – CDF, esta troca seria vista como uma retaliação papal.
Em alguns círculos, foi exatamente assim que a notícia acabou sendo recebida, quando o pontífice nomeou o arcebispo espanhol Luis Ladaria Ferrer, também jesuíta, para assumir o lugar do prelado alemão.
Antes de nos deixarmos levar por esta linha de raciocínio, há alguns aspectos que precisamos levar em consideração.
Em primeiro lugar, em 2 de julho, Müller chegou ao final do período de cinco anos para o qual fora nomeado pelo Papa Bento XVI em 2012. É verdade: mandatos desse tipo podem ser estendidos por vontade do papa, mas o ponto é que não é totalmente verdadeiro dizer que Müller fora “demitido”. O seu trabalho estava feito, e coube ao papa decidir nomear alguém para o cargo.
Em segundo lugar, embora inegavelmente tenha uma postura mais restritiva com respeito às implicações de Amoris Laetitia do que muitos outros, Müller dificilmente pode ser considerado um inimigo implacável do papa. Por exemplo, lembremos dos bispos de língua alemã, durante o segundo Sínodo sobre a família, que firmaram o compromisso de alcançar a unanimidade em torno das recomendações que iriam propor, e Müller fez parte deste consenso.
Lembremos também que Müller é pessoa próxima da Igreja latino-americana, inclusive tendo uma amizade pessoal de longa data com Gustavo Gutiérrez, um dos pais da Teologia da Libertação. Em 2014, Gutiérrez e ele apareceram juntos em Roma num evento organizado pelo Vaticano, juntamente com o Cardeal Oscar Rodriguez Maradiaga, o que foi amplamente interpretado como uma cura histórica de velhas feridas entre o Vaticano e a ala progressista da Igreja latino-americana. Müller igualmente apoiou a causa de beatificação do famoso mártir Oscar Romero, de El Salvador, causa tão cara ao Papa Francisco.
Em outras palavras, mesmo se Francisco estivesse agindo com base em fatores ideológicos, não está claro em que lado Müller se encontraria.
Em terceiro lugar, Ladaria não é um “progressista”, como era de se esperar.
Em 2008, foi nomeado por Bento XVI para ser a autoridade número dois dentro da CDF, e obviamente este ex-prefeito da Congregação não nomearia para um tal cargo alguém que considerasse suspeito em termos doutrinários. Como Bento, Ladaria é uma pessoa de “ressourcement”, isto é, procura voltar às fontes, o que é central para uma reforma genuína da Igreja. Juntamente com o companheiro jesuíta Karl Becker, importante assessor da CDF sob a liderança do Cardeal Joseph Ratzinger e, mais tarde, feito cardeal pelo próprio Papa Bento XVI, Ladaria sempre foi visto como um representante da ala conservadora dos jesuítas.
Até mesmo na questão contestada da Comunhão aos divorciados e recasados, não está claro que Ladaria representa uma ruptura drástica com o que Müller pensava. Em 2014, pouco antes do segundo Sínodo dos Bispos sobre a família, Ladaria respondeu uma carta enviada de um padre francês que perguntava sobre se poderiam ser absolvidos os católicos divorciados e que voltaram a se casar. Eis o trecho fundamental de sua resposta:
“Um divorciado que voltou a se casar não pode ser absolvido de modo válido caso não assuma a firme resolução de não ‘pecar no futuro’ e, portanto, de abster-se de atos próprios aos casais, nesse sentido fazendo tudo o que está ao seu alcance”.
Se uma plena concordância com a interpretação favorável do que se encontra em Amoris Laetitia fosse o teste final para alguém ser promovido no Vaticano, faltariam elementos para dizer se Ladaria seria aprovado imediatamente.
Em quarto lugar, mesmo se Francisco estiver afastando alguém considerado um problema para substituí-lo por alguém mais simpático, dificilmente estaremos diante de uma novidade. Os papas têm agido assim desde tempos imemoriais, incluindo todos os antecessores recentes de Francisco.
“Não há diferenças entre mim e o Papa Francisco”, disse Müller a um jornal alemão (Nota de IHU On-Line: Frankfurter Allgemeine Zeitung), insistindo que inexistiam discordâncias sobre o conteúdo de Amoris Laetitia.
“Não me incomoda”, acrescentou o sorridente cardeal de 69 anos, sobre seguir em frente. “Todos temos de nos aposentar em algum momento”, disse, acrescentando que irá permanecer em Roma.
“Vou realizar alguns trabalhos acadêmicos, continuar a exercer minha função de cardeal, e fazer o que for possível para cuidar das almas. Tenho muito a fazer”, completou.
Por outro lado, existe uma suspeita entre certos analistas de que, se a troca não teve motivos ideológicos, especialmente à luz da nomeação de Ladaria, então é pessoal: uma forma de retaliação pela afiliação de Müller com críticos do pontífice, o que inclui uma contribuição em um livro com três outros prelados que acabariam sendo os que produziram as “dubia” na véspera do segundo Sínodo dos Bispos sobre a família.
Nesse sentido, Francisco na verdade teria deixado claro que não renovar o contrato de Müller foi puramente pessoal, nomeando alguém que, no fundo, compartilha a maioria dos seus pontos de vista.
No entanto, Müller contou ao jornal alemão que, de acordo com Francisco, de agora em diante todos os chefes dos departamentos vaticanos não terão os seus contratos renovados depois de cinco anos, e que ele era apenas o primeiro caso dessa nova prática.
Um fator que pode mudar a análise em uma direção ou noutra será se as outras trocas no departamento pessoal seguirem-se antes do tempo previsto, e se estes eram, ou não, percebidos como pessoas de plena confiança de Francisco.
De qualquer forma, eu tenho um registro histórico funesto como futurologista: afinal de contas, sou a pessoa que publicou uma biografia de Ratzinger em 1999 que concluiu com quatro motivos pelos quais ele nunca seria eleito papa, e todos sabemos o que aconteceu...
Todavia, neste caso, canalizei corretamente o meu Nostradamus interior. Segunda-feira, 5 de junho, num programa de rádio semanal em que participo, Austen Ivereigh, Charles Collins e eu fizemos uma seção em que tentamos adivinhar qual seria a “surpresa de verão” que o Papa Francisco anunciaria nas semanas vindouras. Acabei prevendo que o papa substituiria Müller no final de seu mandato.
Confira aqui a prova sob o título “Qual será a 'surpresa de verão' do Papa Francisco?”.
Essa aposta, aliás, foi feita às cegas, pois eu não tinha informação alguma do que estava por vir.
Nota de IHU On-Line:
A tradução literal da canção do grupo AC/DC é ‘Noite das facas longas’.
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A saída de Müller realmente foi uma “night of the long knives” (AC/DC)*? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU