04 Mai 2017
Hoje, dia 04 de maio, será debatido o filme “Eu, Daniel Blake”, de Ken Loach. O debate será coordenado por Alfredo Veiga-Neto, doutor em Educação e mestre em Genética pela Universidade do Rio Grande do Sul – UFRGS e professor na Faculdade de Educação da mesma universidade, e por Cesar Sanson, graduado em Filosofia, mestre em Sociologia do Trabalho e doutor em Ciências Sociais pela UFPR e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. O debate ocorrerá das 17h30min às 19h, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU.
Para facilitar o debate, o Prof. Dr. Alfredo Veiga-Neto, preparou um roteiro que publicamos a seguir.
Filme inglês (2016) ― 1h 41min.
Direção: Ken Loach
Elenco: Dave Johns, Hayley Squires...
Sinopse ― Acesso em 28/fev/2017.
Após sofrer um ataque cardíaco e ser desaconselhado pelos médicos a retornar ao trabalho, Daniel Blake (Dave Johns) busca receber os benefícios concedidos pelo governo a todos que estão nesta situação. Entretanto, ele esbarra na extrema burocracia instalada pelo governo, amplificada pelo fato dele ser um analfabeto digital. Numa de suas várias idas a departamentos governamentais, ele conhece Katie (Hayley Squires), a mãe solteira de duas crianças, que se mudou recentemente para a cidade e também não possui condições financeiras para se manter. Após defendê-la, Daniel se aproxima de Katie e passa a ajudá-la.
Curiosidades ― Acesso em 28/fev/2017.
No Festival de Cannes, Ken Loach e sua equipe foram recebidos com uma ovação de 15 minutos, depois da exibição oficial do longa.
O diretor Ken Loach é o vencedor do Palme d'Or mais antigo. Em 22 de maio de 2016, quando foi premiado por Eu, Daniel Blake (2016), ele tinha 79 anos.
O filme foi filmado em ordem cronológica e a protagonista Hayley Squires não recebeu todo o roteiro para ler antes de filmar.
Trata-se do segundo Palme d’Or de Ken Loach. Ele ganhou seu primeiro prêmio em 2006, com o filme Ventos da Liberdade (2006).
Ken Loach é, provavelmente, um dos diretores que mais foi convidado para o Festival de Cannes, tendo participado pela 13ª vez na "Competição Oficial" do Festival.
Crônica sobre o filme ― Matheus Pichonelli (Carta Capital) ― Acesso em 28/fev/2017.
“Eu, Daniel Blake”: o grito de Ken Loach não previu o Brexit. Cineasta acerta na crítica à desumanização das relações, mas ela parece insuficiente para entender o triunfo das saídas populistas para a crise.
O filme tem como proposta denunciar a precarização da classe trabalhadora britânica diante de um Estado burocratizado, mecanizado, insensível – e, no limite, assassino.
Para isso, acompanha a rotina de Daniel Blake, um carpinteiro de Newcastle que sofre um infarto, fica impedido de voltar ao trabalho e entra numa espiral surreal para obter seu auxilio-desemprego junto ao governo, além de enfrentar o estigma de quem associa o benefício, um direito, a uma certa indisposição ao trabalho.
Não precisamos mover um músculo para tomar um partido entre aquele Estado insensível, cheio de burocratas incompetentes, e portanto autoritário, e o do trabalhador injustiçado.
Jamais morei na Europa e, por mais que acompanhe as notícias e converse com amigos que estão ou estiveram no Velho Continente recentemente, não poderia avaliar a proximidade do retrato pintado por Loach da realidade local.
Mas imagino, e só imagino, que um eleitor pró-Brexit, a saída do Reino Unido aprovada pelos ingleses em referendo em junho, exatamente um mês após a cerimônia em Cannes, repetiria tranquilamente algumas das premissas, ainda que justas, levantadas pelo filme.
Daniel Blake é o cidadão impotente diante de um Estado que falha em garantir sua dignidade quando ele mais precisa. Mais que isso, assiste inconformado à forma como os governos tratam, em suas baias, cartilhas decoradas e atendentes eletrônicos, cidadãos honestos como ele.
Blake não é só um sujeito das antigas, que viu o mundo mudar à sua volta e não conseguiu se adaptar (numa das cenas, ele vê pela primeira vez um mouse e tenta deslizar o equipamento sobre a tela do computador); é alguém ainda capaz de produzir e cultivar vínculos, de se sensibilizar e oferecer ajuda diante de injustiças, de lembrar aos mortos-vivos engolidos por um sistema desmoralizado e desmoralizante que ainda está vivo.
Tudo isso fica claro quando ele abre as portas da solidariedade a uma mãe abandonada por dois ex-maridos obrigada a buscar abrigo no interior com dois filhos porque o governo não ofereceu a ela nenhuma outra opção de moradia em Londres. Ela é o exemplo de um grupo social que, desamparado, não tem emprego nem tempo para se dedicar aos estudos para procurar empregos melhores.
O encontro entre a mãe solteira e o viúvo abandonado pelo governo é quase uma tentativa de restabelecimento de uma ordem familiar também sob risco, como se as peças faltantes em cada parte pudessem juntar forças e se reunir sob uma autoridade paterna até então ausente – uma autoridade que cuida, vigia, ensina, tudo o que, em tese, o governo peca em fazer.
Em entrevista ao El Pais, o cineasta afirmou: “As grandes corporações dominam a economia e isso cria uma grande leva de pessoas pobres. O Estado deve apoiá-las, mas não quer ou não tem recursos. Por isso cria a ilusão de que, se você é pobre, a culpa é sua. Porque você não preencheu seu currículo direito ou chegou tarde a uma entrevista”.
Até aqui, a crítica a este mundo desumanizado é justa, embora previsível – já na primeira cena podemos desconfiar que em algum momento esta mãe em desespero será tentada a aceitar algum atalho para sair da situação. Isso acontece a partir do convite de um homem de nome (ou cidadania, não me ficou claro) russa.
As cenas em que a mulher, cansada e faminta, tenta segurar o choro, e a forma como nos afeiçoamos a Daniel Blake, o sujeito fechado e durão que mais à frente descobriremos ter um grande coração, são uma tentativa de aproximação entre público e personagens, mas que a certa altura parece forçar a mão para nos criar empatia.
Mas a exposição ao sofrimento dos personagens não me parece o problema principal do filme. O problema principal é o recado de fundo. É como se Daniel Blake, o homem correto que luta para preservar a humanidade num período de mudanças, representasse uma integridade em perigo naquele país globalizado e conectado onde o vizinho, jovem e negro, usa seu endereço para receber e revender produtos chineses (à custa da indústria nacional, diria um cabo eleitoral conservador que se apropriaria, como se apropriou, daquela revolta para outros fins) e ninguém mais se importa em levar o cachorro para defecar no nosso quintal.
Blake, é verdade, chega a demonstrar simpatia pelo vizinho que deu um jeito de driblar o mercado local (há entre eles, aliás, uma amizade sincera), mas o pano de fundo está criado: o risco a essa “integridade” diante de governos supostamente maleáveis com os estrangeiros e suas portas de entrada mas que não reconhecem os direitos de seus cidadãos – trabalhadores, honestos e solícitos – foi determinante para que eleitores britânicos fossem seduzidos por discursos nacionalistas, anti-gobalização e, no limite, anti-imigração.
No filme, Loach parece se antecipar a um colapso prestes a ocorrer em seu quintal e se espalhar pelo mundo com uma crítica social correta, mas aparentemente insuficiente, como o foram as tentativas de compreender como a revolta contra cortes de direito, injustiças e governos despreparados resultaram em fenômenos como o Brexit, na Inglaterra, e Donald Trump, nos EUA, para não citar o impeachment em terras brasileiras.
Em sua obra, Loach se notabilizou por dar voz e protagonismo aos sujeitos injustiçados, os pequenos cidadãos que sofrem, absorvem, reagem e influenciam os grandes eventos da história. Estranha que, ao comentar o próprio filme, tenha dito que “se os pobres não aceitassem que a pobreza é sua culpa, poderia haver um movimento para desafiar o sistema econômico”. O movimento havia, mas ele acertou em outra ponta. O que não havia, talvez, era essa passividade projetada pelo diretor.
Em outras palavras, e lembrando que o filme é anterior ao referendo, em que momento trabalhadores similares a Daniel Blake foram seduzidos, na sequência, por respostas a esse colapso baseadas em propostas extemporâneas como o nacionalismo, o ódio ao estrangeiro, o fechamento de entradas e saídas em um mundo de fluxos, velocidades, conexões, compartilhamentos e diversidade. As explicações para isso, imagino, já não cabem no velho conflito entre trabalhadores e patrões, governos e cidadãos, burocratas insensíveis e humanidade surrada.
Não se pode dizer que esses conflitos que o filme tenta apontar em um modelo esquemático, quase maniqueísta, foram superados, mas sim emaranhados num mundo de fronteiras confusas e identidades (o título do filme, afinal, é a afirmação do eu, sujeito) e integridade em xeque. Daí a necessidade de buscar respostas onde as narrativas tradicionais, das quais o filme acaba fazendo parte, já não alcança.
A seguir, estão destacadas algumas cenas, com os minutos assinalados à esquerda. Certamente, pode-se encontrar várias outras passagens importantes. Alguns desses destaques atravessam o filme inteiro.
4:00 ― Daniel tem comportamentos socais “civilizados”, em contraste com seus vizinhos imigrantes. Mesmo assim, comunica-se bem com eles. Transculturalidade?
5:00 ― Daniel não é preguiçoso; ele quer trabalhar... Ele torna-se um andarilho.
8:00 ― Uma luta contra o telefone, uma “entidade anônima”, com musiquinhas maçantes e respostas automáticas, robotizadas.
13:00 ― a funcionário avisa que ele precisa fazer um acesso digital e aí começam as maiores dificuldades.
16:00 ― numa discussão com os funcionários, um deles diz que segue regras superiores. Pergunta: Quem pode decidir? Resposta: ninguém... O anonimato e o fascismo das regras burocráticas.
17:00 ― a união dos “clientes”/contribuintes representa um perigo para a ordem do sistema e para aqueles minúsculos e arrogantes funcionários.
19:00 ― de volta para casa, respira-se uma atmosfera humana e cordial (ao contrário da atmosfera belicosa da repartição pública).
24:00 ― Daniel entra em contato com uma forma totalmente flexível de subsistência: seus vizinhos praticam o contrabando de simulacros, via internet e com a distribuição espacial pulverizada e difusa. Seus vizinhos pertencem ao novo grupo dos precários (precariado).
27:00 ― o choque frontal com as novas tecnologias digitais; elas representam um choque imenso para os recém-chegados. A ironia: no formulário, Daniel assinala que é um “cidadão britânico”. Mas logo o tempo de acesso expira e, no final, Daniel não consegue completar o preenchimento. E continua sendo ninguém.
32:00 ― o diálogo entre as duas funcionárias ressalta a força da hierarquia institucional, condição necessária para o bom funcionamento da burocracia estatal.
45:00 ― o cinismo involuntário: a funcionária declara que Daniel tem liberdade de escolha; depende dele assinar um contrato com o Estado. A relação contratual e por escrito, entre o indivíduo e o Estado, é condição necessária para a sensação de liberdade do, assim chamado, cidadão.
46:00 ― toda a sequência da palestra/aula do funcionário é impactante e reveladora das marcas do neoliberalismo: a) a sua postura formal e caricatural; b) as várias repetições de “[isso é um] fato”, revelando uma crença cega numa suposta realidade não interpretada (realismo ingênuo e grotesco); c) a sua insistência no sentido de que não basta saber fazer bem as coisas, mas é preciso mostrar que faz e destacar-se dentre os demais como aquele que faz melhor e, assim, compete melhor ― vide o conceito de virtuose (Paolo Virno).
1:03:00 ― a menina não conhece fita-cassete, o que leva Daniel a mostrar, com algum orgulho, a sua “competência”.
1:10:00 ― Daniel é ameaçado com punições.
1:14:00 ― a saída econômica pela prostituição.
1:22:00 ― sair do sistema é difícil e arriscado. E acarretará a perda completa da dignidade.
1:23:00 ― a “corrosão do caráter” (R. Sennett): quando se perde a autoestima, nada mais importa.
1:24:00 ― na sequência da pichação, nota-se o claro apoio do público; mas é tudo passageiro, fugaz, espetacular, inconsequente.
1:25:00 ― O funcionário que vem interpelar Daniel exclama várias vezes: “eu não acredito”. De fato, pichar a parede ―como uma forma de protesto e resistência― está completamente fora do mundo do burocrata.
1:26:00 ― Um transeunte, aparentemente meio maluco, se aproveita e também faz o seu protesto. Ele contrasta com o resto do público, que, mesmo talvez concordando com o protesto de Daniel, parece só se divertir com a cena. Sua última frase importante é “você é Sir Blake”, numa clara alusão crítica ao sistema monárquico inglês.
1:37:00 ― “Não sou cliente, consumidor ou usuário dos serviços [do Estado]”.
Como “complemento”, pode-se ler, entre outros:
SANSON, Cesar. Trabalho e subjetividade: da sociedade industrial à sociedade pós-industrial. Cadernos IHU, São Leopoldo, a. 8, n. 32, 2010. Acesse aqui.
SARAIVA, Karla; VEIGA-NETO, Alfredo. Modernidade Líquida, Capitalismo Cognitivo e Educação Contemporânea. Educação & Realidade, Porto Alegre, v.34, n.2, mai/ago 2009. p.187-201. Acesso aqui.
SENNETT, Richard. A corrosão do caráter. São Paulo: Record, 2010.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Eu, Daniel Blake. Um roteiro para assistir ao filme e, depois, discutir... - Instituto Humanitas Unisinos - IHU