04 Abril 2017
Berta Cáceres tinha as chaves da casa do Padre Melo. Quando ia à cidade de Progresso, ficava em um dos quartos vazios na casa do sacerdote.
Ismael Moreno Coto, mais conhecido como Padre Melo, foi amigo da líder ambientalista e de seu marido, Salvador Zúñiga, por mais de duas décadas. O casal fundou o Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas (Copinh) em 1993. Durante 25 anos de casamento, Berta e Salvador passaram por várias separações e reconciliações, e Moreno foi amigo e conselheiro de ambos.
"Quem será que vai primeiro, Melo, você ou eu?", perguntou Cáceres, sem deixar de sorrir enquanto eles tiravam uma foto após um comício de protesto contra uma usina hidrelétrica, em Rio Branco, em 2013. O sacerdote não respondeu. Cáceres temia por sua vida e também pela do jesuíta. Sua premonição tornou-se realidade em 3 de março de 2016, quando ela foi assassinada em sua casa.
A reportagem é de Emiliano Luiz Parra, publicada por New York Times, 26-03-2017. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
Moreno é um padre jesuíta que tornou-se um dos principais líderes da oposição em Honduras, o país mais violento da América Central. Ele é jornalista em um dos países mais perigosos para exercer essa profissão: desde o golpe de Estado de 2009, foram assassinados 26 jornalistas, segundo a ONG Comitê pela Livre Expressão (C-Libre). Neste contexto, o Padre Melo tornou-se uma figura antagônica ao presidente Juan Orlando Hernández.
Com o assassinato de Cáceres, que aconteceu em 3 de março de 2016, o padre aprendeu uma lição. Ele diz que em Honduras aplica-se rigorosamente a "lei da morte": uma condenação contra os opositores ao modelo "extrativista". Aqueles que não se vendem para empresas ou partidos políticos são condenados.
"Quando os disparos dos atiradores atingiram o corpo de Berta Cáceres, ela já havia sido condenada à morte havia muitos anos", disse Melo. Segundo ele, antes das balas há um processo de morte civil e política à oposição: ou eles são denegridos ou invisibilizados. A mídia corporativa costumava ignorar Cáceres ou chamavam-na de encrenqueira, como se fosse uma pessoa problemática.
Moreno Coto também sentiu-se condenado. Ele não acredita que será morto como Cáceres, mas já assumiu que foi condenado a difamação e invisibilidade.
Sua vida foi marcada pela violência. Aos 16 anos, ele sofreu a morte de seu pai, Pedro José Moreno, que ocorreu em 17 de agosto de 1974. Oficialmente, tratou-se de um assalto seguido de assassinato, mas Ismael Moreno nunca se satisfez com essa versão, porque seu pai era um líder camponês envolvido em desapropriações de terra.
Alguns anos mais tarde, quando ele recém havia sido ordenado sacerdote, ele foi tocado por um dos mais famosos massacres na história da Companhia de Jesus: o assassinato de seis jesuítas e dois funcionários da Universidade Centro-Americana (UCA), em San Salvador. Em 16 de novembro de 1989, um comando de elite do exército de El Salvador irrompeu na universidade durante a noite e assassinou os sacerdotes Ignacio Ellacuría, Amando López, Ignacio Martín-Baró, Joaquín López, Segundo Montes, Juan Ramón Moreno, bem como Elba e Celina Ramos, funcionárias da instituição.
Moreno estava perto das vítimas porque seu orientador do mestrado era Amando López e o reitor da universidade, o famoso teólogo Ignacio Ellacuría, tinha sido seu professor. Mas sua amizade mais profunda era com Elba Ramos, cozinheira da comunidade, e sua filha, Celina. Na verdade, ele as convidou para passar o Natal de 1989 com sua família em Progresso e, dessa forma, iria buscá-las na fronteira em 22 de dezembro para levá-las para a casa de sua mãe, mas a matança interrompeu seus planos.
O mais recente dos mortos chama-se Carlos Mejía Orellana, que tinha 35 anos e foi assassinado em sua casa na noite de 11 de abril de 2014. Ele era responsável pela venda de espaços publicitários da Rádio Progreso.
Mejía era homossexual e talvez por isso as autoridades se apressarem em dizer que foi um crime passional, embora fosse um dos 16 trabalhadores da Rádio Progreso que estava protegido por medidas cautelares por parte da Comissão Interamericana de Direitos Humanos devido às ameaças que havia recebido.
Melo, de 59 anos, é diretor da Rádio Progreso, um dos poucos meios de comunicação que critica o governo, e que comemorava seis décadas em dezembro de 2016. É também o cabeça da Equipe de Reflexão, Investigação e Comunicação (ERIC) da Companhia de Jesus, um coletivo com influência política nos movimentos sociais que se opõem aos megaprojetos de mineração, turismo e hidrelétricos.
Na noite de 15 de dezembro de 2016, Moreno ofereceu um jantar em sua casa. O cardápio era simples: frango frito, costelas de porco ao molho de churrasco e mandioca frita. Era de um restaurante de fast food no bairro. "A menos que algo extraordinário aconteça, o próximo presidente será Juan Orlando Hernández", afirmou o padre.
Nesta e em outras ocasiões, o padre não parava de criticar Hernández: dizia que ele era o principal protetor dos violadores de direitos humanos. E também afirmava que Honduras estava passando por uma "democracia autoritária que avançará a uma proposta ditatorial, personalista".
Doze pessoas foram convidadas para o jantar, incluindo jesuítas, ex-jesuítas, acadêmicos, um músico e um repórter. A conversa abordou o cenário político de Honduras. Ele atualizou os estrangeiros: Hernández tinha um aliado e protetor nos Estados Unidos; o general John Kelly, ex-chefe do Comando Sul e atual secretário de Segurança Interna de Donald Trump.
A constituição de Honduras proíbe a reeleição. No entanto, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) abriu o caminho para que Hernández concorresse novamente. Desde abril de 2015, a Suprema Corte decidiu que a proibição da reeleição ia contra os direitos humanos e tratados internacionais. Em outubro de 2016, membros do TSE confirmaram esta decisão por unanimidade.
E em 14 de dezembro, um dia antes do jantar, Juan Orlando Hernández declarou que sim, ele concorreria a mais um mandato. Por ter as mesmas ambições, o presidente Manuel Zelaya foi deposto em 2009.
Melo pediu opiniões sobre como ter um maior impacto sobre a realidade de Honduras "para uma maior glória de Deus". "O que você precisa é uma universidade", sugeriu um dos presentes, o acadêmico Tony Payán, diretor do Centro do México na Universidade Rice, em Houston.
Melo respondeu com uma anedota: alguns anos atrás, um ex-ministro se aproximou dele para oferecer 10 milhões de lempiras (pouco menos de meio milhão de dólares em taxas de câmbio atuais) para fundar uma universidade; Melo rejeitou a oferta. O papel dos jesuítas, justificou Payán, era ser um eixo entre os ricos de cima e os pobres de baixo. Outros apoiaram a proposta, mas o sacerdote não respondeu.
No dia seguinte, na sexta-feira do dia 16 de dezembro, em um fórum na Radio Progreso, Moreno disse: "De maneira alguma vamos voltar atrás e dizer: 'Vamos negociar com a elite política de Honduras'. Ou dizer: 'Vamos nos comprometer com um setor de empresa privada ou ir atrás do Cardeal (Óscar Rodriguez Maradiaga)'".
O padre continuou: "Somente a aliança com setores com os quais estamos de acordo a respeito da construção de propostas alternativas ao sistema capitalista é o que vai nos proteger. Não temos outro caminho, e bendito seja Deus por isso, pois além de fortalecer a nossa identidade ancestral, precisamos reunir esforços no compromisso de ir adiante".
Coto Moreno foi uma figura recorrente nas reuniões dos líderes comunitários. Em 17 de dezembro, em comemoração ao aniversário da Rádio Progreso, realizou no auditório do ERIC, em Progresso, uma reunião com ativistas que vieram de povoados distantes, como San Francisco de Opalaca, Santa Rosa de Aguán e Tegucigalpa, para ouvir sua mensagem.
Muitos viajaram por até dois dias em um ônibus caindo aos pedaços, carregando sacos de milho, tubérculos e frutas de cores diferentes para as cerimônias indígenas e afro-mexicanas de gratidão e fertilidade. Alguns gastaram uma parte significativa dos seus salários como jornaleiros, pescadores e pequenos produtores de café para sua peregrinação ao salão, onde havia 170 pessoas sentadas e outra centena em pé.
Honduras, disse o sacerdote, viveu um regime de "democracia autoritária", no qual cumpriam-se formalidades como a divisão de poderes e um aparente exercício das liberdades constitucionais, mas que só se sustentava com altas doses de força, repressão e autoritarismo.
De acordo com o padre, o governo do presidente Hernández se baseia em vários eixos. O primeiro é uma aliança da oligarquia nacional com corporações transnacionais, muito perceptível nos investimentos em telecomunicações, mineração, turismo, geração de energia elétrica e do dendezeiro.
A militarização era a segunda característica. Em Honduras, disse ele, as instituições de justiça entraram em colapso e o exército estava cada vez mais envolvido em âmbitos de discussão política. "Em um país instável não há como obter lucros de 25 anos atrás sem militarizar a sociedade", disse ele.
Então, ele falou sobre o "assistencialismo proselitista", definindo-o como o desperdício de dinheiro público através de 72 programas sociais geridos a partir do Palácio Presidencial e da cooptação dos meios de comunicação.
E, finalmente, referiu-se ao "sustento divino". Em cada ato oficial, celebrava-se uma liturgia. A iniciativa privada e o governo se diziam apoiados por Deus. Para isto, haviam conseguido o apoio de um setor da hierarquia católica e de pastores evangélicos através do Programa de Construção de Templos, um instrumento do governo hondurenho para canalizar fundos para as igrejas.
"Devemos nos preparar para o futuro próximo: a democracia autoritária avançará para uma proposta ditatorial, personalista." Os participantes confirmaram sua hipótese. Se alguém parou para conversar com Magdaleno Gómez, pequeno produtor de café em São Francisco de Opalacas, ele confirmava que seu povo não "permitiria represas nem mineração a céu aberto".
Ou com Aurelia Arzú, da Organização Fraternal Negra Hondurenha (OFRANEH), que acusou o governo de promover megaprojetos turísticos em praias como a Baía de Tela, que sustentaram os Garifunas.
Moreno pediu que os líderes não se desviassem rumo a lutas eleitorais, não se esgotassem em batalhas locais sem perspectiva nacional e não fossem consumidos por protagonismos. Foi o discurso de um líder político. No discurso de mais de meia hora, ele nunca invocou a Jesus Cristo ou à Virgem Maria.
Mas um pouco antes de terminar lembrou-lhes de que ele era um padre e precisava celebrar a missa funerária de uma companheira que havia falecido, passou o microfone e saiu rapidamente.
Era um pequeno quarto de menos de dez metros quadrados com uma cama de solteiro, uma mesa com livros, papéis e um laptop. Observei a desordem cheia de pudor de alguém que está sempre com pressa: uma camisa amarrotada por ali, pó de alguns dias nas superfícies, a cama desfeita.
Padre Melo está sempre atrasado para a sua próxima reunião. Naquela manhã de domingo do dia 18 de dezembro, ele havia preparado alguns ovos com cebolas e tomates e aquecido feijão com coentro enquanto um jovem jesuíta estadunidense, Matthew, passava café.
Sentado em sua cadeira de balanço, o padre nos contava a sua vida. Em Progresso havia duas escolas: a dos pobres e a dos ricos. Uma única vez o governo municipal concedeu duas bolsas de estudo para os melhores estudantes. Ele ganhou o primeiro lugar e foi para o Colégio San José da Companhia de Jesus. Era um mulato magro, com um penteado afro e um chapéu de palma que estudava com os filhos da burguesia bananeira. Lá, ele decidiu se tornar jesuíta.
Quando jovem, morou na Cidade do México, onde estudou Filosofia e, em seguida, em San Salvador, cursou Teologia. Desde 1995, dedicou-se ao jornalismo. Naquele ano, fundou o jornal da oposição A mecate corto, em Honduras, e em 2001 formou o ERIC.
Moreno nasceu em 1º de janeiro de 1958. Tem 59 anos e tornou-se um homem com um rosto redondo, cabelo curtinho, bigode grisalho, olheiras profundas e uma barriga proeminente de quem come carne, frango frito, banana frita e baleadas (um tipo de panqueca de trigo, feijão e queijo).
Em novembro de 2017, Honduras terá eleições polêmicas. O Presidente Juan Orlando Hernández poderá concorrer à reeleição e, talvez, Manuel Zelaya Rosales também se candidate, o ex-presidente deposto em 2009.
O Padre Melo não tem o objetivo de concorrer em 2017, só em 2021, quando Honduras celebrará o bicentenário da sua independência. Ela promove a criação de um programa nacional chamada Soberania 2021, uma agenda de luta para enfrentar o é que definido como a potencial "ditadura personalista" do presidente Hernández.
Moreno diz que vai continuar o seu trabalho a partir de sua posição de padre. Isto é, sem buscar uma posição no governo. Segundo ele, os momentos de repressão e autoritarismo como o momento atual de Honduras podem se tornar oportunidades para o movimento social.
Ele diz que vai apostar nisso nos próximos quatro anos de sua vida.
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O jesuíta que enfrenta o presidente de Honduras - Instituto Humanitas Unisinos - IHU