29 Março 2017
Desde o início eu tive a impressão que Amoris laetitia (AL) não fosse um texto pensado apenas à gestão das "urgências", mas que, além disso e como complemento, antecipasse desafios teológicos. Desafios, estes, que a teologia deve acolher, elaborar e propor ao povo de Deus na sua caminhada.
A reportagem é de Antonio Ballarò, publicada por Settimana News, 20-03-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Ao dedicar-me à leitura pessoal de outros textos, tive uma aprazível percepção: a que Christoph Theobald tinha quase "prefigurado" em um de seus textos (cf. Il cristianismo come stile, EDB de 2009, numa tradução literal ‘O cristianismo como estilo’, a seguir CCS) as mesmas propostas e os mesmos argumentos que o Papa Francisco traduziu em "versão magisterial".
Gostaria de propor um paralelo entre a obra do teólogo francês e a exortação papal, ciente do possível "risco de incompletude".
A fascinante e rigorosa proposta de Theobald questiona-se, entre outras coisas, sobre o papel que os dois concílios vaticanos desempenharam no contexto da procura da "forma" católica. Esse tema fica subjacente, mas é predominante nas escolhas da Igreja de hoje. Ao olhar para as afirmações do primeiro concílio percebe-se rapidamente que a Igreja tinha se tornado "referencial máximo da credibilidade da fé" (CCS, 353; Dei Filius 3); aspecto agora pacificamente esclarecido através de evocação pastoral - que, como tal, recorda a imagem do "belo pastor" que é Jesus.
Poder-se-ia perguntar, portanto, se para a Igreja a capacidade de "criticar" a si mesma não seria mais uma tentativa de "regulação" das relações. Que o papa indique o caminho de uma "reação saudável de autocrítica" (AL 36) é, neste sentido, tanto emblemático como programático. De forma similar, também ocorre fora de Amoris Laetitia: "Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma igreja enferma pelo fechamento e comodidade de se agarrar às próprias seguranças" (Evangelii gaudium-EG 49). Mesmo com o risco de gerar "conflitos", torna-se aconselhável "aceitar os limites da nossa expressão pastoral" (cf. J.M. Bergoglio, Nel cuore di ogni padre Rizzoli, 132, ‘No coração de cada pai’ trad. livre), para que a Igreja retorne ao Pai e reencontre, sempre a partir dele, a identidade que lhe é própria (cf. CCS, 353).
A virada consiste no "respeito eclesial frente à capacidade dos crentes de expressar sua própria experiência" (CCS, 353). O excedente das contribuições que são geradas não só é usado para abastecer uma "forma" eclesial imaginada, mas também para aliviar o peso que o foco exclusivo sobre os espaços por vezes derrama sobre a vida quotidiana das pessoas (cf. EG 223). O que resulta é, justamente, uma das primeiras expressões do documento pós-sinodal: "Relembrando que o tempo é superior ao espaço, quero reiterar que nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais" (AL 3). A Igreja, assim, declara-se pronta à integração imediata de muitas (e complexas) vidas de fé, de modo que ninguém possa se considerar livre de responsabilidade (cf. AL 7).
Conduzir os sujeitos para experiências "pessoais" - portanto, necessariamente "responsáveis" - é o que de mais "tradicional" pode ser oferecido (cf. AL 35). Além disso, a vida cristã consiste primeiramente no acolhimento livre de um Deus que, ao relacionar-se, convida a apostar tudo na diversa estruturação das nossas existências (cf. Mt 6:33). Se ser hospitaleiro nos confrontos dessa " abertura de crédito" (cf. AL 37) parece um desafio para a Igreja, é preciso lembrar que justamente as "originalidades" espirituais (CCS cf., 769) forneceram-lhe gradualmente o impulso de que precisava (CCS cf., 150), ampliando suas "competências" e aprofundando os "olhares".
Tendo experienciado alguma fraqueza, mesmo para a Igreja, é hora de começar a "rezar com a própria história" (AL 107). Poder-se-ia até reler a pastoral como "escola" eclesial; indicando, por exemplo, o seu uso para dentro, no sentido próprio de reflexão. Com uma processualidade pastoral "verificada" melhorar-se-ia tanto a qualidade como os resultados - inclusive sem mecanicismos pressupostos.
Theobald sugere uma "aceitação lúcida da diferenciação interna da sociedade moderna" (CCS, 353), que é o que o próprio Francisco chama de "abordagem analítica e diversificada" (AL 32). Portanto, a única maneira de estruturar uma abordagem rigorosamente adequada vem do discernimento, o que é essencialmente um respeito sensível e profundo da história.
Em última análise, é isso: Amoris laetitia propõe uma "espiritualidade histórica". Uma oportunidade culturalmente sustentável, além de teologicamente indispensável. A coerência interna dessa modalidade é dada pela impossibilidade de encontrar "uma nova normativa geral de cunho canônico, aplicável a todos os casos" (AL 300): diferenciando as situações, na verdade, permanece-se fieis ao olhar detalhado de Jesus, que nunca raciocina segundo categorias maximalistas. Pelo contrário, o ponto de partida continua a ser o sujeito, que pode perceber por si só a dificuldade de "unificar" a sua vida.
Conclui emblematicamente Theobald: "Poderá tornar-se - a dogmática "eclesial"- ingenuamente cúmplice de sua tentação - dos sujeitos – de buscar essa unidade em uma simples conformidade com a lei do grupo eclesial ou saberá conduzi-los ao mistério absolutamente singular das suas existências? "(CSC, 353).
É a verdadeira aposta do documento, é a verdadeira "preocupação" de Francisco.
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Christoph Theobald e Amoris Laetitia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU