23 Fevereiro 2017
“Nesta etapa pós-golpe, de retrocesso das conquistas materiais e da legislação social do Brasil, a defesa de interesses diretos precisa ser municiada pelo pertencimento coletivo. Não teremos condições de lutarmos como povo brasileiro se o imaginário de nossa juventude é ser branco e de classe média em uma cidade dos EUA”, escreve Bruno Lima Rocha, professor de ciência política e de relações internacionais .
Segundo ele, “a presença é avassaladora e se dá em todos níveis, da idealização de um bairro imaginário até à ascensão de teses liberais e conservadoras sob aparente discurso religioso. Interromper esta projeção incontrolável é quase impossível, mas resistir de modo sistemático, isso sim é factível. Mesmo que uma boa parte de nós (as esquerdas brasileiras) seja branca e de “classe média” aqui, a transposição não é imediata, ou não deveria ser. A luta pelas identidades coletivas é uma trincheira do anti-imperialismo”.
Eis o artigo.
O tema das identidades pode ser observado de diversos ângulos. Alguns operam como força mobilizadora e têm relação direta com a sociedade concreta, as experiências históricas e a transposição de bases de compreensão mútuas do mundo. De modo mais simples, a identidade coletiva pode implicar uma projeção de “lugar a ser construído”, de utopia associativa ou distopia individualista ou totalitária. O tema das identidades políticas, quando sujeitos sociais assumem uma perspectiva e projeção de si para além do individualismo, das relações familiares e estruturas sociais impostas (como Estado e Mercado), é chave para encontrarmos uma saída para as esquerdas brasileiras – em especial a esquerda mais à esquerda – e superarmos mitos de sociedades imaginárias. O tema é complexo, e ultrapassa os neologismos de “mimetização” da política virtual de gente desorganizada que se move apenas e tão somente através das redes sociais. Por outro lado, o inverso também é verdadeiro.
Os inimigos externos, em especial o Império (EUA, a Superpotência projeta seu poder sobre as Américas como área exclusiva ou quase), assim como o inimigo interno – setores importantes da elite brasileira que não são sequer nacionalistas, que dirá igualitários – sabem da fragilidade da reprodução de nossas identidades coletivas. Nada é por acaso, e de novo, pautado por Estado, Mercado e Universidade, o imaginário “socialista” brasileiro também é profundamente eurocêntrico, com ignorância de nossa própria história. Se isso ocorre nas esquerdas, o senso comum como reprodução condensada das ideias e representações dominantes, é um lugar de avanço das relações subalternas ao norte. Este “norte” tanto é a aspiração à vida em bairros de maioria branca dos EUA, como a idealização do mundo anglo-saxão ou então a dependência até psíquica diante da “alta cultura” europeia.
A vertente massiva do eurocentrismo está na difusão incontrolável dos signos dos Estados Unidos da América. Isso, sem o devido anteparo e a incompreensão das tensões internas ao território do “Hamburguestão”, leva à uma infantil e obscena admiração pelo sistema liberal, oligárquico, empresarial e individualista estadunidense. Tal e qual ocorre com as consequências ideológicas da Operação Lava Jato, ainda que uma boa parte dos crimes de corrupção sejam factuais e operem como modelo de acumulação relacionado à típica ordem do comportamento capitalista.
Infelizmente, nosso país vem sendo acossado por uma intensa e quase incontrolável presença da cultura de massas dos EUA. Afirmo o termo clássico – culturas de massa e indústrias culturais - porque os símbolos e modas vindos dos Estados Unidos circulam com penetração em todas as camadas de nossa sociedade. Dentre as mídias e veículos de comunicação, dois são diretamente relacionados a esta “invasão”. Um é a internet, com suas culturas de nicho (espécies de subculturas marcadas pelas indústrias de comunicação), onde temos vínculos traçados entre desenhos animados, seriados de TV (ou mesmo de web TV como os do Netflix) e polemistas ou “humoristas” de tipo espetáculo de monólogo (chamado em inglês de stand up comedy). Outro poderoso veículo, complementar e mais antigo do que o primeiro, é a TV por assinatura, especialmente os canais Transnacionais. Nestes circulam marcas, times de futebol (campeonato inglês, italiano e espanhol, além de Liga dos Campeões, dentre outros), esportes, notícias (como a CNN, primeira TV satelital mundializada), séries e programas de costumes.
Tamanha presença de símbolos internacionais – especificamente estadunidenses – não é nova, mas a penetração popular sim. Deste modo, no período de crescimento econômico dos governos do lulismo (Lula, de 2003-2010, Dilma, de 2011-2016) a mídia – as mídias, incluindo as mídias sociais como extensão do senso comum - a qual a maioria dos brasileiros foi exposta era de forma total ou parcial, reprodutora de um universo simbólico distinto. É como se o milagre vinha de uma entidade, mas a cada melhoria, aumentava o número de devotos de outro pastor (literalmente). Considerando que os governos acima citados tiveram uma política de comunicação entre ínfima (Lula) e nula (Dilma), logo podemos avaliar o quanto a luta simbólica e a esfera da ideologia e do comportamento importavam para os nada brilhantes e pouco ousados estrategistas do pacto lulista (marcado por melhoria material e reforço das estruturas de poder e econômicas existentes).
A luta ideológica, com ênfase no campo da comunicação, forma a barricada para armar corações, mentes, espíritos e almas de identidade coletiva, culturas populares e reforçar os vínculos, lealdades e sentidos de pertencimento. Como a concorrência diante do oligopólio de famílias controladoras da comunicação é desproporcional, e diante da hegemonia entreguista e vira-lata nas tramas e narrativas destas empresas, urge termos políticas de comunicação e cultura que garantissem ao menos uma economia de resistência. Se a disputa com o inimigo interno é absurda, com o externo também ocorre o mesmo, só que com mais intensidade.
Nesta etapa pós-golpe, de retrocesso das conquistas materiais e da legislação social do Brasil, a defesa de interesses diretos precisa ser municiada pelo pertencimento coletivo. Não teremos condições de lutarmos como povo brasileiro se o imaginário de nossa juventude é ser branco e de classe média em uma cidade dos EUA. A presença é avassaladora e se dá em todos níveis, da idealização de um bairro imaginário até à ascensão de teses liberais e conservadoras sob aparente discurso religioso. Interromper esta projeção incontrolável é quase impossível, mas resistir de modo sistemático, isso sim é factível. Mesmo que uma boa parte de nós (as esquerdas brasileiras) seja branca e de “classe média” aqui, a transposição não é imediata, ou não deveria ser. A luta pelas identidades coletivas é uma trincheira do anti-imperialismo.
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Luta ideológica, identidades coletivas e anti-imperialismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU