Por: Ricardo Machado | 01 Novembro 2016
O mundo experimenta a avassaladora crise da Modernidade. De ciclos em ciclos, cada vez mais curtos, a gangorra econômica faz suas vítimas, cujo perfil muda pouco de país para país, mas sempre atingindo mais radicalmente os mais pobres. As políticas keynesianas ou neoliberais, apenas para ficar em dois grandes modelos, não parecem resolver os problemas de fundo da humanidade, seja em chave de leitura estatal seja em chave de leitura mercadológica. Diante desse impasse surge a necessidade de se pensar alternativas.
“A partir do pensamento indígena temos um lugar para pensar a autonomia como um lugar político e uma crítica à civilização ocidental moderna, que permite questionar consensos nas variantes de esquerda ou direita. São conceitos que as pessoas imaginam o mundo e a cosmologia indígena permite problematizar o que é sociedade, o que é indivíduo, o que é natureza, o que é o trabalho e o que é a razão”, problematiza o professor doutor e pesquisador Salvador Schavelzon, em conferência no Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
A fala de Salvador Schavelzon, intitulada Cosmopolítica índigena, estados plurinacionais e partidos movimento, foi realizada na noite da segunda-feira, 31-10-2016, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros no IHU. O Evento integra a programação da quarta edição do Ciclos de Estudos Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo. Territórios, governamento da vida e o comum.
Schavelzon (ao fundo, à esquerda) em conferência no IHU/ Foto: Ricardo Machado/IHU
Há um fora da política tradicional que existe para além das institucionalidades. Nesse sentido, tanto Junho de 2013 quanto as Ocupações Secundaristas levam em conta uma outra forma de fazer política, encontrando eco nas formas de organização política da floresta. “Qual a relação que podemos fazer entre as formas políticas das florestas e os coletivos urbanos horizontais autônomos, sem líderes e que não buscam se traduzir em formas tradicionais de organização? Tanto a política indígena quanto a política das ruas, que também é a das redes, são invisíveis para uma forma política calcada no indivíduo, na sociedade e no Estado. Essas políticas são intraduzíveis na lógica do patriarcado”, provoca o palestrante.
O pólo de tensão à política tradicional não é a “não-política”, mas a cosmopolítica, definida por Schavelzon da seguinte forma. “Cosmopolítica é uma política que não excluiu o cosmos. Que não é apenas a política dos homens, das instituições, mas uma política que se abre para outros mundos. Os povos indígenas não entendem a natureza como um objeto ou recurso do qual o homem se serve, mas tem a natureza como viva e como parte da vida social”, explica.
O que há nesta perspectiva é um modo de estar no mundo radicalmente diferente da forma hegemônica. Na América Latina, Bolívia e Equador incluíram em suas constituições direitos aos seres não humanos – os vegetais, os lagos, as reservas. Tal posição não é uma questão meramente ambiental, mas de modelo civilizacional. “Destas políticas surge um conceito que vem da política indígena, que é o bem viver (mas há outros nomes para esta mesma ideia). Ele surge no fracasso das políticas de desenvolvimento que tentam resolver a questão da pobreza, mas fracassam em resolvê-la e em entender a forma de organização social e econômica desses povos e que não tem muito a ver com a pobreza. Pobreza para os índios é aquilo que eles se transformam quando o mundo deles desaparece, quando não podem reproduzir suas formas de existência”, coloca Schavelzon.
De acordo com o professor, se olharmos para as lutas latino-americanas que surgiram como movimentos de resistência, todas as que se institucionalizaram perderam a visão cosmopolítica. “O cenário é, de um lado, do esgotamento de um modelo de sociedade e de um sistema político que não cobre grande parte da vida social, que tanto na cidade quanto nas florestas e nas montanhas aparecem com uma institucionalidade caduca e que não se conecta com a vida política”, analisa Schavelzon. “As necessidades das pessoas passam por fora das instituições e das formas tradicionais de entender a vida”, complementa.
Afinal de contas, existe alguma alternativa para além do Mercado ou do Estado? Se operarmos a partir do modelo ocidental moderno, não. Daí a necessidade de se pensar alternativas políticas que não sejam fundadas na ideia de indivíduos (o direito à propriedade, por exemplo ), mas de coletividades. “Para os indígenas o indivíduo é uma multiplicidade, um indivíduo é formado por milhares de outros”, constata Schavelzon. “Há exemplos de sociedades indígenas que se organizam contra a verticalização política, contra um poder central. Tais grupos não funcionam na lógica da acumulação e priorizam o bem viver. Há tribos que quando descobriram o machado com lamina de metal, não de pedra, eles não produziram mais, mas passaram a ficar mais tempo juntos”, esclarece o conferencista.
Schavelzon (ao fundo, à esquerda) responde as perguntas dos participantes do evento/ Foto: Ricardo Machado/IHU
A exemplo das tribos indígenas, tribos urbanas de jovens não reconhecem legitimidade na representação política da forma como está dada. “A crise da república é a crise do liberalismo, mas também a crise às respostas de um nacionalismo do Estado. A crise dos governos progressistas na América Latina e dos processos abertos com as lutas sociais iniciadas no Fórum Social Mundial, que oferecia, por um lado, uma saída ao neoliberalismo pelo caminho do Estado – quando Chavez propôs o modelo bolivariano de socialismo do século XXI –, e, por outro lado, uma juventude que olhava mais para Chiapas e ao sub-comandante Marcos, pelo caminho da autonomia”, recorda Schavelzon.
Uma das questões que surgem é se faz sentido discutirmos formas sociais e conceitos que tem a ver com uma história de séculos e de mundialização à moda europeia, totalmente em crise. Nesse contexto a esquerda fica imersa na crise da representação, que, em última medida, é a crise do modelo político moderno. “As lutas secundaristas já fazem do Brasil o país com maior ocupação de escolas do mundo. Nessas novas lutas as escolas se tornam espaços políticos de criação de vida e de comum. Foram essas lutas que, em outro contexto, tensionaram a constituição dos países andinos, que transformaram a natureza em seres cujos direitos deveriam ser garantidos”, avalia Schavelzon.
É da convergência dos desejos que a política plural emerge. A relação do meio com o todo forma a política contra política tradicional, a cosmopolítica.
Salvador Schavelzon | Foto: Ricardo Machado/IHU
Salvador Schavelzon é argentino e atualmente leciona na Universidade Federal de São Paulo. É doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre em Sociologia e Antropologia pela UFRJ e graduado em Ciências Antropológicas pela Universidad de Buenos Aires. Sua tese de doutorado, intitulada A Assembleia Constituinte da Bolívia: Etnografia de um Estado Plurinacional, foi publicada como livro na Bolívia em 2012, com nova versão editada em 2013, pela Clacso Coediciones. Este livro e outro, sobre Bem Viver e Plurinacionalidade na Bolívia e Equador, estão disponíveis aqui.
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Nem Estado, nem Mercado, outra política possível - Instituto Humanitas Unisinos - IHU