08 Abril 2016
Uma característica específica dos novos movimentos sociais latino-americanos é o seu sincretismo: a cultura do 15M/Occupy Wall Street mistura-se com cosmovisões indígenas ancestrais.
O artigo é de Bernardo Gutiérrez González, jornalista, escritor e pesquisador hispano-brasileiro, residente em São Paulo, publicado por Open Democracy, 30-03-2016.
Eis o artigo.
No dia 18 de setembro de 2013, os índios Munduruku da Amazônia brasileira enviaram uma nota de apoio aos “movimentos de luta pelas manifestações nas ruas”. Desde as denominadas “jornadas de junho”, as revoltas massivas que puseram de pernas para o ar a política brasileira, as ruas do país continuavam em ebulição. A luta do povo Munduruku recebeu o apoio dos movimentos urbanos. E os Munduruku Ipêrẽgayũ escreveram uma carta retribuindo a solidariedade: “Agradecemos a todos movimentos que manifestaram a sua indignação nas ruas, de todos os setores sociais e de todas as classes sociais existentes”. Enquanto os Munduruku lutavam contra as companhias hidroelétricas no seu território, as ruas do Rio de Janeiro eram uma explosão de símbolos sincréticos, um encontro de lutas urbanas e causas ancestrais. Uma Batman ativista corria ao lado de um índio Kurubo nas manifestações. A fotografia de perfil do Anonymous Rio, foi estilizada com penas indígenas. E a Aldeia Maracanã, o antigo Museu do Índio que o governo queria derrubar para construir o estacionamento do Estádio, converteu-se no ícone da revolta na que conviviam jovens streamers e xamãs de diversas tribos.
A cosmopolítica, termo usado para definir a visão do mundo do líder ianomâmi Davi Kopenawa, tornava-se urbana. E a tecnopolítica da era das redes digitais e das multidões apoderadas percorría no Brasil caminhos imprevistos e tingidos de cosmovisões ancestrais.
A investigação “Novas Dinâmicas de Comunicação, Organização e Agregação Social. Reconfigurações tecnopolíticas”, desenvolvida depois duma convocatória global da OXFAM, tinha como objetivo entender melhor as “novas formas de participação cidadã e “os processos sociais sem centro” da América Latina. Apesar de que o estudo prestou especial atenção às redes sociais, uma das suas principais conclusões foi que o ADN ancestral colaborativo latino-americano (mecanismos orientados ao bem comum como a como la minga quíchua, el tequio nauatle ou o ayni aymara) e algumas cosmovisões como o conceito de Bem Viver convivem na região com as dinâmicas tecnopolíticas e o hacktivismo.
Cosmovisões, cosmopolítica
A cosmopolítica, esse olhar que interpreta o mundo pondo de lado a lógica ocidental, é o esqueleto emocional de muitos movimentos latino-americanos emergentes. E é inclusive a inspiração organizativa comunitária de muitos grupos e coletivos que baseiam a sua ação em ferramentas e plataformas digitais. Na Colômbia, a Minga indígena convocada pelos povos indígenas do vale Cauca em 2008 converteu-se no grande referente político de muitos jovens urbanos. A Minga, uma alusão ao mecanismo coletivo quíchua minga, transformou-se numa manifestação que percorreu todo o país. Para muitos jovens foi o “acontecimento fundamental na transformação das formas de organização e ação social”. A convivência durante a Greve Agraria de 2013 de novos atores (Mesa Amplia Nacional – MANE, perfis de Anonymous) como os movimentos rurais clássicos, viabiliza parte destas ressonâncias cosmopolíticas-tecnopolíticas, que se establecem desde a transmodernidade dos teóricos decoloniais que vão mais além dos marcos clássicos de ocidente.
Por outra parte, o projeto Bem Conhecer/FLOK Society no Equador gerou um amplio espaço de encontro de criptopunks, hacker globais, instituições e movimentos latino-americanos. O Bem-Conhecer, situado no paradigma de Boa Vida, lançava como desafio o conseguir a “segunda independência a partir das tecnologias livres” para o Equador e duma “Pacha Mamá digital de conhecimento comum e aberto”.
O conceito de Boa Vida e a ética hacker misturaram-se no projeto que aspirava a superar a economia extrativista a partir do conhecimento livre, comum e aberto. A tecnopolítica é combinada com cosmovisões, práticas e cosmovisões ancestrais. O perspectivismo ameríndio do que fala o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro “começa pela afirmação duplamente inversa: o outro existe, logo, pensa”. A afirmação poderia operar sobre a ética hacker ou sobre a cultura de rede, autênticas cosmovisões e/ou sensibilidade de mundo no nosso tempo. O desdobrar do carácter mestiço do conceito de Boa Vida e da ética hacker, com o Bem Conhecer ou o Bem Resistir, aproximam-se à transmodernidade formulada por Enrique Dussel: como “um mais além que transcende a modernidade ocidental (...) Uma transmodernidade multifacetada, hibrida, pós-colonial, pluralista, tolerante, mais além da democracia liberal e do Estado europeu moderno”.
Inspiração global
Depois das explosivas revoltas de 2011 – Primavera Árabe, 15M, Occupy – os atores sociais e governos da América Latina abraçaram o negacionismo. A versão oficial: não existiam revoltas em rede na região porque os progressistas contavam com o apoio dos seus povos. Além disso, entoava-se um de já vu, alegando que as lutas históricas na America Latina serviram de inspiração para a série de revoltas abertas pela primavera árabe. Correto: do zapatismo aos estudantes chilenos, a América Latina funcionou como a bússola social do mundo. Contudo, as conclusões do estudo “Novas Dinâmicas de Comunicação, Organização e Agregação Social. Reconfigurações tecnopolíticas”, revelam que 2011 mudou – e muito – as dinâmicas sociais na América Latina. As imagens e os memes na rede durante o frenético 2011 transformaram o slut walk de Toronto nas Marchas das Putas em vários países, adaptando o 15M espanhol aos Indignados no Paraguai (entre muitas outras frentes), expandindo o imaginário de Occupy Wall Street ou fazendo com que os movimentos de estudantes da região se impregnassem do imaginário, dos métodos e/ou das ferramentas da Wikileaks, do Anonymous ou da Democracia Real Ya.
Por outra parte, a nova arquitetura da convocatória e da protesta, o espaço híbrido (internet e territórios) como interface de ação, o surgimento de novos atores e a pertença liquida e pontual de determinadas causas estão a configurar um novo protótipo de participação, criação e imaginação política na América Latina. Um padrão habitual na região é o de uma mobilização intensa em volta duma causa concreta, com fortes emergências simbólicas e a criação de novos espaços agregadores. Por outro lado, o feminismo (#NiUnaMenos na Argentina), as liberdades digitais (#Pyrawebs no Paraguai, lutas conta internet.org) ou a defesa dos bens comuns urbanos (como o #tomaelbypass no Perú ou o #OcupeEstelita no Brasil) são alguns dos eixos que continuam vivos.
Simultaneamente, algumas insurreições, como a Marcha das Tochas que começou por pedir a renúncia do presidente hondurenho Juan Orlando Hernandez, propiciou a aparição dum novo sujeito político, os Indignados das Honduras, com características como a auto-convocatória a partir das redes socias, a auto-organização ou o apoderamento emocional. Como também aconteceu nas manifestações de #JusticiaYa no Guatemala, nas Honduras a luta contra a corrupção deixou de estar nas mãos da direita neoliberal. As classes populares da América Central reivindicaram-na como sua, o que despertou receios nos Estados Unidos.
O estudo da Oxfam destaca por sua vez que a dicotomia politica e o antagonismo narrativo construído pelos governos progressistas da América Latina, ainda que também pela oposição, se estabelecem como o principal limite da tecnopolítica na região. Na maioria dos casos, uma intervenção do estatismo desqualificando alguma revolta como “neoliberal” ou “direitista” pode provocar um esvaziamento das ruas ou uma inclinação à direita das mobilizações, como se pode comprovar nos casos do Equador e do Brasil.
Estamos perante o fim de ciclo das esquerdas latino-americanas, como alerta o jornalista uruguaio Raul Zibechi? Suporá o mesmo a chegada ao poder da direita neoliberal? Como influirá a sequência de revoltas em rede na região? A resposta não passa por mitificar o legado do bloco progressista como fazem alguns meios esquerdistas na Europa. Também não passa por criminalizar as políticas públicas do bloco. A mudança na América Latina é mais subtil, complexa e poliédrica. Nem bolivariano nem exatamente o contrário. Pese à crescente polarização da região, existe uma nova onda de sensibilidades e práticas políticas. Além das explosões ou dos movimentos já citados e das sinergias cosmo-tecnopolíticas, a região vive intensamente a emergência dum novo sujeito político que deixa em fora de jogo as organizações sociais clássicas. Nalguns casos, incorpora ditas organizações a um novo imaginário.
O aparecimento do movimento #YoSoy132 no México (2012), do #tomalacalle de Perú (2013), das revoltas do #VemPraRua no Brasil (2013) ou do #JusticiaYa de Guatemala (2015) confirma um padrão de comunicação, ação e auto-organização que extravasa as definições e estruturas sociais tradicionais. Na maioria dos casos, trata-se de movimentos rede que evoluem ao largo do tempo, que mutam de forma e inclusive mudam de nome. O estudo Tecnopolítica: la potencia de la multitud conectada define o fenômeno como “uma liderança temporal distribuída”, que explica parte das mutações do 15M espanhol ou do #YoSoy132 mexicano, cuja “estrutura se transforma de maneira dinâmica”.
A eclosão do #YoSoy132 no México foi especialmente relevante para a região, uma vez que simboliza perfeitamente a continuidade e rutura simultânea que provocam os novos movimentos. O #YoSoy132, que está claramente influenciado simbólica e organizacionalmente pelo zapatismo, mas que rompe com o mesmo, não foi uma explosão pontual. Teceu um novo ecossistema social que evolveu ao largo do tempo. Alguns nodos duma determinada ação (inícios do #YoSoy132) serviram como ponte a novos espaços (o #PosMeSalto, por exemplo, contra a subida de tarifas). Em dito ecossistema, quem lidera temporalmente uma ação pode no ter feito parte da mesma originalmente.
Quando desapareceram os 43 estudantes da Escola Normal Rural de Ayotzinapa na noite de 26 de setembro de 2014, poucos suspeitavam que um ano e meio depois as redes mexicanas e globais continuassem a exigir justiça. Também ninguém pensou que dito processo pudesse provocar a interação de ecossistemas sociais tão dispares como o zapatismo, o da greve de estudantes de 1999 e o de #YoSoy132. O caso Ayotzinapa foi o ponto de chegada de muitas causas mexicanas, de movimento sociais da América Latina e de movimentos globais. O estudo de dados específico sobre o processo de Ayotzinapa, que analisou dezenas de hashtags de Twitter, prova a tese da pesquisadora Guiomar Rovira: os despoletar destes movimentos funciona mais a través de “sincronizações” que de férreas similitudes ideológicas. E #YoSoy132, ainda que desagrade àqueles que afirmavam que o movimento tinha morrido, foi chave nessa ligação de ecossistemas sociais tão dispares.
Transnacionalismo, transmodernidade
Os diferentes ecossistemas mexicanos interatuaram durante a indignação de Ayotzinapa com as redes de revolta globais, como o #15M espanhol, as manifestações no Brasil ou o movimento Occupy Wall Street, em hashtags como #Caravana43 (Estados Unidos), #EuroCaravana43 (Europa) ou #caravana43sudamérica. Por sua vez, Ayotzinapa ligou as lutas globais e simbologias heterógenas surgidas em diferentes momentos históricos, como o demonstram os apoios de Noam Chomsky e de Democracia Real Ya em Espanha. É interessante a mútua identificação de Ayotzinapa e #BlackLivesMatter (protestos contra o assassinato de negros estadunidenses).
Além disso, o caso Ayotzinapa deixou uma profunda marca na América Latina, estabelecendo uma ligação efêmera entre os diferentes movimentos estudantis. Despoletou o apoio de movimento tão variados como o Yasunidos (Equador), as “Mães de Maio” (Argentina) ou os adeptos da equipa The Strongest (Bolívia). Contudo, apesar da empatia emocional provocada pelo caso de Ayotzinapa e das novas ligações que tiveram lugar a partir de diferentes processos, ainda é cedo para saber se influenciará a macropolítica regional ou se conduzirá a um novo movimento ou paradigma político pan-americano. O mesmo poderia dizer-se dos movimentos como o #VemPraRua no Brasil e outras revoltas.
A sequência de lutas globais abertas pela Primavera Árabe começou a redesenhar as simbologias, marcos e ficções do Ocidente. Ao eclodir na América Latina e conviver com as epistemologias do sul, também interferiram nalgumas narrativas dicotómicas forjadas pelos governos locais. A ligação transnacional destas revoltas está a tecer um novo sentido de mundo que vai mais além do neoliberalismo global e do estatismo desenvolvimentista, que tem o Estado moderno como epicentro. Este conhecimento limítrofe e transmoderno liga o sul global como o precariado e outros sujeitos políticos do norte configurando uma nova geopolítica. Sem tê-lo previsto, o legado progressista latino-americano dispõe no municipalismo espanhol (que conquistou as principais camaras do país) de uma nova rota de fuga.
As Juntas do Bom Governo zapatista, o conceito de Boa Vida ou a Cultura Viva latino-americana representam linhas de ação política a diferente níveis em cidades como Madrid ou Barcelona. O pós-capitalismo global pode despontar da recombinação e sincronização de cosmovisões, sensibilidades e práticas latino-americanas e sul-europeias, tanto cosmopolíticas como tecnopolíticas.
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América Latina: da cosmopolítica à tecnopolítica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU