Por: André | 27 Julho 2016
“Está se propondo que as alternativas não passam por reformas, correções ou ajustes técnicos ao modelo econômico de desenvolvimento, mas em desvelar, tomar distância e substituir as lógicas com que este foi construído e se mantém em pé, o que faz parte da forma normal de pensar, ser e viver em nível pessoal e social que se construiu durante a modernidade”, escreve Milton Mejía, em artigo publicado por ALAI AMLATINA, 17-07-2016. A tradução é de André Langer.
E acrescenta: “Como organizações baseadas na fé, nós temos o desafio de dialogar, acompanhar e construir alternativas junto com as comunidades que estão promovendo experiências para a reconstrução da economia e do desenvolvimento a partir das cosmovisões dos nossos povos ancestrais e a partir da nossa perspectiva de fé”.
Milton Mejía é pastor presbiteriano, secretário-geral do Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI) e professor de teologia na Universidade Reformada na Colômbia (CUR).
Eis o artigo.
Com vistas a pensar na construção de alternativas para o modelo econômico de desenvolvimento que se impôs em nossa região e em nível global desde o século passado, desejo compartilhar a partir da experiência da fé uma perspectiva crítica ao modelo que se impôs e os desafios que os setores sociais e as organizações baseadas na fé têm na região.
Perspectiva crítica ao “modelo de desenvolvimento”
Para encontrar alternativas ao modelo de desenvolvimento é necessário construir uma independência epistêmica dos paradigmas eurocêntricos da modernidade e de suas cadeias mentais que perpetuam a colonização cultural que sobreviveu depois da colonização territorial. Esta é a constatação da Rede Novo Paradigma quando analisa que a ideia de uma economia para o desenvolvimento tem uma longa história, hoje perpassa todo o nosso mundo e domina os nossos imaginários pessoais e sociais. Segundo esta Rede:
“Desde 1492, o ‘desenvolvimento’ foi a mais atraente e ambígua ideia que vem galvanizando a atenção de governos, líderes e sociedades independente de raça, religião e ideologia. Sua promessa de um progresso positivo, gradual, linear e acumulativo transformou-se na fonte de esperança da humanidade nos últimos cinco séculos. Ironicamente, apesar de que as promessas feitas em seu nome nunca tenham se cumprido, os valores, conceitos, premissas, etc., criados para sustentar esta ideia, ainda dominam o imaginário social dos povos, o repertório semântico dos especialistas e as estratégias retóricas dos discursos oficiais e alternativos no Norte, Sul, Leste e Oeste” (Rede Novo Paradigma 2005, p. 22).
De acordo com esta análise, a ideia de “desenvolvimento” esteve presente durante a modernidade. A partir deste modelo, construímos nossos modos de organização social, intervenção nas comunidades e relações com a natureza.
Isto fez com que “as nossas formas de olhar o mundo e de agir nele fossem igualmente criadas a partir desta ideia, ao longo da nossa existência, através da tradição, da religião, da educação e da ciência” (Rede Novo Paradigma 2005, p. 22). Por esta razão, o normal é que em todos os planos e ações dos governos, das organizações sociais e religiosas, para realizar a missão e a ação social, incluamos de alguma forma a necessidade de contribuir para o crescimento econômico e o desenvolvimento da pessoa, da família, da Igreja, da comunidade e da instituição.
Desta forma, o modelo vigente de economia para o desenvolvimento não apenas segue de vento em popa, como parece estar se fortalecendo, apesar da sua permanente crise que incrementa os efeitos negativos nos seres humanos e na natureza. Diante desta realidade, vários de seus críticos demonstram que este fracassou como “modelo de desenvolvimento”, mas o discurso do desenvolvimento ainda continua contaminando a realidade social e permanece no centro de uma poderosa, mas frágil, constelação semântica (Escobar 2012, p. 25).
Por esta razão, se está propondo que as alternativas não passam por reformas, correções ou ajustes técnicos ao modelo econômico de desenvolvimento, mas em desvelar, tomar distância e substituir as lógicas com que este foi construído e se mantém em pé, o que faz parte da forma normal de pensar, ser e viver em nível pessoal e social que se construiu durante a modernidade.
Bem viver, nova cosmovisão para uma alternativa ao desenvolvimento
Arturo Escobar (2012) analisa a forma como alguns movimentos sociais e intelectuais da América Latina intuem medidas possíveis para afastar-se do modelo civilizatório de uma economia para o desenvolvimento que primou durante a modernidade e hoje tem a força de impor-se em nível global por meio das tecnologias das comunicações. Em sua análise destaca que é necessário reconhecer a crise do modelo civilizatório ocidental que é invocada por amplos setores como a causa mais importante da atual crise global da energia/clima e da pobreza.
Diante desta crise é urgente uma mudança para um novo paradigma cultural e econômico, que já está sendo reconhecido como necessário e está em construção entre vários setores sociais e políticas da América Latina. Isso pode ser vislumbrado nos debates sobre a definição do desenvolvimento e dos direitos da natureza que se estão realizando em movimentos e lutas sociais em várias partes do continente que podem ser interpretadas em termos de dois processos inter-relacionados, que são: as ontologias relacionais e uma redefinição da autonomia política (Escobar 2012, p. 33).
Um destes debates centra-se em torno da cosmovisão do Bem Viver introduzida nas constituições do Equador e da Bolívia. Para os participantes deste debate, mais que uma declaração constitucional, o Bem Viver constitui uma oportunidade para construir coletivamente um novo modelo de relações entre os seres humanos e com a natureza, capaz de romper com o modelo clássico de progresso linear ascendente e desenvolvimentista que se impôs durante a modernidade.
A forma como o Bem Viver ganha espaço no cenário político da região, mostra como se estão construindo as alternativas na América Latina. Este surgiu de várias décadas de lutas indígenas, que se articularam com agendas múltiplas de mudanças sociais dos camponeses, afrodescendentes, ambientalistas, estudantes, mulheres e jovens. Por esta razão, o Bem Viver apresenta-se como uma oportunidade para a construção coletiva de uma nova forma de pensar e estilo de vida individual, comunitário e social (Escobar 2012, p. 34). Isto é possível, dado que:
“As ontologias ou cosmovisões indígenas não implicam uma noção linear de desenvolvimento nem um estado de subdesenvolvimento que é preciso superar. Não estão baseadas na escassez ou na primazia dos bens materiais. Ecoando estes princípios, o Bem Viver pretende introduzir uma filosofia de vida diferente na visão de sociedade. Isto torna possível uma ética do desenvolvimento que subordine os objetivos econômicos a critérios ecológicos, à dignidade humana e à justiça social” (Escobar 2012 p. 34-35).
A partir desta perspectiva, busca-se aprender a viver novas relações sociais e com a natureza que articulem a economia, o meio ambiente, a sociedade e a cultura, onde se introduzem temas de justiça social e intergeracional, se reconhecem as diferenças culturais e de gênero, posicionando a interculturalidade como princípio norteador e novas ênfases político-econômicas, tais como: a soberania alimentar, a proteção da natureza e o direito humano à água.
O Bem Viver, nesta perspectiva, não é apenas um projeto cultural-político puramente indígena andino. Este também está influenciado pelas correntes críticas do pensamento ocidental e seu objetivo é influir nos debates regionais e globais sobre a busca de alternativas a partir de outras cosmovisões, racionalidades, formas de viver e pensar. De acordo com isto, o Bem Viver busca reverter a colonialidade do poder, do conhecimento e do ser que caracterizou o sistema mundo moderno/colonial que dá suporte ao modelo científico e econômico liberal, o ideal de uma sociedade de progresso-desenvolvimento-crescimento para o bem do ser humano (Escobar 2012, p. 35).
A partir desta recuperação, recriação e apropriação destas cosmovisões estão surgindo na América Latina práticas urbanas e rurais de organização e mobilização de comunidades que afirmam que não é suficiente tomar o poder para governar as instituições do Estado se se continua a aplicar a mesma lógica do modelo econômico de desenvolvimento. Esta perspectiva foi iniciada pelos zapatistas, que proclamaram que não desejavam tomar o poder, mas criar novas relações sociais e com a natureza. Hoje, esta perspectiva é compartilhada por movimentos índios do Equador, Bolívia, os sem terra no Brasil, os desocupados e operários de fábricas recuperadas da Argentina, as comunidades de biodiversidade na Colômbia.
Muitos destes movimentos ocupam territórios, defendem-nos e neles criam novas relações sociais e com a natureza. A relação com os territórios são a característica diferenciadora mais importante que lhes está permitindo resistir ao modelo econômico neoliberal e criar alternativas locais que estão começando a se conectar em nível global (Zibechi 2008, p. 20-202). A característica destes territórios é que:
“...são espaços de auto-organização, espaços de poder, nos quais se constrói coletivamente uma nova organização da sociedade. Os territórios dos movimentos, que existiram primeiro nas áreas rurais (camponeses e indígenas) e de uns anos para cá estão nascendo também em algumas grandes cidades (Buenos Aires, Caracas, El Alto...), são os espaços nos quais os excluídos providenciam sua sobrevivência diária. Isto quer dizer que agora os movimentos estão começando a tomar em suas mãos a vida cotidiana das pessoas que os integram” (Zibechi 2008, p. 201-202).
Desta forma, podemos ver como em nossa região estão surgindo estas novas cosmovisões e experiências que se distanciam do modelo econômico clássico. Isto é confirmado por Hinkelammert e Mora quando afirmam que “a construção de alternativas em nossa região e em nível mundial passa por uma renovação radical dos nossos atuais marcos categoriais, marcos que predeterminam não somente a nossa percepção da realidade, mas limitam, além disso, as metas da ação humana que podemos conceber”. A partir desta perspectiva eles propõem um horizonte para a reconstrução da teoria da economia que ultrapasse a concepção desta como a arte do lucro e a recupere como a arte de gerir a produção e distribuição dos bens necessários para abastecer a comunidade e satisfazer as necessidades humanas (2008, p. 21).
Desta forma, propõem “uma economia para a vida”, onde se coloque no centro a vida real dos seres humanos e não as teorias econômicas neoclássica e neoliberal que surgiram da tradição positivista ocidental. Segundo eles, uma “economia para a vida” deve se ocupar das condições que tornam possível esta vida a partir do fato de que o ser humano é um ser natural, corporal, necessitado (sujeito de necessidades). Ocupa-se, por conseguinte, particularmente da produção e reprodução das condições materiais (biofísicas e socioinstitucionais) que tornam possível e sustentável a vida a partir da satisfação das necessidades e o gozo de uma vida plena para todos e todas (Hinkelammert e Mora 2008, p. 28).
Qual é o papel das organizações sociais e das organizações baseadas na fé diante desta realidade de crise do modelo de desenvolvimento imperante e diante destas experiências alternativas emergentes? Leonardo Boff (2014) propõe que estamos vivendo tempos como os de Noé, que convocava as pessoas para mudarem de vida, mas as pessoas não o escutavam, já que viviam tranquilas de acordo com a forma de pensar de seu tempo. Por isto, é urgente não apenas atualizar o apelo de Noé para mudar o estilo de vida que temos, mas também que escutemos o apelo de Paulo em Romanos 12, onde nos pede que necessitamos mudar a forma de pensar para mudar a forma de viver. Com outras palavras, hoje necessitamos deixar de pensar que fazendo ajustes ou reformas na economia vamos reduzir a pobreza, a violência e a deterioração da natureza. Isto porque está demonstrado, tanto teórica como empiricamente, que quanto “melhor funciona” o sistema econômico maior é a desigualdade.
Como organizações baseadas na fé, nós temos o desafio de dialogar, acompanhar e construir alternativas junto com as comunidades que estão promovendo experiências para a reconstrução da economia e do desenvolvimento a partir das cosmovisões dos nossos povos ancestrais e a partir da nossa perspectiva de fé. Desta forma, estaremos contribuindo para a busca de um novo paradigma de relações entre os seres humanos e com a natureza que dê como frutos a justiça, a igualdade e a paz presentes em nossas tradições religiosas.
Referências:
BOFF, Leonardo (2014). Vivemos tempos de Noé. http://leonardoboff.wordpress.com/2014/04/27/vivimos-tiempos-de-noe/
ESCOBAR, Arturo (2012). La invención del desarrollo. Editorial Universidad el Cauca, Popayán, Colômbia.
HINKELAMMERT, Franz; MORA, Henry (2008). Hacia una economía para la vida. Editorial Tecnológica, Costa Rica.
Red Nuevo Paradigma (2004). La innovación de la innovación institucional. Quito, Equador.
ZIBECHI, Raúl (2008). América Latina: Periferias urbanas, territorios en resistencia. Ediciones desde abajo, Bogotá, Colômbia.
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Desenvolvimento, Bem Viver e busca de alternativas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU