17 Fevereiro 2017
Haverá mudanças na globalização na era Trump? Nesta quarta-feira, no Parlamento Europeu em Estrasburgo, foi discutido o CETA (Acordo Econômico e Comercial Global com o Canadá). Algo polêmico. Sobre tudo isso, falamos com Monica Di Sisto, jornalista da AskaNews, vice-presidente da Associação Fairwatch, que se ocupa com o comércio internacional e o clima há mais de 10 anos. Ela leciona Modelos de Desenvolvimento Econômico na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.
A reportagem é publicada por Rai News, 12-02-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Comecemos com Donald Trump. Com ele, voltamos décadas atrás em muitas frentes. Também naquela dos tratados internacionais de comércio. De fato, ele parou o acordo Transpacífico, depois será a hora do O Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP), mas a negociação, agora, já está em um trilho morto, e do Nafta. Em suma, estamos na era do protecionismo desenfreado?
Se não quisermos ser ideológicos, devemos nos entender sobre as palavras. Os Estados Unidos de Obama eram protecionistas: bloqueavam há mais de 15 anos quaisquer negociações na Organização Mundial do Comércio para não permitir que China, Índia, Brasil e Rússia ganhassem um espaço comercial global igual ao seu. Se analisarmos os níveis de impostos estadunidenses como proteção do seu mercado interno, eles são muito mais altos do que os europeus. Se analisarmos o nível de subsídios à produção interna, que desde sempre reforçam a posição dos Estados Unidos no mercado global, eles são altíssimos, especialmente em âmbito agrícola. Eu lembro que, sobre isso, Obama perdeu uma causa exemplar no Tribunal da OMC contra o Brasil justamente porque os subsídios aos produtores estadunidenses de algodão foram reconhecidos como lesivos à concorrência.
O programa Buy American de Obama, que premiava as empresas nacionais nas disputas e nos contratos em relação à concorrência internacional, o que era senão um conjunto de medidas protecionistas? O Nafta, o TTIP e o TPP também serviam para garantir aos signatários condições comerciais favoráveis em relação ao resto dos concorrentes globais nos mercados de referência, isto é, o Centro-Norte Atlântico, o Atlântico e o Pacífico. Eram medidas protecionistas de geometria variável, lendo-as com as categorias da retórica economicista.
A verdadeira pergunta a ser feita, a meu ver, é: como as condições sociais e ambientais dos territórios envolvidos impactam? O Buy American garantiu uma redensificação produtiva e uma melhoria das condições sociais de muitos distritos industriais estadunidenses que haviam sido aniquilados pela abertura da área de livre comércio entre Estados Unidos, Canadá e México implementada pelo Nafta.A meu ver, portanto, era uma boa política.
Se o Nafta fosse superado por uma política ou por um conjunto de medidas que levasse os novos escravos mexicanos para fora das zonas de produção para a exportação promovida pelo Nafta, promovendo um modelo de negócios mais difuso e sustentável no país sem precipitá-lo na desindustrialização, seria uma coisa boa e justa.
Se vai ser Trump ou Ronald McDonald em pessoa que vão fazer isso, pessoalmente, eu não acredito, mas eu me interesso pelo que é justo. Este é o verdadeiro objetivo: como eles utilizam a economia e todos os seus instrumentos, também comerciais, para ficarem todos melhor e para que os direitos de todos sejam respeitados. Quero falar de fatos e impactos. Os slogans, em um século complexo como este, não ajudam.
Como a China vai reagir diante desses procedimentos?
A China já se apresentou ao Fórum Econômico de Davos como exemplo da globalização neoliberal e como antídoto ao trumpismo. É para rir. O modelo chinês é o de um capitalismo de Estado tão controlado a ponto de permitir que um investidor estrangeiro opere no seu território apenas na presença de uma parceria com um sujeito local. Nada de liberalismo!
Em nível de comércio internacional, se há um país que, de acordo com o relatório da Organização Mundial do Comércio sobre o dumping, rompe todas as regras de liberalização que também assinou a fim de manter a própria competitividade, é China.
A China introduziu o salário mínimo, com grande capacidade de visão e de coragem, que é uma das medidas que os Estados Unidos ainda nem sequer ousam imaginar, precisamente por causa do mantra compartilhado da liberdade da ação econômica.
Eu, pessoalmente, acredito que a abordagem econômica chinesa para o tempo presente é mais estratégica do que a europeia, muito interessante, nada ideológica. Mas, se alguém acredita no teatro de Davos, deveria ler o Plano Estatal Quinzenal de Programação Econômica do Partido Comunista Chinês. Acho que é uma leitura instrutiva sobre a distância entre retórica e realidade.
Haverá uma reforma da OMC?
Muitos a desejam há muitos anos. Pessoalmente, eu gostaria que a Organização Mundial do Comércio se inserisse novamente no sistema das Nações Unidas e que colocasse em todos os acordos que promove, pelo menos no mesmo plano, senão em um plano superior, o respeito pelos direitos humanos universais, pelos direitos do ambiente, pelos direitos do trabalho, em relação às exigências do comércio. Até hoje, os únicos princípios que animam a OMC são os da concorrência leal e da não distorção do mercado global.
Eu pergunto: se um produto faz mal, deve ser produzido e comercializado? Acho que não e acho que, no século da Amazon, deve haver uma instituição global que garanta a todos os habitantes do planeta que ele seja banido de todos os mercados. Se um produto polui, ele deve ser comercializado? Em um planeta sujo e inabitável como o nosso, eu acho que não e acho que deve haver uma instituição que garanta a todos os habitantes do planeta que ele seja banido do mercado global.
Se um produto faz bem, é produzido respeitando os direitos daqueles que o fazem, daqueles que o consomem, do ambiente, cria empregos e bem-estar, deve ter um tratamento “de favor” no mercado global, porque produzi-lo talvez custe mais, para torná-lo acessível ao maior número possível de pessoas em todo o planeta? Acho que sim.
O fato de a OMC, com as suas regras, tornar de fato ilegal cada uma dessas três coisas de bom senso demonstra como seria urgente que os países que fazem parte dela pusessem seriamente a mão nisso.
Falemos de Europa, de uma União Europeia que será ainda mais fraca com o Brexit. O Reino Unido, certamente, fará acordos com os Estados Unidos. Você não acha que isso trará prejuízos aos países da União Europeia? Que caminho a União Europeia deverá seguir?
O Brexit é uma ferida muito dolorosa. Pessoalmente, eu sofri muito com ele, mas não deve ser lido como causa do desastre europeu. O Brexit é um sintoma do fato de Bruxelas não adotar políticas positivas e inclusivas de modo a fazer com que todos nós nos sintamos em casa na Europa. E, para mim, a Europa significa pelo menos a bacia mediterrânea... Sou uma europeísta convicta, mas perturbada. Quando você pode forçar as estreitas malhas de uma coesão economicista como aquela fundada sobre a dívida apenas quando você sofre um terremoto e não pode fazer isso para intervir, por exemplo, na prevenção e no planeamento, há algo de errado. Há algo de errado se Bruxelas decide que um molusco só pode ser vendido se exceder um determinado número de milímetros, se um pêssego só pode ser vendido no mercado comum se pesar um determinado número de gramas, sem qualquer outra consideração qualitativa ou de proteção da biodiversidade.
E, decidindo assim, derrubam-se centenas de milhares de pequenos produtores, que, talvez, sejam justamente aqueles que cuidam e protegem o território para você. Este é o ponto: se Bruxelas – não a Europa, porque a Europa também somos todos nós que a gostaríamos muito diferente de como ela é – reagir ao Brexit acelerando, dentre outras coisas, a agenda comercial atual que está endurecendo a concorrência internacional, fazendo com que o mercado europeu seja invadido de produtos com menor custo econômico, mas que prejudicam pessoas e ambiente, reduzindo os custos de produção internos, principalmente aqueles ligados a salários, bem-estar, qualidade e ambiente, dá a resposta errada às expectativas e aos sonhos dos próprios cidadãos. Nesse ponto, não haverá nenhuma razão que não seja geopolítica, de massa crítica, para mantê-la de pé. Mas para isso é que também existe a Otan: estamos realmente reduzidos apenas a isso?
No dia 15 de fevereiro, o Parlamento de Estrasburgo aprovou o CETA (Acordo de Livre Comércio entre a União Europeia e o Canadá). Você expressou um julgamento duro sobre esse tratado. Por quê? Quais os perigos? O tratado não é um modo para combater o isolacionismo protecionista de Trump?
Trump não é isolacionista: ele quer expandir pelo mundo as suas próprias regras. Encontrar com os parceiros face a face, estreitar acordos bilaterais rapidamente onde as vantagens para os Estados Unidos sejam claras, assim disse o seu novo negociador chefe, que vem da equipe de Reagan, um modelo de liberalismo. Por isso, ele colocou em “stand by” o TTIP, mas não o cancelou: ele tenta entender se, estreitando um acordo vantajoso com a Grã-Bretanha, não consegue forçar a Comissão Europeia a aceitar um TTIP ainda mais desequilibrado em relação aos Estados Unidos.
O Canadá fez o mesmo, e quem admitiu isso aos jornais nacionais foi a sua ministra do Comércio: quando a região belga da Valônia pediu que a Comissão Europeia bloqueasse o CETA, Chrystia Freeland deixou Bruxelas imediatamente: “Nós decidimos que era realmente importante não ir embora com raiva, porque queríamos fazer com que os valões se sentissem culpados”, disse ela textualmente ao Globe. “Vocês sabem, nós somos canadenses, nós somos ótimos, nós somos tão bons... Por isso, o tom foi mais de tristeza do que de raiva. Ir embora foi importante, porque criou uma crise e a transformou em um problema deles. Todos os europeus me ligaram nas 24 horas seguintes: ‘Por favor, não vão embora, por favor, desculpe, vocês estão certos, nós vamos fazer com que isso funcione’. E, no fim, eles fizeram”.
Esse é o nível de confiabilidade dos nossos parceiros comerciais que deveriam servir de barreira contra Trump. O primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, assim que Trump foi eleito, felicitou-se publicamente pela escolha em virtude dos “valores comuns” dos seus governos e novamente agradeceu por ter dado a luz verde para o oleoduto Keystone XXL, bloqueado por Obama porque aceleraria o processamento de areias betuminosas que ele considerava inimigas da sua “revolução verde”. Além dessas considerações políticas “de contexto”, já bastante decisivas para desmontar a farsa do “sim ao CETA” como instrumento anti-Trump, eu gostaria de tentar convencer aqueles parlamentares que querem votar, no centro e à esquerda do Parlamento Europeu, “sim” a um tratado tão equivocado sem nunca tê-lo lido, de não confiar na propaganda que estão sofrendo por parte da Comissão Europeia.
Um folheto que circula entre os seus bancos e que é enviado via e-mail aos milhares por cidadãos que há meses lhe escrevem todos os dias de toda a Europa para pedir-lhes que parem o CETA os convence com falsidades que eu gostaria de desmentir. Nele, está escrito que, com o CETA, os europeus economizariam 500 milhões de euros em tarifas aduaneiras. Não é verdade. Serão apenas as empresas que exportam para o Canadá que terão essa vantagem, que, na verdade, é bastante risível quando comparada com o valor das trocas entre a União Europeia e o Canadá, que hoje já equivale a mais de 50 bilhões de euros. O CETA, porém, retirará dos Estados europeus nada menos do que 331 milhões de euros de tributos recolhidos até hoje sobre as mercadorias provenientes do Canadá.
Isso diante de um aumento do PIB que – antes do Brexit do qual a Comissão nunca calculou o impacto sobre o tratado – para a Europa, em dez anos, vale entre 0,003% e 0,08%, e, para o Canadá, entre 0,03% e 0,76%. A Tift University dos Estados Unidos calculou que o CETA vai provocar uma perda média de renda de trabalho de 615 euros entre todos os trabalhadores da União Europeia, com picos mínimos de -316 euros, chegando até -1.331 euros na França, e a destruição de 204 mil postos de trabalho, dos quais cerca de 20.000 serão na Alemanha e mais de 40.000 tanto na França quanto na Itália. Diz-se que as empresas europeias irão aumentar as suas cotas de acesso nos contratos públicos canadenses. Mas quantas empresas italianas, que são, em grande parte, pequenas e médias, serão capazes de participar dele?
O certo é que os governos públicos terão ainda mais dificuldade, depois do CETA, com as cláusulas compensatórias que beneficiam as empresas do seu território. Vão triplicar as cotas de importações de trigo do exterior, que no Canadá é fortemente tratado com o herbicida glifosato, reconhecido como tóxicos também pela União Europeia, e que, por causa da umidade e das baixas temperaturas canadenses, desenvolve micotoxinas nocivas para o ser humano. Vão aumentar as cotas para o leite e a carne de um país em que os animais são tratados com hormônios de crescimento vetados na Europa. Embora nominalmente o Canadá respeite o princípio de precaução, junto com os Estados Unidos ele apelou contra a proibição dos hormônios nas criações de gado, introduzida pela União Europeia junto ao organismo de resolução das disputas da OMC, e ganhou justamente porque a OMC declarou que um conceito como a precaução, embora reconhecido na legislação ambiental internacional, não era relevante para os fins comerciais.
A Europa, a fim de manter a proibição, foi condenada a reconhecer compensações a Estados Unidos e Canadá. Pela primeira vez no tratado com o Canadá foi introduzida uma “lista negativa” para os serviços públicos, isto é, um sistema em que todos os serviços não explicitamente mencionados na lista devem ser abertos à concorrência, à qual também sejam admitidos os operadores canadenses. Pela primeira vez no CETA se introduz uma Corte supranacional constituída por árbitros comerciais em que uma empresa ou um investidor canadense que se sentirem prejudicados por uma lei em vigor na Europa poderiam nos processar e pedir a sua revogação.
Além disso, depois do CETA, a União Europeia deverá consultar o Canadá (e vice-versa), antes de introduzir novas leis ou regulamentos que influenciem o comércio entre as duas margens do Atlântico e deverá esperar os “conselhos” de todos os portadores de interesse antes de definir a sua articulação. A essas e a muitas outras preocupações, a Comissão Europeia e o governo canadense, a fim de fechar rapidamente o jogo, responderam elaborando uma Declaração Conjunta na qual asseguram, sob a sua própria responsabilidade, que nenhum desses perigos é concreto, que os Estados vão manter a sua capacidade atual de regular, e as empresas não serão, de modo algum, preferidas aos cidadãos.
Uma pena que muitos pareceres de autoridade, incluindo o do especialista Simon Lester, do ultraliberal Cato Institute, convergem na opinião de que “quem quer que tenha preocupações e seja tranquilizado por esse texto sabe pouco de lei”, porque a declaração “vale pouco mais de um comunicado de imprensa”. Parece-me o suficiente para rejeitar um tratado que remodela a cadeia das regras sobre os meros interesses comerciais dos dois lados do Atlântico e que nem sequer embolsa qualquer coisa, senão para pequenos grupos de interesse bem representados em Roma e em Bruxelas.
A globalização, apesar das suas limitações graves, foi uma oportunidade de crescimento para a humanidade. Agora, na era soberanista, há a vontade de construir “muros” de todos os tipos, com tudo aquilo que se segue. Em suma, é possível uma nova globalização?
Eu sou refratária a falar de nova globalização. O soberanismo é a resposta, a meu ver, mais caótica para a falta de uma governança inteligente de um fenômeno que faz parte do gênero humano: conhecer e se encontrar, reconhecer-se e definir o espaço em torno de si. A globalização é o que é: de Marco Polo a Colombo, até a internet, sempre foi cultura, economia, pensamento, paixão, competências.
Hoje, é o verdadeiro desafio é a “contemporaneidade”, a eterna presença, a aceleração. Reler as nossas identidades na velocidade é cansativo, e quando os contornos se tornam mais instáveis é muito humano que haja quem queira parar, quem queira redesenhar as próprias fronteiras e quem, ao contrário, queira se fundir. São impactos materiais que devem ser governados. Neste momento, quem conseguiu fazer isso foram apenas algumas identidades fortes, penetrantes: dos arcos dourados do hambúrguer aos bits da digital economy, passando pelas fileiras do “vejo, compro, recebo”, e assim por diante, elas oferecem identidades portáteis, inclusas no preço.
Cada uma as oferece modeladas sobre os seus próprios interesses. Mas esses vetores que atravessam o mundo o espremem em malhas cada vez mais estreitas: as identidades que elas desenham para nós reduzem o espaço vital de cada um, porque nos apertam nos poucos espaços vazios restantes entre os seus entrelaçamentos. Como esse espaço, ao contrário, pode se ampliar novamente com base em um novo pacto social para se redesenhar, não pensando fortalezas, fossos e fronteiras, mas a partir de uma comunidade política, isto é, habitante das cidades, pensante e sensível, que parta de um “eu” global, mas não indistinto, e coloque a economia novamente no lugar que a compete? A serviço de um projeto humano compartilhado e biodiverso, que seria decisivo para trazer novamente paz e bem-estar a esta nossa comunidade humana martirizada.
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Globalização na era Trump. Entrevista com Monica Di Sisto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU