24 Fevereiro 2017
"A civilização semita e a clássica respondem a questionamentos radicais comuns, pois são universais, mas se movem ao longo de percursos distintos, não só no plano epistemológico, mas inclusive no literário, para o qual “os métodos e as categorias de Aristóteles são organicamente ligados à estrutura artística da Ilíada e do Édipo Rei, porém, ao contrário, acabam sendo desprovidos de sentido quando aplicados ao Livro de Isaías”", escreve Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por "Il Sole 24 Ore", 12-02-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Recentemente, foi publicado um ensaio que não fui capaz de avaliar por minha manifesta incompetência, mas que muito me intrigou e que agora me permite uma reflexão extrínseca sobre um tema que me é particularmente caro. Trata-se do retrato que um dos nossos maiores especialistas na área, Silvano Petrosino, da Universidade Católica de Milão, delineou do pensamento de Emmanuel Lévinas (Emmanuel Lévinas. Le due sapienze, Feltrinelli, p. 118, 12 €). O que é surpreendente não é apenas o cuidado refinado e a originalidade do perfil descrito pelo filósofo milanês, mas a definição apurada que o próprio pensador judeu-franco-lituano extraiu da comparação entre sua matriz bíblico-talmúdica e o logos grego.
Surpreendente (mas não muito, pois se trata de uma religião baseada na história) é a crença de que “a Bíblia não é um livro que nos conduz ao mistério de Deus, mas na direção das tarefas humanas. O monoteísmo é um humanismo” (citado também em Difficile libertà , Jaca Book, 2004 tradução italiana de Difficile liberté, 1963).
Seguindo esse enfoque Petrosino extrai dos textos levinassianos dois itinerários temáticos bíblicos muito fascinantes pela forma como são tratados. Por um lado, a criação que obriga ao enfrentamento da interação entre o finito e o infinito, entre a subjetividade humana e transcendência. Configura-se, assim, na pessoa humana "uma dependência da qual a criatura extrai sua independência absoluta, isto é, sua própria unicidade" tanto assim que "é grande motivo de orgulho para o Criador ter posto em pé um ser capaz de ateísmo, um ser que, sem ser causa sui tem o olhar e a palavra independentes" (como em Totalidade e infinito, publicado no Brasil pela Edições 70, 2008). Por outro lado, tem a Lei: a palavra de Deus, de fato, não se apresenta como uma narrativa, mas como um mandamento que exige uma resposta existencial do homem que, de pé diante da Lei, é convidado a "mudar de posição, colocar-se em movimento e ir onde a Lei indica". É compreensível, então, por que - como escreve Petrosino – “Lévinas nunca se cansa de propor e aprofundar a hipótese de que o logos é ético”.
Surge aqui o encontro-confronto com a concepção subjacente ao Logos clássico. Lévinas – sempre de acordo com o pensador milanês - percebe nessa comparação, "uma íntima proximidade, mas também uma irredutível distância" entre as duas visões, a hebraica e a grega. Aqui vamos nos deter um pouco para lançar um rápido olhar sobre o enorme problema que tem sido objeto de inúmeras investigações desde os primeiros séculos do cristianismo, o fato da intersecção entre a nova fé, enraizada, aliás, sobre uma base judaica, e a cultura grego-romana. O próprio judaísmo antigo precisou operar esse diálogo de mil formas, especialmente na diáspora alexandrina: basta pensar na preciosidade deuterocanonical que é o Livro da Sabedoria e Fílon, ou a versão grega da Bíblia chamada a Septuaginta.
A comparação, evidentemente, também foi confronto e controvérsia, mas aqui apenas nos interessa enfatizar a osmose, certamente implementada através de filtros, mas pronta para transferir do paganismo ao cristianismo o sumo dos modelos filosóficos, culturais, sociais e até mesmo iconográficos. Sobre esse último ponto é sugestivo, por exemplo, que o Cristo das catacumbas romanas dos Santos Marcelino e Pedro na Via Casilina, recém restauradas por uma fundação de um país muçulmano xiita (sic!), o Azerbaijão, foi pintado segundo o perfil de Orfeu que com sua lira atrai as almas. Já no segundo século, o escritor Justino chegou ao ponto de escrever em sua Apologia: "Cristo é o Lógos do qual participou todo o gênero humano. Aqueles que viveram de acordo com o Lógos são cristãos, mesmo se eles foram julgados como ateus, como ocorreu, entre os gregos, com Sócrates, Heráclito e tantos outros".
É possível identificar, inclusive antes desse período, as influências na esfera ético-filosófica, "mistérica" e até social, exercidas pela cultura clássica no apóstolo Paulo, que, por sinal, não hesitava em mencionar os Fenômenos de Arato e o Hino a Zeus de Cleantes em seu discurso no Areópago de Atenas (Atos dos Apóstolos 17:28), Thaís de Menandro (1 Co 15:33) e Epimênides de Creta (Tito 1:12). Curiosamente, um grande Padre da Igreja, Basílio de Cesaréia, em seu Discurso aos jovens, em torno dos anos 370-75, sugeriu estudar os clássicos (os "externos" à fé cristã) tanto para argumentar logicamente, como para a formação moral pessoal e para a própria exegese bíblica, considerando autores como Platão e Plutarco semelhantes a uma "provisão" para a educação e paideia do jovem cristão que obteria disso grande "proveito para sua alma".
Isso não impede que também tenha se desenvolvido uma dialética, porque, se por um lado Paulo exortava “examinai tudo, retende o bem" (1 Tessalonicenses 5:21), pelo outro ele estava ciente de que "os gregos buscam sabedoria; nós, porém, pregamos Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus e loucura para os gentios "(1 Co 1,22-23). A fórmula contida no título do ensaio sobre a cultura moderna do conhecido teólogo Charles Moeller, Sagesse grecque et Paradoxe chrétien (1948) mantém o seu valor, porque, como já foi dito por Kierkegaard, a filosofia grega busca a mediação, o
cristianismo opta, ao contrário, pelo paradoxo. Resta assim, a consciência - como observava Petrosino para Lévinas - de uma coexistência entre Atenas e Jerusalém, mas também de um profundo fosso. É interessante a esse respeito, salientar algumas abordagens interpretativas diferentes e, ao mesmo tempo, coincidentes. Na vertente incrivelmente aberta ao mundo clássico coloca-se a filósofa judia Simone Weil, cuja pesquisa pessoal relega a matriz judaica a um segundo plano em relação à herança grega. Aliás, o Evangelho sob seu ponto de vista é "a última e maravilhosa expressão do gênio grego", e é a essa fonte que deve recorrer a Europa, que tem a sua própria fundação na civilização grega e no cristianismo.
Impressionante é seu texto A Revelação Grega, publicado pela Adelphi em 2014 (o original, no entanto, é A Grécia e as intuições pré-cristãs), ao qual se poderia anexar a fim de contraste o seu Il Fardello dell’identità (“O Fardo da Identidade”, Medusa, 2014) para descobrir uma inegável alergia quanto à exclusividade de sua herança judaica.
Na mesma vertente eu colocaria, além do ensaio Message Evangélique et culture hellénistique aux 2e. et 3e. siècle (1961) de outro grande teólogo, Jean Daniélou, a interessante comparação realizada por Hugo Rahner, irmão do mais famoso Karl, sobre os Mitos gregos na interpretação Cristã (Dehoniane, 2011). Trata-se de uma primorosa reinterpretação cristã da grande simbologia clássica, a partir da viagem do "santo Homero", amarrado ao mastro de seu navio, que é, na verdade, a cruz de Cristo capaz de exorcizar a tentação das sereias do vício. Em um âmbito mais atento à complexidade da interação entre Atenas e Jerusalém - esse é o título de seu livro traduzido pela Donzelli em 1994 – insere-se o pensador ortodoxo moscovita Sergei Averincev (1937- 2004), que prefere falar de um contraponto entre os dois horizontes, justamente como sugeria Lévinas.
A civilização semita e a clássica respondem a questionamentos radicais comuns, pois são universais, mas se movem ao longo de percursos distintos, não só no plano epistemológico, mas inclusive no literário, para o qual “os métodos e as categorias de Aristóteles são organicamente ligados à estrutura artística da Ilíada e do Édipo Rei, porém, ao contrário, acabam sendo desprovidos de sentido quando aplicados ao Livro de Isaías”.
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O exemplo de Santo Homero - Instituto Humanitas Unisinos - IHU