14 Janeiro 2016
A encíclica papal Laudato si' nos desafia a superar um excessivo antropocentrismo, sem por isso diminuir a missão humana na criação e sem cair em uma santificação do mundo.
A opinião é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 10-01-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Já se passaram vários meses desde junho passado, quando foi publicada a encíclica Laudato si' do Papa Francisco. Nesse período, eu tentei acompanhar, inclusive através de clipagens da imprensa, o mar midiático das reações. Um mapeamento é praticamente impossível, mas é evidente que o setor mais amplo é ocupado pelas resenhas ecológico-econômico-políticas, justificadas também pelo espaço reservado a tais questões no documento.
Menor e às vezes nuançadas até a evanescência espiritualista são as de marca mais claramente teológica, embora na consciência do fato de que o segundo e o sexto capítulos são definidos justamente segundo tal perspectiva.
"Deus escreveu um livro estupendo, cujas letras são representadas pela multidão de criaturas presentes no universo", afirma-se no número 85, referindo-se diretamente a uma citação de João Paulo II, mas aludindo também a um dossiê bíblico que se move nessa linha e que fundamenta a aplicação da "analogia" teológica segundo a qual, a partir da criação, é possível ascender indutivamente ao Criador.
Lapidar, a esse respeito, é o livro bíblico da Sabedoria, retomado, aliás, também por São Paulo na Carta aos Romanos (1, 19-20): "A grandeza e a beleza das criaturas fazem, por comparação, contemplar o Autor delas" (13, 5).
Até agora, a criação era adotada na teologia segundo essa perspectiva dentro de um tratado tradicional e emblematicamente denominado De Deo creante, ou era assumida em chave moral e, portanto, antropológica pelo chamado "cuidado da criação". Um dado, este último, relevante na encíclica, mas já basilar na própria Bíblia desde as suas páginas de abertura, muitas vezes incompreendidas e criticadas.
Significativo a esse respeito é a passagem do Gênesis 1, 28, no qual o Criador se dirige ao homem convidando-o a "submeter a terra" e a "dominar" sobre os seres vivos terrestres. Na realidade, os dois verbos hebraicos usados exigem uma semântica mais nuançada e até sugestiva: kabash-submeter originalmente remete ao assentamento em um território que deve ser vasculhado e conquistado, enquanto radah-dominar é o verbo do pastor que guia o seu rebanho.
O homem, por isso, receberia de Deus uma delegação que é expressa no Gênesis 2, 15 com outro par verbal significativo: o Criador o colocou sobre a terra "para que a cultivasse e a guardasse". Curiosamente, os dois verbos hebraicos usados, 'abad e shamar, designam também o serviço cúltico e a observância da lei divina, fundamento da aliança entre Deus e o Seu povo. Portanto, há uma aliança sagrada primordial entre criação e criatura humana.
Essa centralidade do homem na visão bíblica, se tem o mérito de desmitificar a natureza, redirecionando-a à sua realidade imanente e não panteísta, e, portanto, de exaltar o compromisso do trabalho e da ciência, porém, tendencialmente redimensionou a natureza, funcionalizando-a às finalidades do homem. Muitas vezes, este se esqueceu da sua "fraternidade" com a terra, isto é, a sua "materialidade" reiterada pelo Gênesis 2, 7: "O Senhor Deus modelou o homem com a argila do solo...", e se comportou não como delegado-tutor divino, mas como tirano, a tal ponto que o próprio Gênesis deve registrar a devastação ambiental através da imagem de um panorama do estepe povoado de espinhos e cardos e grama selvagem (3, 18).
Esse antropocentrismo, exasperado por uma certa teologia e prática pastoral, solicitou, com o florescimento da sensibilidade ecológica moderna, um ato de acusação contra a concepção judaico-cristã, vista como a causa da crise ambiental. A líder dessa denúncia foi Lynn White, em um artigo que apareceu na revista Science de 1967, traduzido em italiano na revista Il Mulino de 1973, com um título eloquente: "As raízes históricas da nossa crise ecológica".
Dentre outras coisas, observava-se, por parte de alguns, que na própria arte cristã a paisagem era apenas funcional ao protagonismo humano, ao contrário das própria ações, parábolas e metáforas de Jesus, que, embora estando finalizadas a uma mensagem teológica, apresentavam uma natureza e uma corporeidade dotadas de uma densidade própria.
Muitos viram uma reviravolta durante o Renascimento, por exemplo na enigmática Tempestade, de Giorgione (imagem acima), onde as criaturas humanas são encaixadas em uma paisagem que é predominante. É interessante notar que, na Teoria da natureza atribuída a Goethe (alguns, porém, atribuem o ensaio a um cientista contemporâneo dele, Georg Christoph Tobler), observava-se que "a matéria não existe nem jamais pode ser eficaz sem o espírito, e o espírito, sem a matéria".
Ora, para voltar à teologia cristã, depois da encíclica do Papa Francisco, deveria ser mais bem reconstruída a reflexão sobre a criação, considerando-a mais em si mesma e não como mero cenário da humanidade. Santo Agostinho convidava a "venerar a terra", certamente sem idolatrá-la, mas lhe atribuindo uma identidade própria.
Superar, portanto, um excessivo antropocentrismo, sem por isso diminuir a missão humana na criação e sem cair em uma santificação do mundo. Ainda em 1993, a Associação Teológica Italiana tinha publicado as atas de um congresso seu sob o título A criação. Além do antropocentrismo? (Ed. Messaggero, Pádua). Seria importante, consequentemente, inserir no discurso teológico – mesmo que acordo de acordo com as específicas epistemologias – temas levantados pelos âmbitos científicos, filosóficos e socioeconômicos, como fez o próprio Papa Francisco.
A sua encíclica vai provocar, portanto, uma série de reflexões teológicas mais articuladas a respeito, para além das primeiras reações gerais às quais se mencionava, muitas vezes apenas parenéticas.
Por enquanto, devemos assinalar que alguns teólogos, com modalidades diferentes, já sublinharam a urgência de uma ecologia teológica. Na Itália, destacou-se, em nível metodológico, Franco Giulio Brambilla, atualmente bispo de Novara, que esboçou uma Teologia da Natureza dentro de um tratado, porém, ainda, de antropologia. Ele se movia no rastro de dois importantes teólogos protestantes, Jürgen Moltmann e Christian Link, que dedicaram textos significativos à questão. Outros também intuíram a necessidade de uma revisão teológica nos seus tratados sobre a criação, mas sem proceder a um projeto novo e sistemático.
Concluamos ainda com uma referência à encíclica que, mesmo sem elidir a peculiaridade e a responsabilidade do ser humano e sem cair na divinização panteísta da natureza, declara: "Sendo criados pelo mesmo Pai, estamos unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie de família universal, uma comunhão sublime que nos impele a um respeito sagrado, amoroso e humilde" (n. 89).
Poderíamos, então, conjugar o célebre preceito bíblico do amor ao próximo – como sugeriu Enzo Bianchi, o prior da Bose – também em outra direção: "Ama a terra como a ti mesmo".
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Ama o ambiente como a ti mesmo. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU