13 Dezembro 2016
A revolta contra o Papa Francisco liderada e legitimada por quatro cardeais, em sua maioria eméritos, adquiriu um tom recentemente vicioso. Uma linha foi ultrapassada.
E não me refiro apenas à fronteira das boas maneiras e do respeito. Essa já foi ultrapassada há algum tempo, quando quatro cardeais tornaram pública uma carta que desafiava a exortação apostólica de Francisco Amoris Laetitia, e o ameaçaram com uma espécie de censura pública. Desde então, o tom de desrespeito e desprezo de alguns escritores vem sendo comum.
O comentário é de Austen Ivereigh, jornalista e cientista político, publicado por Crux, 11-12-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Mas muito mais importante do que o tom, as críticas cruzaram uma fronteira para dentro de um território marcado pela “dissenso”.
Para que fique claro: dissenso não é o mesmo que desacordo. Os católicos frequentemente discordam com essa ou aquela decisão ou declaração do papa, fazem objeções à sua teologia ou não compartilham das suas prioridades. E o Papa Francisco não só fica à vontade quanto aos desacordos, mas os encoraja positivamente.
Dissenso é diferente. Dissenso está para discordância assim como descrença está para crença.
Dissentir é, essencialmente, questionar a legitimidade do governo de um papa. É lançar dúvida de que o desenvolvimento da Igreja sob este Sucessor de São Pedro seja fruto da ação do Espírito Santo.
E isso não é novidade. Na época do Concílio Vaticano II, o grupo dissidente apresentou-se contra a direção pastoral assumida pela assembleia, assim como contra desenvolvimentos-chave sobre a liturgia, a liberdade religiosa e o ecumenismo.
Com João Paulo II, por outro lado, os dissidentes estavam convictos de que ele havia traído o Concílio. Defendiam a ordenação de mulheres ao sacerdócio, o fim do celibato obrigatório e uma abertura em áreas como a contracepção.
Agora, com Francisco, o grupo dissidente se opõe ao Sínodo e ao seu maior fruto, Amoris Laetitia.
Como os dissidentes quase sempre acabam se parecendo e soando parecidos entre si, os quatro cardeais e seus apoiadores a cada dia se parecem mais como aqueles lobistas atuantes sob os papados de João Paulo II e Bento XVI que pediam por reformas progressistas.
Os católicos sabem que colocar-se contra o papa é um assunto sério, e portanto, quando dissentem, adotam um tom arrependido e dolorido que enfatiza a consciência e a impossibilidade de traição daquilo que absolutizaram: a ideia deles de uma tradução imutável, digamos, ou a versão deles do Concílio Vaticano II.
O que estas pessoas possuem em comum é que são quase sempre pessoas leigas, com formação superior e de países ricos ou de regiões ricas das nações em desenvolvimento. Em sua maioria, são intelectuais, advogados, professores e escritores com uma grande expectativa quanto ao que pensam.
O que a eles parece inteiramente autoevidente – argumentos logicamente desenvolvidos a partir de princípios absolutos, sustentados por alguns poucos bispos eméritos – quase sempre encontra silêncio no Vaticano. A essa altura, há a reação de fúria e estupefação que, com o tempo, se coagula em um sentimento supurante.
Uns irão se dividir, alegando que a verdadeira Igreja jaz alhures, mas a maioria vai permanecer “agarrando-se na fé com unhas e dentes” ou, como costumam dizer: “ainda sou católico, apesar dos esforços do papa de me fazer sair da Igreja”.
Agarrando-se à dor da própria traição, fingem refugiar-se nas suas liturgias progressistas ou tradicionalistas e invadem as páginas de internet, submetendo cartas e petições de grupos lobistas e associações, exigindo, como “fiéis católicos”, que o papa faça isso ou aquilo.
Mas enquanto insistem que há um debate a ser travado, algo a ser respondido, um tema a ser revolvido, o trem já saiu da estação e estas pessoas foram deixadas na plataforma, de braços abanando.
O Concílio Vaticano II dispôs a Igreja em um caminho – o caminho da conversão pastoral. João Paulo II uniu a Igreja em torno de um entendimento do Concílio baseado na hermenêutica da continuidade. Em ambos os casos, havia uma forte resistência, mas a maior parte dos católicos reconheciam o desenvolvimento com legítimo, como Pedro agindo para o bem da Igreja, como uma resposta doutrinariamente fiel aos sinais dos tempos.
O mesmo vale hoje. A maioria dos católicos entendem o Sínodo, e Amoris Laetitia, como uma resposta inspirada para os nossos tempos, um meio de reconstruir o matrimônio e de ajudar a tapar as feridas pelo fracasso do casamento.
É por isso que Francisco não pode responder à ‘dubia’ (isto é, às dúvidas) dos cardeais mais do que poderia responder Bento XVI a uma petição para ordenar mulheres como diaconisas: porque a Igreja Católica tem os seus próprios mecanismos de desenvolvimento, baseados na consulta e no discernimento espiritual.
Dito de outra forma, seja um conclave ou um sínodo, a Igreja gosta de sustentar as suas deliberações com provas, exatamente para permitir ao Espírito Santo um espaço para respirar.
Francisco não pode responder aos cardeais diretamente – embora ele tenha feito isso incontáveis vezes indiretamente – sem minar a ação do Espírito Santo presente através do processo de discernimento eclesial desde o Vaticano II. Como ele disse na semana passada à revista cristã belga Tertio, tudo em Amoris Laetitia – incluindo o polêmico capítulo 8 – recebeu dois terços dos votos em um sínodo que foi destacadamente franco e aberto.
Roma locuta, causa finita, como costumavam dizer os antigos. E o caso está ainda mais finalizado dessa vez, porque foi a Igreja universal que falou, e não apenas o papa.
Responder aos cardeais seria voltar o relógio para trás refutando o próprio processo sinodal, a fim de reorganizar debates que o Sínodo dos Bispos assentou, ou mesmo resolveu.
Lembremos o que aconteceu. No início do processo sinodal de dois anos, havia dois grupos querendo resolver a questão do acesso à Eucaristia para os divorciados e recasados. Cada um à sua maneira.
Um grupo queria abrir um caminho de volta aos sacramentos no tipo ortodoxo. O outro desejava reafirmar a doutrina e a disciplina de Familiaris Consortio (exortação de 1980 do Papa João Paulo II, que, sobre o assunto, pede pelo discernimento das diferentes situações, mas impossibilita qualquer retorno aos sacramentos a menos que os parceiros se comprometam em viver juntos como irmão e irmã).
Diante dessa questão de sim ou não, exatamente do tipo de dúvida que os cardeais colocaram a Francisco na carta, o Sínodo rejeitou uma resposta binária. O Sínodo dos Bispos afirmou os princípios gerais de Familiaris Consortio, mas desenvolveu o ensino de João Paulo II sobre o discernimento das situações ao mesmo tempo recusando-se a impor uma proibição taxativa em todos os casos à readmissão aos sacramentos.
Por uma maioria de dois terços, o Sínodo decidiu que queria preservar a doutrina da indissolubilidade na atual disciplina da Eucaristia enquanto, ao mesmo tempo, criou uma amplitude pastoral suficiente para a aplicação do direito canônico permitindo que os pastores respondam a situações onde haja uma falta objetiva de culpabilidade.
Quais situações? Amoris Laetitia não especifica, o que faz com que os quatro cardeais e seus apoiadores digam que o seu texto é ambíguo e confuso. Mas como ele poderia listar estas coisas sem se tornar um manual de casuística?
A questão é que não há novidade alguma, não há nenhuma doutrina nova, não há novas regras, porque o Sínodo determinou que não deveria haver. “Não existe uma norma geral que possa cobrir todos os casos particulares”, disse o Cardeal Christoph Schönborn ao sítio Crux, acrescentando logo em seguida: “A norma geral é muito clara; e está igualmente claro que ela não pode cobrir todos os casos a exaustão”.
E eis o cerne da questão. O Sínodo manteve o direito canônico – como não poderia ser?
É a lei de Jesus. O Sínodo defendeu, porém, uma ampliação em sua aplicação, reconhecendo, como fez Jesus, que a lei é necessária, mas insuficiente, e que precisa ser aplicada de tal modo que respeite a particularidade de cada história pessoal.
Amoris Laetitia assumiu o acordo alcançado no Sínodo – forjado, pelo que tudo indica, na emoção intensa do grupo alemão – e pediu à Igreja que crie mecanismos de acompanhamento que permitam esse discernimento.
O que o documento diz é: ouçamos a história desse casal em particular e vejamos onde o pecado criou bloqueios e feridas, e onde a graça divina se faz necessária.
E, no caminho, o que vai acontecer? Pode significar uma relação e um retorno a um matrimônio válido; pode levar a uma anulação; em alguns casos, pode levar a uma reintegração à paróquia, mas sem os sacramentos; em alguns casos, pode exigir viver como irmão e irmã, e um retorno aos sacramentos.
E, em alguns casos raros, este processo pode levar, sim, a pessoa ser admitida à Comunhão onde não há dúvida sobre a falta de culpabilidade subjetiva, onde, por exemplo, uma anulação é impossível, onde o matrimônio é irrecuperável, onde existem filhos da nova união, onde houve uma conversão em que se criou um novo estado, e onde a noção de “adultério” simplesmente não consegue captar a realidade. (Em artigo publicado no National Catholic Reporter dias atrás, o Pe. Thomas Reese propôs os tipos de distinções que o Papa João Paulo II tinha em mente).
Um bispo sul-americano, que recentemente entrevistei, disse quando lhe perguntei sobre o Capítulo VIII de Amoris Laetitia: “Não posso falar sobre isso. Cada caso é diferente”.
Aí fala um pastor. Aí fala o Sínodo. Aí fala o papa.
Uma mensagem que ouvi de outros bispos e cardeais com os quais conversei neste ano em preparação para um novo livro é que aquilo que Amoris Laetitia pede somente pode ser compreendido por um pastor.
Somente aquele que entende as complexidades das obras do pecado e a graça na vida de uma pessoa entende o paradoxo: que insistir no universal, na aplicação igual da lei em todas as circunstâncias, é contradizer a divina lei suprema da misericórdia, que põe o indivíduo antes – não acima, mas antes – da lei
Os quatro cardeais, com as várias perguntas binárias cuidadosamente elaboradas para excluir precisamente este paradoxo, rejeitam o acordo do Sínodo sobre essa questão, e ao assim fazer rejeitam a validade da ação do Espírito Santo.
Eles estão tentando retornar à lógica da imprensa e dos grupos histéricos pró-família, que se apresentaram no primeiro Sínodo para defender a doutrina cristã do matrimônio. No entanto, a assembleia sinodal rejeitou esta lógica em favor de uma tradição antiga de teologia pastoral.
Para os quatro cardeais, três dois quais escreveram um livro antes do primeiro Sínodo insistindo que nada poderia ser alterado, isto, evidentemente, soa como uma capitulação. (O Cardeal Burke, vale lembrar, foi removido da presidência do mais importante tribunal vaticano porque rejeitava quaisquer reformas no processo de anulação – uma reforma sancionada pelo Sínodo – com base em que elas enfraqueceriam o matrimônio.)
E eles continuarão a ver o caso dessa maneira.
Da mesma forma continuarão vendo também a elite intelectual e os jornalistas leigos que continuam dizendo em voz alta que o edifício inteiro do ensino católico sobre a indissolubilidade irá, consequentemente, desmoronar; eles construirão argumentos elaborados de que Amoris Laetitia não pode dizer o que diz.
Não é fácil aos jovens convertidos fugir da confusão doutrinal anglicana em busca de uma certa objetividade. Tampouco o é para os guerreiros culturais, que estão todos muito felizes com a dor dos matrimônios desfalecidos, centrando-se na defesa da instituição casamento – instituição confrontada com o divórcio e com a cultura do relacionamento temporário.
E não é facilmente entendido por aqueles a quem o Papa Francisco chama de “os doutores da lei”, em quem o medo de cair em – ou ser contaminado por um – mundo de relativismo e pecado é tão grande que ele acaba se tornando o principal motivo de suas ações e o principal centro das atenções.
Estas pessoas suspeitam que Amoris Laetitia enfraquece a afirmação da verdade objetiva em Veritatis Splendor (o que não é o caso, ainda que certamente afaste o foco da defesa da verdade para a defesa do modo como a Graça trabalha em uma alma).
Muitas delas são pessoas boas, pessoas inteligentes, católicos fiéis, que querem defender a Igreja e promover o Bem e a Verdade. Algumas eu as considero amigas. E, como amigo, tenho de dizer que, na ansiedade e no medo que sentem, elas estão tentadas a seguir na via do dissenso, rejeitando o processo do Espírito, de discernimento eclesial.
(Naturalmente, estas pessoas dizem que o Sínodo foi “manipulado” e, portanto, foi meramente político. Mas isto não é um argumento, e sim histórias que os dissidentes precisam contar uns aos outros.)
E, o que é mais importante, como amigo preciso advertir: o trem deixou a estação, a Igreja está seguindo em frente. E eles vão acabar como os progressistas traídos da era João Paulo II, trancados em uma espécie de ressentimento que os fez pobres arautos do Evangelho.
Na semana passada, a Congregação para o Clero emitiu um formato novo e abrangente para a formação sacerdotal. O padre do futuro, formado por Amoris Laetitia, aprenderá a caminhar com o povo: “num estilo de sereno acolhimento e de vigilante acompanhamento de todas as situações, também daquelas mais complexas, mostrando a beleza e as exigências da verdade evangélica, sem cair na obsessão legalista e rigorista”.
Antes de as críticas destes cardeais tornarem-se uma simples nota na história deste papado, e muito antes de se materializar o cisma previsto por Ross Douthat em seus artigos no New York Times, a próxima geração de padres estará aplicando o ensino magnífico de Amoris Laetitia, e o barulho da dissensão já terá desvanecido em uma memória distante.
Francisco esperava protestos, especialmente vindos deste quarteto cardinalício, e ele está triste com isso. Mas não está apavorado ou chocado. Ele considera o momento, conforme disse o Pe. Antonio Spadaro, como o desenrolar de um processo cheio do Espírito.
Ele sabe que os dissidentes cavaram sua trincheira, e que muitos irão permanecer firmes nela enquanto o restante da Igreja desenvolve uma nova estratégia pastoral para o matrimônio e a família. Mas Francisco também sabe que esta é uma escolha deles, que é a escolha de cada dissidente.
E ele sabe que, a fim de ser fiel à ação do Espírito Santo, a sua própria escolha somente pode ser a de ignorar os cardeais e continuar em frente.
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Enquanto os críticos de Amoris Laetitia decidem pelo dissenso, a Igreja deve seguir em frente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU