01 Dezembro 2016
Em declarações à imprensa espanhola, o chefe do principal tribunal eclesiástico do Vaticano disse que os quatro cardeais que acusaram o Papa Francisco de criar confusão com seu documento “Amoris Laetitia” são culpados de causarem “um escândalo muito grave” e que o papa poderia retirar os seus barretes cardinalícios.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada por Crux, 29-11-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
De acordo com o decano do Tribunal da Rota Romana, os quatro cardeais que recentemente publicaram uma carta onde pedem que o Papa Francisco esclareça algumas ideias presentes em Amoris Laetitia, documento sobre a família, poderiam perder seus barretes cardinalícios como decorrência daquilo que chamou de um “escândalo muito grave” por eles causado.
“Que Igreja defendem esses cardeais? O Papa é fiel à doutrina de Cristo”, falou o Pe. Pio Vito Pinto.
“O que eles [os cardeais] fizeram é um escândalo muito grave que poderia até mesmo levar o Santo Padre a retirar-lhes o barrete cardinalício, como já aconteceu em outros momentos da Igreja”, completou.
Nomeado em 2012 pelo Papa Emérito Bento XVI para ser o chefe do principal tribunal eclesiástico do Vaticano – conhecido como Rota Romana –, Vito Pinto foi rápido em esclarecer que suas palavras não significam que Francisco vá tomar tal decisão; significam apenas que ele poderia.
Vito Pinto esteve na Espanha no final de novembro para proferir uma palestra na Universidade de San Damaso, em Madri, como parte de uma conferência sobre as reformas do Papa Francisco no campo da anulação matrimonial.
Foi em entrevista ao sítio Religión Confidencial que o juiz fez estes comentários concernentes à carta dos cardeais Walter Brandmüller, Raymond Burke, Carlo Caffarra e Joachim Meisner, formalmente chamada de “dúbia”.
Segundo o texto da reportagem, Pito disse que os quatro cardeais e outros dentro da Igreja, estão pondo em dúvida “dois sínodos dos bispos sobre o matrimônio e sobre a família. Não um sínodo, mas dois! Um ordinário e o outro extraordinário. Não se pode duvidar da ação do Espírito Santo”.
Na palestra proferida por Vito Pinto, amplamente reportada por jornais e sites espanhóis, ele disse que em países como a Itália, a Espanha ou a Polônia, o casamento religioso ainda é altamente valorizado, mas “a verdade é que muitos dos batizados celebram o casamento civil ou vivem juntos sem estarem casados”.
Sobre aquilo que a Igreja chama de “situações irregulares” – coisa que ele não especificou, mas que pode ir desde os fiéis divorciados e recasados no civil até os fiéis gays em união civil –, Vito Pinto declarou: “O que nós fazemos? Transformar a Igreja em uma prisão? Ficar de pé na porta da paróquia e dizer: ‘Você sim [pode entrar], você não’?”
Como uma solução, o decano da Rota Romana sublinhou a importância do discernimento, sustentando que nada mudou depois de Amoris Laetitia em termos do magistério católico. No entanto, acrescentou: “Nem tudo é preto ou branco, há tons de cinza”, algo que o próprio pontífice argentino disse mais de uma vez.
O critério, segundo ele, tem de ser “facilitar tudo aquilo que leva à saúde das almas”.
No tocante às repercussões jurídicas de Amoris Laetitia, Vito Pinto falou que os canonistas também são chamados à “conversão” porque, mesmo se durante o segundo milênio uma “interpretação jurídica de tudo” impôs-se sobre a Igreja, na realidade “o direito é uma ferramenta necessária”, mas não é o fundamento da fé.
A título de informação, uma “dúbia” é um documento que os bispos enviam ao papa ou ao Vaticano em que se pedem esclarecimentos sobre um tema específico. Esta prática é rotineira e raramente é motivo das manchetes.
A dúbia dos quatro cardeais relaciona-se com os sacramentos quando pede que Francisco esclareça acerca da “existência de normas morais absolutas, válidas sem qualquer exceção, que proíbem atos intrinsecamente maus”.
Eles também perguntam se agora é possível conceder a absolvição no sacramento da Penitência e, portanto, a Comunhão a casais divorciados e que voltaram a se casar no civil, sem antes preencherem as condições estabelecidas pelo documento do São Papa João Paulo II sobre a família Familiaris Consortio.
Uma destas exigências é que os cônjuges em uma tal situação vivam em castidade, “como irmãos e irmãs”.
O texto completo da carta, com cinco perguntas de sim ou não que os prelados submeteram ao papa em setembro passado, foi voluntariamente tornado público pelo grupo no começo deste mês após Francisco ter informado que não iria responder.
Pedindo que o movimento feito por eles não fosse visto como um ataque “conservador” contra os “progressistas”, os cardeais disseram que estavam motivados pela preocupação pelo “verdadeiro bem das almas” e pela “profunda afeição colegiada que nos une ao papa”.
“Criar clareza: Alguns nós por resolver em ‘Amoris Laetitia’ – Um apelo” é como os quatro intitularam a “dúbia” e a “premissa necessária”.
Logo em seguida, Burke concedeu entrevista ao National Catholic Register em que diz que se o silêncio do papa se mantiver, eles poderão ter de emitir um “ato formal de correção de um grave erro”.
Algumas figuras na Igreja alinharam-se junto aos quatro prelados, pedindo que o papa esclareça a sua exortação apostólica, em particular a nota de rodapé número 351, uma das que mais gerou debates sobre o acesso aos sacramentos para os divorciados e recasados.
É o caso do bispo do Cazaquistão Athanasius Schneider, que submeteu uma postagem ao blog tradicionalista Rorate Caeli descrevendo a carta dos cardeais como uma “voz profética”.
Outros, como o Pe. Antonio Spadaro, editor-chefe da Civiltà Cattolica, importante revista jesuíta cujas publicações são previamente aprovadas pela Secretaria de Estado do Vaticano, disse que Francisco já respondeu às perguntas feitas na dúbia, e em uma transmissão recente feita pela CNN Spadaro defendeu a decisão do papa de não respondê-las novamente.
Entre outros exemplos, esse segundo grupo alega que o papa respondeu a dúbia numa carta – que vazou à imprensa – enviada aos bispos de sua ex-arquidiocese, Buenos Aires, onde endossa um documento escrito pelos prelados argentinos que afirma que as portas foram abertas para que os fiéis divorciados e recasados tenham acesso à Comunhão.
Caso o Papa Francisco fizesse o que Vito Pinto disse e removesse os quatro prelados do Colégio Cardinalício, estaríamos diante de um movimento raro, porém não inteiramente inédito.
Há o caso do jesuíta francês Louis Billot,criado cardeal por Pio X em 1911, mas que renunciou a essa condição em 1927. Billot era um forte apoiador do movimento francês conservador Action Française, o que causava tensões entre ele e o Vaticano.
O Papa Pio XI proibiu o jornal do movimento em todos os lares católicos. Billot discordou da decisão papal e acabou apresentando a sua renúncia, muito embora alguns historiadores acreditam que o papa exigiu que ele assim o fizesse.
Os outros dois casos recentes são os de Hans Hermann Groër, de Viena, e Keith O’Brien, de Edimburgo, que renunciaram a todos os direitos e privilégios cardinalícios – o primeiro sob o São Papa João Paulo II e o segundo sob Francisco – em ambos os casos por assuntos envolvendo conduta sexual imprópria.
No entanto, como disse ao sítio Crux o canonista Kurt Martens, da Universidade Católica da América, Groër e O’Brien na verdade mantiveram-se com os seus barretes de cardeais, perdendo somente os privilégios e as responsabilidades que os estes possuem, tais como participar em um conclave para eleger o papa.
Teoricamente, um papa cria cardeais e, portanto, pode destituí-los, embora, como mostram estes exemplos, em geral os cardeais em apuros irão entregar os seus barretes voluntariamente antes de chegarem ao ponto de banimento.
O Pe. Francis G. Morrisey, também especialista em Direito Canônico, disse ao Crux que “o cardinalato nada tem a ver com o sacerdócio, ou o episcopado. É uma honraria que pode ser retirada”.
Isso quer dizer que se um bispo é feito cardeal e em seguida tem esta condição retirada, ele ainda é bispo, da mesma forma como um padre continuaria sendo padre, observou Morrisey.
Ainda que seja impossível prever o que Francisco fará, tanto Martens como Morrisey concordam que ele não deveria retirar a condição cardinalícia dos quatro cardeais que apresentaram a dúbia.
Morrisey diz que destituir-lhes faria deles “vítimas entre as facções arquiconservadoras, e isso poderia facilmente levar ao cisma”.
Ele não que Francisco não deve responder às perguntas, pois são “perguntas capciosas como as que os fariseus fizeram a Jesus”.
Martens não diria “cisma”, mas afirmou que Francisco, ao tirar o barrete cardinalício destes cardeais, criaria “uma guerra total”.
Muito embora apenas quatro cardeais vieram à frente se manifestar, certamente eles “não são os únicos” que têm dúvidas. Eles possuem muitos seguidores que concordam entre si em que Amoris Laetitia deixa margem para dúvidas.
“Se o papa concorda ou não com o que escreveram os cardeais, de forma alguma seria sábio [pedir que eles renunciassem], pois eles estão fazendo as perguntas que muitos têm, seja de ‘esquerda’, seja de ‘direita’”, declarou, acrescentando que, no final das contas, os cardeais fizeram o que deveriam fazer: “Assessorar, aconselhar o papa”.
Martens disse ainda que se consultado pelo Papa Francisco, ele o aconselharia a convidar os quatro cardeais para uma conversa, porque, entre muitas razões, ao retirar os barretes cardinalícios, ele estaria fazendo o oposto do que prega, que é convidar as pessoas ao diálogo.
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Juiz vaticano diz que cardeais críticos do Papa podem perder seus barretes cardinalícios - Instituto Humanitas Unisinos - IHU