25 Novembro 2016
"Todas as celebrações e festas religiosas remetem a este tempo primordial, “um tempo circular, reversível, e recuperável, espécie de eterno presente mítico que o homem reintegra periodicamente pela linguagem dos ritos”[4]. Assim vivem a experiência do tempo religioso, por exemplo, os indígenas de toda a América, os polinésios, as populações originais da Austrália, o bramanismo na Índia e arredores, e o viveram os antigos na Babilônia, na Assíria, os hititas, os egípcios, os persas", escreve Mauro Lopes, editor do blog Caminho para Casa, 24-11-2016.
Eis o artigo.
Caetano Veloso cantou o tempo, numa música-oração (Oração ao Tempo):
És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo, tempo, tempo, tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo, tempo, tempo, tempoCompositor de destinos
Tambor de todos os ritmos
Tempo, tempo, tempo, tempo
Entro num acordo contigo
Tempo, tempo, tempo, tempoPor seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo, tempo, tempo, tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo, tempo, tempo, tempo(ouça-a completa no link acima, sobre o nome da música)
O tempo é um tema-chave para os seres humanos, objeto de indagações, estudos e angústias na filosofia e na física, na astronomia e na biologia, na prosa e no verso, na psicanálise e na política. O tempo atravessa-nos em todas as dimensões.
Nas religiões, igualmente, ocupa um lugar central, porquanto é nele que se manifesta o sagrado: “Dar ao tempo uma conotação de ‘tempo sagrado’ é reconhecer e ‘dar espaço’ ao Eterno no tempo que ‘irrompe na história’ (Gl 4,4-5), igualmente concebendo que Deus passa a fazer parte do tempo dos que não vivem fora do tempo”.[1]
É de tempo que se trata este artigo.
A maioria das pessoas ignora, como provavelmente a maioria dos católicos igualmente, mas a Igreja Católica está celebrando o Ano Novo. Ou, mais exatamente: um novo Ano Litúrgico. A liturgia, palavra de origem grega que designa originalmente o trabalho do povo (a junção de leit, de laós, povo + urgía, trabalho). Este significado original foi tardiamente modificado para ofício público ou culto público, que é o sentido com o qual a palavra tornou-se corrente. Portanto, o Ano Litúrgico é o culto público dos católicos num tempo determinado.
É ainda mais que isso.
Acompanhe-me nesta viagem –ela é fascinante.
Encerramos, no domingo (20 de novembro) o Ano Litúrgico C, com a solenidade de Cristo, Rei do Universo. Ele irá se esvaindo aos poucos ao longo desta semana, na 34ª semana do Tempo Comum, até ser inaugurado o novo ano, o A, no próximo domingo, o 1º Domingo do Advento (a espera ativa do Natal).
A liturgia da Igreja Católica organiza-se na sequência de anos A, B e C. O que os diferencia: em cada ano, a Liturgia da Palavra dos domingos (a proclamação dos textos bíblicos nas missas) é centralizada por um dos evangelistas: Mateus no ano A, Marcos no B e Lucas no C –são os três textos sinóticos, ou seja, inspirados por uma fonte comum, que apresentam enorme paralelismo em suas narrativas, sequência e até uso de palavras. O quarto Evangelho, o de João, não apresenta o mesmo paralelismo e aparece em vários momentos ao longo de todos os anos. Nos dias feriais, de segunda sábado, o esquema das leituras obedece a uma lógica bienal (repetem-se a cada dois anos) e há ocasiões em que os textos são proclamados anualmente, como na Semana Santa ou no Natal.
Em tudo parece um esquema circular, repetindo-se ciclicamente. SQN –como dizem os jovens (só que não). Antes de esclarecer, vale a pena examinar muito brevemente como o “tempo sagrado”, na maior parte da história da humanidade, foi efetivamente circular.
O TEMPO SAGRADO CIRCULAR
O romeno Mircea Eliade (1907-1986), considerado um dos fundadores do moderno estudo da história das religiões, fez publicar em 1959 um ensaio que é referencial: O Sagrado e o Profano. Nele, afirma que “(…) o tempo sagrado é por sua própria natureza reversível, no sentido em que é, propriamente falando, um Tempo mítico primordial tornado presente(…). Por consequência, o Tempo sagrado é indefinivelmente recuperável, indefinidamente repetível”.[2]
Na vida do homem e da mulher religiosos nas religiões arcaicas e paleorientais, vive-se todo o tempo sob a “nostalgia das ‘origens’”; os homens e mulheres aspiram retornar a um “mundo recente, puro e ‘forte’, tal qual saíra das mãos do Criador. É a nostalgia da perfeição dos primórdios que explica em grande parte o retorno periódico in illo tempore [a um dado tempo, àquele tempo].”[3]
Todas as celebrações e festas religiosas remetem a este tempo primordial, “um tempo circular, reversível, e recuperável, espécie de eterno presente mítico que o homem reintegra periodicamente pela linguagem dos ritos”[4]. Assim vivem a experiência do tempo religioso, por exemplo, os indígenas de toda a América, os polinésios, as populações originais da Austrália, o bramanismo na Índia e arredores, e o viveram os antigos na Babilônia, na Assíria, os hititas, os egípcios, os persas.
O ponto culminante desta elaboração do tempo sagrado circular coube aos gregos. Para eles, especialmente a corrente platônica, a história acontece como uma repetição de ciclos fechados: “Nesta visão, aceita-se melancolicamente o eterno repetir-se das coisas. (…) A sua característica é a nostalgia: o herói, depois de ter realizado um longo périplo, retorna ao seu ponto de partida. (…) O tempo é ainda algo de desesperador, porque o homem, arrastado pelo ciclo eterno dos astros, recomeça sempre, sem nunca realizar-se. O tempo torna-se então um pavoroso absurdo: chrónos, que devora seus filhos.”[5]
Uma apresentação clássica da concepção platônica afirma que “o tempo que a revolução das esferas celestes determina e mede é a imagem móvel da eternidade imóvel, que ele imita ao se desenrolar em círculo. Consequentemente, todo devir cósmico, assim como a duração deste mundo de geração e corrupção que é o nosso, desenvolver-se-á em círculo ou segundo sucessão indefinida de ciclo (…). A duração cósmica é a repetição e anakuklosis, eterno retorno”.[6]
O TEMPO SAGRADO JUDAICO-CRISTÃO
O judaísmo e, depois dele, o cristianismo, romperam de maneira radical com esta concepção de tempo sagrado. Ele deixa de ser uma eterna repetição circular e nostálgica para inserir-se na história concreta vivida pelos homens e mulheres: “Para o judaísmo, o Tempo tem um começo e terá um fim. A ideia de tempo cíclico é ultrapassada. Jeová não se manifesta num Tempo cósmico (como os deuses das outras religiões), mas num Tempo histórico, que é irreversível. (…) O cristianismo vai ainda mais longe na valorização do Tempo histórico. Visto que Deus encarnou, isto é, que assumiu a existência humana historicamente condicionada, a História torna-se possível de ser santificada.”[7]
Não há, ao contrário do que se possa imaginar, desejo de retorno ao paraíso no judaísmo e no cristianismo. O tempo caminha para frente e não voltará.
“Em outras palavras, se o homem pagão tem a experiência do mundo como natureza, o homem da Bíblia, o profeta, tem a experiência do mundo como história. Isso acontece pelo fato único e radical da intervenção de Deus na história. Deus entra em diálogo com o homem, faz a história com ele, ele mesmo se torna história, isto é, compromete-se sem arrependimentos com o homem. O profeta encontra Deus na história, nela sente-se interpelado por Deus; a história é para ele palavra de Deus, porque Deus, revelando-se, age e, no agir, revela-se. Assim a revelação é história e a história é revelação.”[8]
Este processo dialógico entre Deus e o homem na história atinge seu cume quando Cristo, Deus em carne e osso, encarna na história concreta da humanidade e faz, com seus amigos e amigas, o caminho da resistência ao império romano, o enfrentamento da estrutura religiosa alienante do regime do Templo, anuncia o tempo do amor, ajuda a sogra de Pedro, conversa com a samaritana odiada pelos judeus, abraça a prostituta, cura os doentes e, finalmente, perdoa seus assassinos.
A liturgia cristã, no entanto, não se resume a uma rememoração dos fatos da vida de Cristo ou a uma análise sociológica ou psicológica desta história. Ela não abandona remissão ao “tempo da criação” das religiões arcaicas para passar a se referir ao tempo da “nova criação”, com o nascimento de Cristo, o que lhe conferiria um caráter igualmente circular.
Sim, por um lado, o ano litúrgico “consiste em fazer memória da salvação realizada em Cristo”; mas isso não quer dizer viver a nostalgia do passado histórico de Jesus, e sim viver “a fé na sua presença atual que diz: ‘Hoje o Cristo nasceu’, ‘Esta é a noite em que Cristo ressuscitou’ (…).”[9]
A chave de leitura do tempo sagrado é subvertida exatamente pela crença de que Cristo ressuscitou e torna-se referente ao presente/futuro, e não à restauração do passado: “[Jesus ressuscitado] trouxe uma revolução na interpretação da realidade: não nos podemos mais contentar em analisar o mundo a partir da criação in illo tempore [em dado tempo], mas devemos compreendê-lo a partir da escatologia, do futuro presente em Jesus ressuscitado. Nele se realizou no tempo o que para nós só se dará no fim do tempo. Ele é a meta antecipada. A partir do fim, devemos entender o começo. O plano de Deus só se torna transparente e compreensível se for considerado a partir de sua realização e de seu termo.”[10]
Com o advento de Cristo e sua ressurreição, a referência deixa definitivamente de ser o passado: “O cristianismo não se apresentou ao mundo como uma religião que vive da saudade de um fato feliz do passado. Mas surgiu como anúncio e celebração da alegria de uma presença, a do Cristo ressuscitado.”[11]
O tempo sagrado passa a ser a articulação passado-presente-futuro, com o futuro como norte; e o presente deixa de ser tempo de lamentação e busca de soluções escapistas, pois o Cristo está nele: “Com a ressurreição, Cristo não deixou esse mundo. Ele penetrou-o de forma mais profunda e agora está presente em toda a realidade, do modo como Deus mesmo está presente a todas as coisas: ‘Eu estarei convosco todos os dias até a consumação do mundo’ (Mt 28,20). A fé cristã vive desta presença e desenvolveu uma ótica que lhe permite ver toda a realidade penetrada pelos revérberos da ressurreição. O mundo tornou-se, devido à ressurreição de Cristo, diáfano e transparente.”[12]
Deus irrompe no mundo e de dentro do mundo com a ressurreição de Jesus para caminhar com a humanidade. É disso que trata a liturgia cristã, segundo Cipriano Vagaggini[13]: “(…) o sinal litúrgico, no regime efetivamente querido por Deus, é o lugar de encontro entre Deus e o homem, onde Deus desce ao homem e o homem sobe a Deus”.[14]
Portanto, a liturgia, de cada missa ao Ano Litúrgico como um todo, “não espelha a ‘vida’ terrena do Senhor, mas o seu ‘mistério’”, ou o mistério deste encontro.[15]
É um paradoxo: em casa missa, ao longo do Ano Litúrgico, celebramos uma memória, mas não há saudade; festejamos uma presença, mas a Pessoa não está ali em carne e osso; calamos diante do Mistério, que está bem diante de nós, a vida, paixão, morte e ressurreição de Deus feito Homem.
No ano litúrgico acompanhamos a vida de Jesus: ouvimos na Liturgia da Palavra o relato sobre o anúncio de sua chegada, seu nascimento, infância, juventude, seus anos de ministério, a perseguição que lhe move o poder político-religioso, sua prisão, tortura, morte e ressurreição. No entanto, não se trata de um relato histórico-biográfico, mas do mistério da encarnação de Deus e sua Presença entre nós, especialmente sua autodoação amorosa a toda a humanidade de todos os tempos.
Boff resume este mistério espelhado, resgatado, anunciado nas missas e no Ano Litúrgico como um todo. Não se trata de um conjunto de mistérios inacessíveis aos a nós, homens e mulheres comuns, mas de um único mistério: “o mistério da autodoação de Deus à criação, especificamente, ao ser humano, como Fonte, como verdade e como Amor.”[16]
Portanto, o tempo sagrado para o cristão, organizado pelo Ano Litúrgico é memória (passado), interpelação (presente) e profecia (futuro) a partir deste mistério.[17] Este futuro (profecia) não é a promessa de restauração do paraíso terrestre do livro do Gênesis, mas a da instalação do Reino de Deus anunciado e insinuado pela presença de Cristo, pois nele mesmo reconciliou-se nele toda a criação (cf. Col 1,20 e 2Cor 5,19). Ao mesmo tempo ele apontou para um futuro no qual a relação de bilhões e bilhões de pessoas –e de todo o cosmo– chegará ao seu Cume e Fonte, o Amor universal (Teilhard de Cardin foi um dos mais agudos formuladores desta trajetória ofertada por Cristo).
Isso significa que uma linha contínua, a representação mais costumeira da passagem do tempo, desde os bancos escolares, com os eventos sucedendo-se um após o outro, não é a mais adequada ao tempo sagrado no cristianismo.
O tempo kairós (tempo oportuno ou evento em grego), tempo da irrupção de Deus na história, talvez seja melhor representado por uma espiral na qual o sagrado atravessa o tempo histórico, que rompe com a dinâmica do círculo das religiões arcaicas.[18]
É inserida exatamente nesta representação que está organizada a sequência dos anos litúrgicos e de cada um deles em particular. Quando, a cada três anos, apresentam-se os mesmos textos bíblicos na Liturgia da Palavra dominical (ou a cada dois anos nos dias feriais, durante a semana e o sábado), eles não são propriamente “os mesmos”. Ouvimos Lucas, 16,1-13 no 25º Domingo do Tempo Comum do Ano C (o texto conclui-se com a escolha que Jesus apresenta entre servir a Deus ou ao dinheiro); mas não é apenas um texto “histórico”, de um fato passado, apesar de ele ter acontecido em determinado momento ao redor do ano 30 da era cristã. A cada três anos esta Palavra apresenta-se como memória, interpelação e profecia para cada pessoa, comunidade, país e toda a parcela da humanidade reunida nas missas, mas na verdade como indagação dirigida efetivamente a todo o planeta.
Por isso, quando escuto aquela passagem de Lucas sobre servir a Deus ou ao dinheiro e volto a escutá-la três anos depois, ela já não é “a mesma” –nem eu sou. Pois a Palavra lê a mim, uma pessoa biograficamente diferente três anos depois; ela lança luz sobre minhas relações familiares que estão modificadas (ou, por vezes estagnadas, mas a estagnação por três anos é igualmente uma mudança); questiona a comunidade de fé que se reúne para a missa em sua caminhada de seguimento e, ao longo de três anos, muita água passa debaixo da ponte na vida dessa comunidade; refere-se a uma cidade concreta, por exemplo, São Paulo, que é muito diferente se governada por Fernando Haddad ou por João Doria; chacoalha um país concreto que é radicalmente distinto no contexto de um governo de esquerda com políticas sociais e num governo de golpista de direita que as pisoteia, com taxas de desemprego dramáticas; aborda um planeta que, três anos depois, está convulsionado pela brutal crise dos refugiados ou pela eleição de Trump; convoca uma Igreja que é a mesma, mas muito com uma face redesenhada, pela liderança de Francisco, depois de Bento XVI. A meditação sobre a escolha de servir a Deus ou ao dinheiro nestes contextos históricos apresenta-se com novas dimensões, opções concretas e desafios, três anos passados.
Os judeus têm uma bonita imagem para esta agudeza do texto bíblico: é fogo preto sobre fogo branco. É o fogo preto das letras impressas sobre o fogo branco dos espaços entre elas. Ambos queimam, com suas afirmações, interrogações e silêncios, como urgência da vocação de Deus a cada pessoa e à humanidade.
Isso não quer dizer que seja tudo novidade absoluta. Pois o mergulho no ser humano, que chegou a profundidades inéditas com as descobertas de Freud e da psicanálise revelam-nos que passamos na vida, às vezes por anos a fio, pelos mesmos temas, as mesmas questões atualizadas pela caminhada pessoal. Assim o é igualmente com as famílias, as comunidades, o planeta todo: o tema da exploração da imensa maioria da humanidade pelos ricos e poderosos está dado desde a Antiguidade, com formatos distintos de acordo com a evolução dos arranjos das sociedades, desde a escravidão à servidão e à venda da força de trabalho, por exemplo. Mas nunca é repetição, pois dobramo-nos sobre os mesmos temas à luz da história vivida e refletida –às vezes sem conseguir avanços significativos sobre eles, por nossos impasses, barreiras e travas desde individuais até nacionais e globais. Encarando a história como uma espiral, tais questões são revistas a partir de um “lugar” espaço-tempo diferente.
A Palavra na liturgia alcança-nos, assim, na caminhada na história. Sua representação como espiral pode ajudar a entender esta relação –no caso deste artigo, entre a Palavra (a Liturgia da Palavra dominical) e a história. O tempo caminha como uma linha contínua espiralada, atravessada por uma linha de Palavra (por exemplo, o texto usado como exemplo aqui, Lc 16, 1-13, do 25º domingo do Tempo Comum).
Veja a figura acima de novo; observe a linha (o texto de Lucas) passando pelo mesmo “lugar” ao longo da história pessoal, familiar, comunitária, nacional ou global; no entanto, este lugar está deslocado no tempo à luz dos fatos que se sucedem, sendo interrogado pela mesma Palavra viva em cada ponto de contato, na ultrapassagem de cada Ano Litúrgico, de cada Eucaristia.
O TEMPO CIRCULAR -A VISÃO DOS CATÓLICOS CONSERVADORES
A concepção conservadora do tempo sagrado é predominantemente inspirada na visão platônica do tempo circular, a-histórico, a partir sobretudo de Santo Agostinho. É uma visão marcadamente pessimista em relação à humanidade e que deitou influências profundas sobre o cristianismo –o exemplo mais recente desta influência é o agora papa emérito Bento XVI.
Apesar de o pensamento grego ter se tornado constitutivo do cristianismo ao longo da história (polarizado entre o platonismo e o aristotelismo), o Concílio Vaticano II buscou retomar a originalidade do pensamento judaico –Jesus Cristo era completamente imerso no judaísmo, sendo considerado um profeta, um sábio (rabi) em seu tempo. É desta fonte que bebeu, a partir dos anos 1960/70, a teologia latino-americana.
Foi um longo tempo até a retomada das concepções primevas do cristianismo. Por séculos, sobretudo a partir da Idade Média, o ano litúrgico tornou-se “uma série de ‘exemplos’ para serem imitados ou ‘representações’ de fatos históricos da vida de Cristo a serem propostos ao povo”[19], tornando a celebração da missa um rito de linha “exemplar moral”.[20]
Segundo tal concepção, a liturgia é sempre a mesma e tende a veicular um Cristo despido de sua mensagem original, que se apresenta como “palavra congelada” de conteúdos “edificantes”, regras morais inflexíveis, entregue pelos sacerdotes aos fiéis em “sermões” imutáveis no espaço-tempo, voltados à devoção passiva e resignada. Para os rigoristas, tudo se transforma em “norma moral absoluta” –para usar a expressão que, tomada de uma encíclica de João Paulo II, usaram à farta os quatro cardeais rebelados contra o Vaticano II, na recente carta de desafio ao Papa.
A referência dos conservadores é o Concílio de Trento e toda a construção sistemática e dogmática afastada da fonte original (os Evangelhos) e baseada em manuais, catecismos e fórmulas repetidas ad nauseum. Esta visão de tempo circular significa um rompimento com a tradição judaico-cristã permeada pela visão do tempo-história linear: “(…) a teologia sistemática se endereça por uma caminho de desistorização sempre mais acentuada”.[21]
O conservadorismo católico tem buscado restaurar a liturgia anterior ao Concílio Vaticano II na qual: havia um único celebrante (depois do Concílio, todos os membros da assembleia reunida passaram a ser igualmente celebrantes e o padre apenas preside); o sacerdote rezava de costas para as pessoas, em latim, enquanto aos membros desta assembleia manietada restava entregar-se a suas devoções particulares ou a seus ensimesmamentos (era comum que as pessoas rezassem o terço durante as celebrações, pois a missa era “do padre”); a missa era um cerimonial de “adoração eucarística”, no qual as pessoa prostravam-se diante de um Deus aprisionado pela hierarquia em vez de dialogarem com seu Irmão, o Homem-Deus vivo e atuante; a Liturgia da Palavra era praticamente irrelevante, posto que os textos bíblicos eram lidos igualmente em latim e, portanto, incompreensíveis para quase toda a assembleia. Pode parecer incrível, mas os integristas querem mesmo que este “modelo” ritual seja restaurado. De fato, existe hoje uma “forma extraordinária do Rito Romano” que é a missa tridentina, em referência ao Concilio de Trento (1545-1563) estabelecido pelo Papa Bento XVI.
O Papa Francisco tem atuado na Congregação para o Culto Divino e buscado desarticular a ofensiva conservadora das últimas décadas e seus protagonistas, tirando o controle do órgão que normatiza o rito católico; vários bispos e assessores foram afastados e aguarda-se para breve o afastamento de seu prefeito, o cardeal Robert Sarah, um dos líderes da “reforma da reforma”.
Estas duas concepções do tempo sagrado, a linear, histórica, e a circular, desistorizada, estão em choque neste exato momento e são símbolos e veículos de dois projetos distintos de Igreja.
Um deles enxerga o mundo com um “vale de lágrimas”, o corpo como espetáculo de “corrupção” e o povo como incapaz de conhecer os “mistérios”, sendo a ele destinado um discurso moralizador, para manter todos em cabresto curto: “na Igreja dos séculos posteriores [aos primeiros anos], o dogma, isto é, a ‘verdade’, é chamado de ‘mistério’, enquanto que não poderia nunca revelar-se à inteligência nem mesmo do fiel”.[22]
Outro projeto acredita que é urgente “recuperar a simplicidade originária do cristianismo”[23] e entender que o mundo é criação amorosa de Deus e é nele que Cristo conviveu e convocou os pobres para caminhar em direção ao Reino, em fé, esperança e amor-alegria. Pois “o mundo não é apenas o irremediável aí de nosso ser, ele é também o lugar dos primeiros acenos e encontros de um eterno amor. Este mundo nunca deixará de ser finito, banal, profano e, em si mesmo, desimportante… tenda precária, imprópria e indigna para aquele que imaginamos nas alturas inalcançáveis ou nas profundezas impenetráveis, mas o único lugar em que ora é possível a Deus, ainda que humildemente retraído, estar junto dos homens e aos homens estarem perto de Deus”.[24]
[por Mauro Lopes]
_____________________
[1] Rigo, Enio José, Tempo litúrgico, Paulinas, São Paulo, p. 21-22
[2] Eliade, Mircea, O Sagrado e o Profano, Martins Fontes, São Paulo, 2008, p. 63-64
[3] Eliade, idem, p.82
[4] Eliade, idem, p;64
[5] Bergamini, Augusto, Cristo, festa da Igreja, Paulinas, São Paulo, 2004, P. 45-46
[6] Puech, Henri Charles, La Gnose et les Temps, Eranos-Jahrbuch, Paris, 1951, p. 60-61, in Eliade, Mircea, op cit. p. 96-97
[7] Eliade, idem, p. 97
[8] Bergamini, idem, p. 48
[9] Bergamini, idem, p. 57
[10] Boff, idem, p.153
[11] Boff, Leonardo, Jesus Cristo libertador, Editora Vozes, Petrópolis, 2003, p. 152
[12] Boff, idem, p. 153
[13] A edição original da obra de Cipriano Vagaggini, O sentido teológico da liturgia, é de 1957 e foi uma das principais fontes para a renovação litúrgica do Vaticano II, que em seu livro condensou todas as intenções ao mesmo tempo reformadoras e de retorno à originalidade das celebrações dos primeiros tempos, que apareceram desde o início do século XX, no Movimento Litúrgico. Foram anos de vida intensa na Igreja, em meio às perseguições dos conservadores que defendiam a manutenção da missa tridentina (conforme o rito definido no espírito do Concílio de Trento, em 1570).
[14] Vagaggini, Cipriano, O sentido teológico da liturgia, Edições Loyola, São Paulo, 2009, p.82
[15] Bergamini, idem, p. 82
[16] Boff, Leonardo, Experimentar Deus – a transparência de todas as coisas, Verus Editora, Campinas, 2002, p. 141
[17] Cf. Bergamini, op cit, p. 488
[18] Bergamini, idem, p. 48
[19] Bergamini, idem, p. 72-73
[20] Bergamini, idem, p. 77
[21] Bergamini, idem, p. 72
[22] Bergamini, idem, p. 71
[23] Boff, Experimentar Deus, p. 141
[24] NERY, Prudente, A Vida Consagrada à luz do Mistério trinitário, in Convergência 31/294, Jul-Ago 1996, pp. 351-353.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Os católicos estão celebrando seu Ano Novo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU