Islã, cristianismo e a polêmica sobre o burkini. Artigo de Vito Mancuso

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29 Agosto 2016

"É simplista dizer que, à liberdade de ir à praia de biquíni, deve corresponder a de ir com o burkini: no primeiro caso, de fato, assiste-se a um movimento de libertação do corpo, enquanto, no segundo, de subserviência."

A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, professor da Universidade de Pádua, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 26-08-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Segundo ele, "as religiões devem se converter à ideia de que não representam o ponto de chegada da humanidade, mas de que são um instrumento a serviço do bem e da justiça, os quais são os verdadeiros pontos de chegada a que continuamente devemos tender".

Eis o texto.

A controvérsia sobre a proibição do burkini e a polêmica sobre as irmãs na praia, certamente, teve o mérito de recordar a raiz comum do cristianismo e do Islã em torno da questão da roupa em que os corpos das mulheres devem ser mantidos. O imã de Florença, Izzedin Elzir, teve uma feliz intuição ao publicar na sua página no Facebook, como comentário, uma foto de algumas religiosas no mar?

Para julgar, basta ler aquilo que, a esse respeito, São Paulo ordenava (neste artigo, vocês me desculparão as longas citações, mas acho que são importantes): "Quero que vocês saibam que a cabeça de todo homem é Cristo, que a cabeça da mulher é o homem, e a cabeça de Cristo é Deus. Todo homem que reza ou profetiza de cabeça coberta, desonra a sua cabeça. Mas toda mulher que reza ou profetiza de cabeça descoberta, desonra a sua cabeça; é como se estivesse com a cabeça raspada. Se a mulher não se cobre com o véu, mande cortar os cabelos. Mas, se é vergonhoso para uma mulher ter os cabelos cortados ou raspados, então cubra a cabeça. O homem não deve cobrir a cabeça, porque é a imagem e a glória de Deus; mas a mulher é a glória do homem. Pois o homem não foi tirado da mulher, mas a mulher foi tirada do homem. E o homem não foi criado para a mulher, mas a mulher foi criada para o homem. Sendo assim, a mulher deve trazer sobre a cabeça o sinal da sua dependência, por causa dos anjos" (1Coríntios 11, 3-10 [versão da Bíblia Pastoral]).

Aqui, São Paulo diz três coisas específicas: 1) que a mulher está submetida ao homem, assim como o homem está submetido a Cristo, e Cristo está submetido a Deus, de acordo com uma clara hierarquia ascendente; 2) que a mulher não só está submetida, mas também está finalizada ao homem, no sentido de que foi criada para o homem, do qual é chamada a ser a "glória"; 3) que a mulher deve cobrir a sua cabeça em sinal de aceitação da autoridade a que está submetida.

O Islã reapresenta a mesma abordagem. A superioridade do homem em relação à mulher é claramente afirmada pelo Alcorão: "Os homens têm um grau sobre elas" (sura 2, 227). Na mesma perspectiva, a sura 4, intitulada "As mulheres", afirma: "Os homens são os protetores das mulheres, porque Deus dotou uns com mais (força) do que as outras, e pelo sustento do seu pecúlio. As boas esposas são as devotas, que guardam, na ausência (do marido), o segredo que Deus ordenou que fosse guardado. Quanto àquelas, de quem suspeitais deslealdade, admoestai-as (na primeira vez), abandonai os seus leitos (na segunda vez) e castigai-as (na terceira vez); porém, se vos obedecerem, não procureis meios contra elas. Sabei que Deus é Excelso, Magnânimo" (4, 34 [tradução de Samir El Hayek]).

Quanto à finalização da mulher em relação ao homem, assim escreve o Alcorão: " Aos homens foi abrilhantado o amor à concupiscência relacionada às mulheres, aos filhos, ao entesouramento do ouro e da prata, aos cavalos de raça, ao gado e s sementeiras" (3, 14). E basta pensar na concepção islâmica do paraíso em que mulheres jovens e bonitas estarão sempre à disposição dos fiéis homens, para ver novamente confirmada tal inegável centralidade masculina.

A partir daí, assim como para São Paulo, decorre, para o Alcorão, o tipo de roupa a que o corpo feminino deve se conformar: "Ó Profeta, dize a tuas esposas, tuas filhas e às mulheres dos fiéis que (quando saírem) se cubram com as suas mantas; isso é mais conveniente, para que distingam das demais e não sejam molestadas; sabei que Deus é Indulgente, Misericordiosíssimo" (33, 59).

Portanto, parece ser claro que, tanto para o cristianismo quanto para o Islã, o vestuário feminino ordenado não é uma simples questão de tradição, muito menos de gosto, mas pressupõe uma concepção precisa da relação homem-mulher sob a insígnia da subordinação desta última. Certamente, não é por acaso que, no Ocidente, a afirmação da plena igualdade jurídica homem-mulher teve como consequência a mutação do vestuário feminino, do qual desapareceu todo sinal de subordinação, incluindo o véu sobre a cabeça, em relação ao qual, de acordo com as severas disposições de São Paulo, todas as mulheres estavam obrigadas até apenas algumas décadas atrás.

Por trás do burkini, portanto, e, em geral, por trás de todo tipo de velatura mais ou menos ampla (com faixa, xale, foulard, véu simples, véu total incluindo o rosto), está a ideia de que a mulher é inferior ao homem e a ele está submetida.

Por isso, na minha opinião, o primeiro-ministro francês, Manuel Valls, não errou ao dizer que o burkini "é a tradução de um projeto político, de contrassociedade, fundado notoriamente na submissão da mulher" e que, portanto, "não é compatível com os valores da França e da República".

E, como a igualdade homem-mulher também é um valor nosso, eu acho que esse traje e, em geral, o vestuário que ele traduz não é compatível nem com a Itália. É simplista dizer que, à liberdade de ir à praia de biquíni, deve corresponder a de ir com o burkini: no primeiro caso, de fato, assiste-se a um movimento de libertação do corpo, enquanto, no segundo, de subserviência.

E a liberdade, se a entendemos seriamente, nunca é apenas abstrata, ou seja, fazer o que se quiser, mas sempre concreta, isto é, fazer o que é certo e faz bem, e não há dúvida de que a libertação do corpo é um bem, também para a libertação da mente que decorre dela.

O cristianismo e o Islã, assim como o judaísmo e as outras religiões, portanto, são um instrumento de opressão? Podem ser, não há dúvida, a história demonstra isso, assim como, aliás, a história mostra que elas também podem se tornar instrumento de libertação, se vividas corretamente: uma libertação da opressão social (pense-se na teologia da libertação na América Latina) e uma libertação do próprio egocentrismo e das suas maldades (pense-se na história da santidade e da mística).

O ponto essencial é compreender que estamos todos inseridos em um processo do qual ninguém, nem mesmo, obviamente, a laicidade francesa, detém o ponto de vista absoluto e a cuja evolução todos são chamados a contribuir.

Dizia o grande teólogo Raimon Panikkar que "as religiões devem se converter". É verdade: as religiões devem se converter à ideia de que não representam o ponto de chegada da humanidade, mas de que são um instrumento a serviço do bem e da justiça, os quais são os verdadeiros pontos de chegada a que continuamente devemos tender.

O imã de Florença comparou as freiras cristãs com as mulheres muçulmanas, mas se esqueceu de que as freiras representam um grupo particular de mulheres que livremente escolheu viver em pobreza, castidade e obediência, e cujo vestuário remete ao seu estilo de vida alternativo. Porém, estão bem longe de representar todas as mulheres ocidentais, que igualmente se orientaram livremente de acordo com estilos de vida e de vestuário bem diferentes.

O Islã, que não tem freiras, em certo sentido, tende a tornar um pouco freiras todas as mulheres que a ele aderem. Porém, isso não é compatível com a ideia de mulher a que o Ocidente chegou. E os muçulmanos e as muçulmanas que querem viver nele deveriam, a meu ver, reconhecer isso.

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