22 Novembro 2016
“Doutrina e pastoral se encontram no mesmo amor pela verdade. Só que a verdade não é uma abstração, mas se integra no caminho histórico de cada vivente. Portanto, não se trata de adequar a pastoral à doutrina, mas de respeitar a finalidade pastoral, inerente à própria doutrina. Isto é, a doutrina deve ser sempre interpretada e contextualizada; deve ser sempre proposta na sua integridade, mas à luz da mudança das exigências e do contexto, a serviço da missão evangelizadora da Igreja. Só assim o anúncio do Evangelho não será teórico nem abstrato, mas chegará a todos e continuará vinculado à vida real das pessoas.”
A opinião é do jesuíta italiano Bartolomeo Sorge, ex-diretor da revista La Civiltà Cattolica e diretor emérito da revista Aggiornamenti Sociali, em artigo publicado na edição de novembro de 2016 desta mesma publicação. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A eleição do Papa Francisco foi bem acolhida por toda parte e por todos com esperança e exultação. Era inevitável que, mais cedo ou mais tarde, com os aplausos e os consensos, viessem também as críticas. Algumas delas são tolas e incipientes, e não vale a pena sequer acolhê-las. Outras dizem respeito ao estilo de vida do novo papa e eram mais ou menos descontadas, tanto que circulam de bom grado até mesmo entre os bispos.
Diz um deles: “É bom que Francisco queira parecer pobre, mas usar uma veste transparente que mostra o preto das calças não é descuido?". Outras críticas são mais sérias e se concentram no modo de governar do papa ou nos repetidos “tapas” dirigidos aos sacerdotes. Assim, um bispo observa: “Os gestos de misericórdia do papa para com os deserdados vão bem, mas e todo o resto? O que dizer e fazer com o catecismo, o Direito Canônico, os seminários, as paróquias, as leis cada vez mais distantes do sentimento cristão?”. E outro acrescenta: “Ele fala tanto da sinodalidade, mas depois decide sozinho. Ele diz que é preciso descentralizar, mas nunca se tinha visto uma centralização pessoal do governo tão forte” (Accattoli, 2016, p. 320).
Depois, também há outras críticas, bastante sérias, que vieram especialmente depois da publicação da exortação apostólica pós-sinodal Amoris laetitia. São críticas que vêm de pessoas iluminadas e fiéis, feitas sem arrogância e que deixam escapar uma evidente ou mal disfarçada contrariedade. Não é possível abordar todas elas. Escolhemos duas delas, que suscitaram um certo debate e fazem aquela que talvez seja a interrogação de fundo do novo pontificado: as inovações do Papa Francisco estão em ruptura com o Magistério anterior da Igreja?
O primeiro que se fez essa pergunta foi Robert Spaemann, professor de filosofia da Universidade de Munique, considerado um dos maiores filósofos e teólogos católicos alemães, amigo de João Paulo II e de Bento XVI (Spaemann, 2016). Ele denuncia, sem meias palavras, que a Amoris laetitia constitui uma flagrante fratura com todo o Magistério anterior da Igreja.
O número 305 (com a nota 351) – afirma Spaemann – contradiz abertamente aquilo que João Paulo II ensina no n. 84 da Familiaris consortio (1981). De fato, no n. 305 da Amoris laetitia, se lê: “Por causa dos condicionalismos ou dos fatores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio de uma situação objetiva de pecado – mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja”; na nota 351, depois, especifica-se que, “em certos casos”, essa “ajuda da Igreja” também poderia ser a admissão aos sacramentos: “o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor”, e a Eucaristia “não é um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos”.
Essa possibilidade de dar a comunhão a divorciados recasados, levantada pelo Papa Francisco, ao contrário, foi categoricamente excluída por João Paulo II na Familiaris consortio: a Igreja “reafirma a sua práxis, fundada na Sagrada Escritura, de não admitir à comunhão eucarística os divorciados que contraíram nova união. Não podem ser admitidos, a partir do momento em que o seu estado e condições de vida contradizem objetivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja, significada e atuada na Eucaristia” (n. 84). Portanto, Spaemann (2016) conclui: as frases do Papa Francisco são “sentenças decisivas, que mudam de forma substancial o ensinamento da Igreja. Nesse caso, há apenas uma clara decisão entre o sim e o não. Dar ou não dar a comunhão: não há meio termo”.
Nessa mesma linha crítica move-se o jornalista católico Aldo Maria Valli, apreciado vaticanista do TG1. A lógica do cristão – escreve ele – é do “et et”, não do “aut aut”. Não é mais assim com o Papa Francisco. A sua lógica é diferente: a do “non solum, sed etiam”, ou seja, do “não só, mas também”. Pode-se dar a comunhão aos divorciados recasados? “Sim, mas também não; não, mas também sim”: “No documento [do Papa Francisco], com efeito, ambas as conclusões são legitimadas. Leva a isso a lógica do caso a caso, filha, por sua vez, da ética da situação. Devo-me considerar um pecador? Sim, mas também não. Não, mas também sim. Depende”. E Valli conclui: “A Igreja do ‘mas também’ desposa exatamente a lógica do mundo, não a do Evangelho de Jesus E, de fato, recebe os aplausos do mundo. Mas nós sabemos que isso não é um bom sinal. O cristão, quando é coerente, é perseguido pelo mundo, não aplaudido” (Valli, 2016; cfr. também Grillo, 2016).
Essas críticas de fundo ao Papa Francisco, defendidas pelos dois autores citados, são amplamente difundidas na Igreja. O que mais surpreende é que elas repropõem as mesmas tensões que já surgiram entre os Padres durante os dois Sínodos sobre a família. O fato de elas ressurgirem hoje, depois da publicação da exortação apostólica Amoris laetitia, oferece a oportunidade para explicar melhor o pensamento do Papa Francisco sobre pontos de decisiva importância para compreender a novidade do seu pontificado.
De fato, estamos convencidos de que essas críticas se devem ao fato de que o Papa Francisco olha para a Igreja, o mundo e os novos desafios de hoje com a mesma “delicadeza com que Deus as olha”, à luz do Evangelho da misericórdia, inspirando-se, como ele mesmo disse, no “realismo de Deus” (Papa Francisco, 2016, n. 2). Em outras palavras, o Papa Francisco – na fidelidade ao Concílio Vaticano II – abordou desde o início do pontificado, de modo inovador, três tensões que interpelam o serviço apostólico no nosso tempo: as tensões entre doutrina e pastoral, entre consciência subjetiva e objetividade da lei, e entre misericórdia e justiça.
Em substância, o modo em que essas tensões são vividas e as posições críticas assumidas a esse respeito revelam as resistências ou as dificuldades de compreender o convite do Papa Bergoglio a uma “Igreja na saída”, preferindo permanecer ancorados nas certezas tradicionais, bem conservadas pelos velhos e sólidos “muros do templo”.
O papa já havia dito em um discurso aos membros da Congregação para a Doutrina da Fé: “A doutrina tem o único propósito de servir a vida do Povo de Deus e pretende assegurar à nossa fé um fundamento certo”, evitando a tentação se apropriar dela, talvez para domesticá-la. Dito isso, deve-se vencer a tendência difusa de “entender a doutrina em sentido ideológico ou de reduzi-la a um conjunto de teorias abstratas e cristalizadas” (Papa Francisco, 2014).
Diante das graves interrogações concretas das pessoas do nosso tempo, a pastoral não está em usar um esquema teórico, já perfeitamente estruturado, em cujas caixinhas seja possível colocar os problemas individuais para resolvê-los; ao contrário, está em descobrir a presença de Deus em uma determinada situação e compreender o que Ele nos pede aqui e agora. De fato, é Deus que vem ao encontro do homem na sua história pessoal, não menos do que ele fez na história de Israel: “A Sua Palavra veio a nós não como uma sequência de teses abstratas, mas como uma companheira de viagem que nos sustentou no meio da dor, nos animou na festa e sempre nos indicou a meta do caminho” (Papa Francisco, 2016). Portanto, a preocupação pastoral não deve ser vista em contraposição à doutrinal.
Doutrina e pastoral se encontram no mesmo amor pela verdade. Só que a verdade não é uma abstração, mas se integra no caminho histórico de cada vivente. Portanto, não se trata de adequar a pastoral à doutrina, mas de respeitar a finalidade pastoral, inerente à própria doutrina. Isto é, a doutrina deve ser sempre interpretada e contextualizada; deve ser sempre proposta na sua integridade, mas à luz da mudança das exigências e do contexto, a serviço da missão evangelizadora da Igreja. Só assim o anúncio do Evangelho não será teórico nem abstrato, mas chegará a todos e continuará vinculado à vida real das pessoas.
A segunda tensão que o Papa Francisco aborda de modo inovador é entre consciência subjetiva e objetividade da lei. Como é possível – perguntam-se os críticos – que a situação ou as circunstâncias possam permitir que se faça em sã consciência aquilo que é “irregular” e que a lei moral qualifica como intrinsecamente mau?
O Papa Francisco responde: “A Igreja possui uma sólida reflexão sobre os condicionamentos e as circunstâncias atenuantes. Por isso, já não é possível dizer que todos os que estão em uma situação chamada ‘irregular’ vivem em estado de pecado mortal, privados da graça santificante. Os limites não dependem simplesmente de um eventual desconhecimento da norma. Uma pessoa, mesmo conhecendo bem a norma, pode ter grande dificuldade em compreender ‘os valores inerentes à norma’ ou pode encontrar-se em condições concretas que não lhe permitem agir de maneira diferente e tomar outras decisões sem uma nova culpa” (AL, n. 301).
Por isso, o Papa Francisco, para resolver a tensão entre consciência subjetiva e objetividade da lei, insiste na necessidade de recorrer ao discernimento e ao diálogo. O discernimento é necessário não só nos casos mais difíceis, mas também deveria ser o estilo pastoral ordinário: trata-se de se abrir à Palavra de Deus para orientar a vida concreta de cada fiel. Ou seja, deve-se levar em consideração não só a objetividade da lei, mas também a complexidade das situações. Não é possível pode dar uma mesma avaliação moral de um matrimônio fracassado, apesar de todos os esforços para salvá-lo, ou de um matrimônio interrompido culpavelmente para sempre; por sua vez, é diferente o caso de uma nova união, contraída na certeza em consciência de que a primeira união era inválida.
Não existe, portanto, uma norma geral capaz de cobrir todos os casos particulares. Por isso, é necessário não só o discernimento, mas também o diálogo, na convicção de que o pensamento humano é sempre incompleto. Dialogar significa aceitar a diversidade, acolher aqueles que têm posições diferentes, dar-se conta das diversidades existentes, que não é possível julgar do mesmo modo. Nesse ponto, insere-se o discurso sobre a terceira tensão que o Papa Francisco aborda de modo inovador: a tensão entre misericórdia e justiça.
“A ênfase posta na misericórdia – explica o papa – nos coloca diante da realidade de modo realista, mas não com um realismo qualquer, mas com o realismo de Deus” (Papa Francisco, 2016, n. 2). Essa referência é a verdadeira resposta do Papa Francisco aos seus críticos. “Não se trata – continua – de não propor o ideal evangélico, não, não se trata disso. Ao contrário, [o realismo de Deus] nos convida a vivê-lo dentro da história, com tudo o que isso implica. E isso não significa não ser claros na doutrina, mas evitar cair em juízos e atitudes que não assumem a complexidade da vida. [...] Compreendo aqueles que preferem uma pastoral mais rígida que não dê lugar a qualquer confusão, compreendo-os. Mas acredito sinceramente que Jesus quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito espalha no meio da fragilidade: uma Mãe que, no momento mesmo em que expressa claramente o seu ensinamento objetivo, ‘não renuncia ao bem possível, embora corra o risco de se sujar com a lama da estrada’. [...] Jesus se sujou mais. Não era um ‘limpo’, mas ia ao encontro das pessoas, entre as pessoas e assumia as pessoas como elas eram, não como deviam ser” (ibid.).
A misericórdia, portanto, não é contrária à verdade, não é “bondade” ou sentimentalismo, mas encarna a verdade na vida. É isso que Deus faz em relação ao pecador, quando, todas as vezes, lhe oferece mais uma possibilidade para se arrepender, se converter e crer. “Se Deus Se detivesse na justiça, deixaria de ser Deus; seria como todos os homens que clamam pelo respeito da lei. A justiça por si só não é suficiente, e a experiência mostra que, limitando-se a apelar para ela, corre-se o risco de a destruir. Por isso Deus, com a misericórdia e o perdão, passa além da justiça. Isso não significa desvalorizar a justiça ou torná-la supérflua. Antes pelo contrário! Quem erra, deve descontar a pena; só que isso não é o fim, mas o início da conversão, porque se experimenta a ternura do perdão. Deus não rejeita a justiça. Ele engloba-a e supera-a em um evento superior em que se experimenta o amor, que está na base de uma verdadeira justiça” (Papa Francisco, 2015, n. 21).
Deixemos a conclusão ao cardeal Schönborn. “Francisco deu um passo importante, obrigando-nos a esclarecer algo que tinha ficado implícito na Familiaris consortio, sobre o laço entre a objetividade de uma situação de pecado e a vida de graça diante de Deus e da sua Igreja e, como consequência lógica, a imputabilidade concreta do pecado” (Spadaro, 2016, p. 146).
Tal passo à frente consiste na “tomada de consciência de uma evolução objetiva, a dos condicionamentos próprios das nossas sociedades. É uma inserção mais ampla no discernimento dos elementos que suprimem ou atenuam a imputabilidade e no discernimento de um caminho objetivamente significativo rumo à plenitude do Evangelho. Embora este ainda não seja o ideal objetivo, tal não culpabilidade acompanhada por pequenos passos em direção àquilo que somos chamados não é pouco ao olhar do Bom Pastor. Estamos no coração mesmo da vida cristã. Esse processo dinâmico tem objetivamente um valor significativo que convém levar em consideração em um discernimento permeado de misericórdia, quando se trata de se levantar a questão da ajuda sacramental da Igreja” (ibid., p. 147).
Eis, portanto, onde está a verdadeira novidade do pontificado do Papa Francisco: não na ruptura com o Magistério anterior da Igreja, mas no seu desenvolvimento posterior, à luz do realismo de Deus. É o Evangelho da misericórdia que pede que se reconheça a complexidade dos condicionamentos que, na sociedade de hoje, limitam a capacidade da decisão de muitas consciências.
Magistério
Papa Francisco (2016). Exortação apostólica pós-sinodal Amoris laetitia sobre o amor na família, 19 de março.
Papa Francisco (2016). Discurso na abertura do Congresso Eclesial da Diocese de Roma, 16 de junho.
Papa Francisco (2015). Misericordiae vultus, Bula de proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, 11 de abril.
Papa Francisco (2014). Discurso aos participantes da Plenária da Congregação para a Doutrina da Fé, 31 de janeiro.
João Paulo II (1983). Exortação apostólica Familiaris consortio sobre a função da família cristã no mundo de hoje, 22 de novembro.
Textos de referência
Accattoli L. (2016). “Como se expressa o mal-estar entre os bispos e o papa”, in Il Regno Attualità, n. 10, p. 319-320.
Grillo A. (2016). “Uma Igreja do ‘mas também’? Os ideais de um catolicismo simplificado”, in Come se non, 31 de maio.
Spadaro A. (2016). “Conversa com o cardeal Schönborn sobre a Amoris laetitia”, in La Civiltà Cattolica, (III), 3.986, p. 132-152.
Spaemann R. (2016). Amoris laetitia: "É o caos erigido a princípio com um canetaço". Entrevista com Robert Spaemann.
Valli A. M. (2016). “A Igreja e a lógica do ‘mas também’”, 28 de maio.
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Doutrina e pastoral: a propósito de algumas críticas recentes ao Papa Francisco. Artigo de Bartolomeo Sorge - Instituto Humanitas Unisinos - IHU