04 Novembro 2016
Contrários a duas das principais medidas anunciadas pelo governo Michel Temer recentemente, os estudantes secundaristas completaram, nesta quinta-feira (3), um mês do início das ocupações de escolas públicas pelo País. Até a semana passada, registrava-se mais de mil escolas sob o comando dos estudantes. Mas uma semana depois, e 30 dias desde a primeira ocupação, o movimento secundarista é sufocado por decisões de reintegração de posse da Justiça brasileira, com direito até a técnicas de tortura.
A reportagem é de Renan Truffi, publicada por El País, 04-11-2016.
Embrião do movimento, o Paraná é o foco da maior parte das reintegrações de posse. A pedido da Procuradoria-Geral do Estado, a Justiça determinou ontem a desocupação de 45 colégios apenas em Curitiba. Entre eles está o Colégio Estadual do Paraná (CEP), maior e mais simbólico do Estado.
Esse é a segunda decisão envolve escolas da capital paranaense nos últimos dias. Um outro despacho, da juíza Patrícia de Almeida Gomes Bergonse, da 5ª Vara de Fazenda Pública, determinava que os estudantes deixassem 25 colégios imediatamente e de forma voluntária, sob pena de multa diária de R$ 10 mil. Um alto valor para estudantes que, muitas vezes, são de famílias de baixa renda.
O mesmo aconteceu em outras partes do Estado. Em São José dos Pinhas, cidade vizinha à Curitiba, foram autorizadas desocupação em 13 escolas. Em Cascavel, no interior do Paraná, os estudantes deverão deixar outros 31 colégios nos próximos dias. A estratégia capitaneada pelo governo Beto Richa (PSDB-PR) produziu efeitos e várias unidades foram liberadas, de forma espontânea, pelos secundaristas nos últimos dias. De acordo com integrantes do movimento, cerca de 300 escolas ainda estariam sob o controle dos estudantes no Paraná. Já segundo a Secretaria de Educação do Paraná, esse número está em torno de 140.
Para pressionar o governo, estudantes chegaram a ocupar ainda, na última segunda-feira (31), o prédio do Núcleo Reginal de Educação de Curitiba. Segundo relatos do grupo Advogados e Advogadas pela Democracia, que auxilia os estudantes, a Polícia Militar teria cortado os fornecimento de água, energia elétrica e alimentação. O argumento é que a corporação não iria "negociar com mascarados". Os secundaristas acabaram deixando o local após uma acordo.
Esse tipo de tática também foi utilizada, com autorização de um juiz de Direito, em Brasília. No último dia 30 de outubro, a Justiça do Distrito Federal autorizou a Polícia Militar a utilizar privação de sono, restrição de alimentos, energia e gás de cozinha para forçar a desocupação do Centro de Ensino Médio Ave Branca (Cemab), em Taguatinga Sul. Em sua decisão, o juiz Alex Costa de Oliveira instruiu a PM a utilizar “instrumentos sonoros contínuos, direcionados ao local da ocupação para impedir o período de sono”, mesmo diante da possibilidade de haver menores de idade na escola. Outra sugestão do magistrado foi restringir a entrada de alimentos, além de corte de água, energia e gás. Os estudantes desocuparam a escola no dia seguinte.
Mas há ainda resistência em outras unidades da federação. No Espírito Santo, o número de escolas ocupadas saltou, nos últimos dias, para quase 60 unidades. Já em Minas Gerais, cerca de 90 escolas estaria sob controle dos adolescentes como forma de protesto. No Distrito Federal, a Universidade de Brasília (UnB) foi ocupada como forma de apoio ao protesto.
Em várias das decisões judiciais contra os estudantes, os magistrados argumentam que as ocupações seriam ilegais e abusivas porque feririam o direito da maioria que deseja trabalhar e estudar. Mas o movimento de ocupações escolares é muito mais complexo do que as canetadas da Justiça brasileira fazem parecer.
No dia 26 de outubro, esse movimento ganhou um rosto e um discurso que ajudam a entender o que pensam os secundaristas do Paraná e do Brasil. A estudante Ana Julia Ribeiro, de 16 anos, subiu ao Plenário da Assembleia Legislativa do Paraná para falar aos deputados sobre as ocupações nas escolas do Estado.
“De quem é a escola? A quem a escola pertence?”, questionou os parlamentares com a voz ainda embargada ao citar o inciso 6º, do artigo 16, da lei 8.069. “Acredito que todos aqui já saibam a resposta. E é com a confiança de que vocês conhecem essa resposta que eu falo sobre a legitimidade desse movimento”, emendou. A legislação de 1990, mencionada pela estudante, garante à criança e ao adolescente o direito de participar da vida política.
A partir dessa pergunta, diante de dezenas de políticos paranaenses, alguns incomodados, ela explicou de forma dura e sensível, alternadamente, como a educação era a única bandeira de um movimento apartidário.
“Eu convido vocês a participar das nossas ocupações, a nos visitar, a nos conhecer de perto”, disse aos deputados. “É um insulto a nós que estamos lá, nos dedicando, procurando motivação todos os dias, sermos chamados de doutrinados. […] Não estamos lá pra fazer baderna, não estamos de brincadeira, a gente está lá porque acredita no futuro do nosso País. […] O movimento estudantil nos trouxe mais conhecimento de política e cidadania do que todo tempo que estivemos sentados e enfileirados em aulas padrões”.
Poucas horas após a participação na Assembleia, o vídeo com o depoimento de Ana começou a se alastrar nas redes sociais. No dia seguinte, já tinha mais de um milhão de visualizações em apenas uma das postagens no Facebook.
Como a estudante explica aos deputados, o movimento de ocupação de escolas públicas começou em 3 de outubro, no Paraná, por conta da MP 746, publicada pelo governo Michel Temer em setembro, que impôs uma reforma no ensino médio sem que os pontos fossem debatidos com a sociedade brasileira.
As primeiras ocupações, que serviriam de embrião ao movimento, aconteceram justamente em escolas localizadas em regiões periféricas. A primeira delas foi no Colégio Estadual Padre Arnaldo Jansen, que fica em um bairro de São José dos Pinhais.
“A gente se reuniu no shopping com uma galera de vários colégios para falar da MP. A partir disso, marcamos uma reunião na praça, aqui de São José dos Pinhais, e criei um evento no Facebook. Foram 400 pessoas. Vieram secundaristas até de Curitiba”, explica Mariana da Silva Gomiela, de 16 anos, estudante do 2º ano do ensino médio no Jansen.
Para saber como entrar nas escolas e permanecer em forma de protesto, a estudante conta que leu um manual, que reúne dicas de estudantes chilenos e argentinos sobre o assunto. O documento foi produzido a partir da experiência do movimento secundarista no Chile em 2011. “A gente saiu pelas ruas em protesto, mas a gente sabe que passeata não dá mais em nada no Brasil. Então deliberamos sobre ocupar os colégios”, complementa.
Atendente de telemarketing antes do início das ocupações, e por conta do movimento, ela acabou perdendo o emprego, Mariana vê a questão do ensino em tempo integral como o principal obstáculo para os estudantes mais pobres. “A reforma do ensino médio prevê aula em tempo integral. Isso é irreal porque muitos dos alunos de escola pública, principalmente, trabalham por necessidade, para ajudar a família ter o que comer", afirma. "E mesmo assim muitos deles já deixam a escola. Se for aula integral, ele vai optar por trabalhar em vez de estudar”, conta.
A partir da primeira ocupação, os secundaristas de outros colégios começaram a levar o debate para suas escolas e outras unidades foram ocupadas em São José dos Pinhais. Em dois dias, o movimento chegou à Curitiba, alcançou mais de 20 escolas e se alastrou pelo Paraná. Nesse meio tempo, os estudantes ganharam mais uma razão para o levante: a aprovação da PEC 241. No dia 11 de outubro, a proposta que congela os gastos primários pelos próximos 20 anos, como saúde e educação, passou em primeiro turno na Câmara dos Deputados, com 366 votos. Com isso, surgiram os primeiros cartazes e faixas contra a proposta nas grades e portões das escolas ocupadas.
A onda chegou à Minas Gerais, Estado que possui a segunda maior quantidade de escolas ocupadas. Os secundaristas mineiros chegaram a ocupar mais de 60 escolas nas primeiras semanas de outubro, sendo a maioria na região de Uberlândia. Na sequência, foram registrados movimentos semelhantes em estados como Rio Grande do Sul, Goiás e Espírito Santo. No total, 19 estados e o Distrito Federal já tiveram escolas ocupadas.
Em São Paulo, a maioria das intervenções foi feita em institutos federais. Nas duas tentativas de ocupação de escolas estaduais, rapidamente, a Polícia Militar, a mando do governador Geraldo Alckmin, reprimiu o movimento. O Estado foi palco de grande mobilização dos secundaristas no ano passado, quando os estudantes conseguiram evitar que o governo tucano fechasse algumas escolas, na chamada “reorganização escolar”. Esse movimento foi uma das inspirações para as primeiras ocupações no Paraná.
Assim como estado sulista, uma parte considerável dos secundaristas paulistas vinham de regiões periféricas ou de famílias de baixa renda. Na época, uma pesquisa feita por professores da Universidade de São Paulo e da Universidade Federal de São Paulo, junto a uma passeata dos estudantes do ensino médio, mostrou que 46% deles tinham renda familiar de no máximo até três salários-mínimos e 33,6% eram negros ou pardos.
“Há a educação formal, com aulas de química, física, matemática, que não dialoga mais com o jovem, e este não suporta mais ficar somente sentado escutando, e há uma educação informal, que o jovem tem pela internet, grupos, rede social, fora da escola. Por isso, mesmo com a escola sucateada, o jovem está se politizando”, opina a professora Esther Solano (Unifesp), que estuda manifestações. E acrescenta: “Talvez ele não tenha uma boa aula de química, mas vai para as manifestações, conversa em grupos, tem todo uma rede informal de educação que não passa mais pela escola”.
Como mais de 80% das escolas ocupadas estavam no Paraná e a mídia ignorou o movimento nacionalmente, o debate se tornou mais intenso na capital paranaense e em cidades do interior do Estado. Logo virou assunto também das eleições em Curitiba, onde Ney Leprevost (PSD) e Rafael Greca (PMN) disputavam a prefeitura em segundo turno. Vencedor do pleito, Greca conta com o apoio do governador do Estado.
Quando o movimento ainda era tímido, Beto Richa disse que os estudantes estavam sendo usados por políticos do PT e da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e iniciou a ofensiva por meio de diversos pedidos de reintegração de posse. Debochou: “uma perfeita doutrinação”. Não imaginava que a afirmação seria respondida por Ana Júlia Ribeiro, na própria Assembleia Legislativa, quase um mês depois.
Assim que o movimento se espalhou pelas cidades do Paraná, o governador mudou o discurso. Pela imprensa, garantiu aos estudantes que não aplicaria a reforma do ensino médio no Estado antes de um amplo debate. O governo federal entrou, então, em cena. O ministro da Educação, Mendonça Filho, chegou a dizer há algumas semanas que cancelaria o Exame Nacional do Ensino Médio nas escolas ocupadas, caso os protestos continuassem.
Uma semana após essa afirmação, um estudante foi morto dentro de uma das escolas ocupadas. Lucas Eduardo Araújo Mota, de 16 anos, morreu após ser esfaqueado na região do tórax e pescoço por um amigo de infância, de 17 anos. Ambos participavam da ocupação no Colégio Estadual Santa Felicidade, em Curitiba. Estudantes ouvidos pela Polícia Militar afirmam que os dois chegaram à escola com comportamento estranho e um deles, quando questionado, teria assumido que os dois usaram uma droga psicodélica mais cedo.
A tragédia despertou, na ocasião, a ira dos que classificam as ocupações como “badernas” e acusam os estudantes de depredar os locais de ensino, usar drogas e praticar sexo. E agora o mesmo argumento é usado por magistrados para determinar as reintegrações de posse.
Além de alvos do governo do Estado e de uma parcela de professores ou diretores de colégios, os estudantes secundaristas parecem estar no meio da polarização que tomou conta do País. No Paraná, os secundaristas relatam que rojões ou pedras são usados contra as escolas durante a noite. Alguns atribuem os ataques aos movimentos de direita que intensificaram suas ações no estado após o crescimento das ocupações.
Os estudantes reclamando ainda dos líderes de movimentos estudantis de esquerda, ligados a partidos políticos tradicionais, que costumam entrar nas ocupações para colocar bandeiras ou passar palavras de ordem. Esse tipo de imposição gerou rejeição às principais uniões estudantis. Muitos colégios não têm sequer a bandeira da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes).
“Chegou um líder da União Paraense dos Estudantes Secundaristas (UPES) aqui, tirou uma foto dele na ocupação e cinco minutos depois foi embora porque tinha que viajar. Nem ajudar a carregar as coisas, ele ajudou”, diz uma secundarista que prefere não se identificar.
Nas visitas em que fez aos colégios ocupados, CartaCapital encontrou um cenário bem distinto do descrito pela Procuradoria-Geral do Paraná ou em grupos de Facebook que são críticos às ocupações. Muitos colégios colocam, como condição para a entrada, uma revista dos pertences pessoais de alunos, pais e professores. Mais do que isso, os estudantes adotaram escalas e divisão de tarefas. Todos reproduzem um sistema parecido. Os ocupantes dividem-se em comissões de comunicação, segurança e cozinha, entre outras. Cada qual fica responsável por atividades de uma área.
Além disso, em todos as ocupações, há cartazes com os horários estabelecidos para limpeza, almoço, jantar e horário de dormir. Os estudantes também dividiram as salas em dormitórios masculinos e femininos. Muitos pais passam a noite na ocupação com seus filhos e ajudam nas atividades de limpeza, cozinha ou segurança.
“Uma grande parte da sociedade, ainda que aceite que a educação deve melhorar, coloca a ordem pública acima de tudo. As escolas estão rompendo com essa ordem. Mas eles querem uma escola diferente. Não querem mais essas escolas tradicionais”, afirma Esther.
Mas essa organização interna nas ocupações não impediu que o Ministério Público, e até conselheiros tutelares, também se empenhado contra a o movimento. Em Miracema de Tocantins (TO), cerca de 20 estudantes da Escola Dona Filomena Moreira de Paula foram retirados à força de uma das escolas e levados algemados à delegacia com o aval de um promotor.
Ameaças também foram registradas em escolas do interior do Paraná, onde promotores estariam preparando ações civis contra os jovens. “Parecia haver promotores tentando identificar alguns dos estudantes”, explica a advogada Tânia Mandarino, do grupo Advogados e Advogadas pela Democracia.
Apesar disso, parte dos estudantes ainda quer continuar com o movimento. Um secundarista do 3º ano do ensino médio, que está em uma das escolas fechadas de São José dos Pinhais e prefere não se identificar, conta que trabalha como porteiro em um clube de classe média da cidade. Recebe pouco mais de 600 reais por mês e não é registrado.
“Todo mundo do ensino médio aqui nessa escola trabalha. Se eu estivesse no 1º ou no 2º ano, com essa MP de educação integral, eu já teria saído da escola. Não é porque vou terminar o curso que não vou lutar, é o direito do meu irmão, da minha família. Em vez de aumentar os gastos com educação, querem cortar o que já não tem?”
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Sob pressão da Justiça, secundaristas completam um mês de ocupações nas escolas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU