04 Novembro 2016
"O aparato escolar brasileiro está sendo um dos centros da disputa política. A expansão, qualidade e caráter do mesmo tem sido revisto pelos partidos da ordem e os movimentos reacionários: do escola sem partido até a militarização de escolas civis", escreve Alexandre Pimenta, em artigo publicado por LavraPalavra, 02-11-2016.
Eis o artigo.
“Sangue e suor / De nossos pais até nós / No nosso lugar / Nós nos mantemos em paz / Em condições não das melhores / Olhares a São Paulo / E o que vemos? / Condição das piores. / OCUPAR e RESISTIR / OCUPE SUA ESCOLA / Nosso segundo lar / A família, a memória”. (#OCUPESUAESCOLA, Melodia Preto Bendi)
Estamos em meados de outubro de 2016. Cerca de 500 escolas estão ocupadas por estudantes em todo o Brasil de acordo com grupos de mídia independente. Como é sabido, esse fenômeno teve seu primeiro capítulo nas escolas de São Paulo, em 2015, e já repetiu em outros estados (Rio de Janeiro, Goiás, Rio Grande do Sul etc). Desde o início as ocupações têm ganhado a simpatia dos setores progressistas e causado surpresa naqueles que, mesmo depois de 2013 [1], insistiam na ladainha melancólica sobre uma tal geração despolitizada e hedonista.
Hoje, já não são mais as ocupações de reitoria que ganham os noticiários, como no renascer do movimento estudantil brasileiro em 2007/2008 [2]. Quem grita agora “não tem arrego” ainda habita a puberdade.
As ocupações ocorrem, de forma geral, como medida de resistência à alguma política educacional (como a reorganização do sistema, em SP, ou a curta e grossa aplicação de organizações sociais “sem fins lucrativos” [3], em Goiás), normalmente motivada pelo arrocho fiscal vigente – forma “técnica” de falar do ataque aos benefícios e conquistas da população. Em São Paulo, os alunos após a falta de efetividade e visibilidade das manifestações de rua (que reapareceriam depois nas formas de trancaços), resolveram radicalizar através das ocupações de suas escolas. Ocupar não é sinônimo de isolamento: na maioria das vezes houve articulação com outros movimentos comunitários, culturais, sociais ou sindicais, como no caso do Rio de Janeiro e a greve dos professores estaduais deste ano.
A atual onda de ocupações possui forte presença dos Institutos Federais, diretamente atingidos pelo novo regime fiscal da União em vias aprovação, além das escolas do Paraná, prelúdio de mais uma possível greve geral dos servidores públicos estatais contra os calotes recorrentes. Unindo todas elas, está em pauta a luta contra a reforma do ensino médio, o projeto escola sem partido… Motivos não faltam, e seria mais simples explicar o porquê ainda há tantas escolas não ocupadas.
O movimento de ocupações não ocorreu sem reação. Mesmo diante de meninos e meninas, o Estado não se intimidou a usar expedientes semelhantes quando de ocupações por terra ou moradia. Como se falou numa reunião do governo de SP, cujo áudio vazou: a tática foi de guerra. Segundo denúncias, sobretudo de São Paulo [4] e Goiás [5], esses atuais laboratórios do Brasil, as ocupações e seus integrantes foram sistematicamente ameaçados, inclusive por pessoas armadas (policiais à paisana ou não, milicianos etc.); remoções sem ordem judicial, depredações intencionais, agressões e sabotagens também ocorreram por parte da reação. Fora o velho bombardeio midiático. A comunidade local, usada por agentes do governo e pelegos, também serviu de escudo, como no caso do Desocupa Mendes (RJ), tendo como base estudantes e pais desesperados ao ver a possibilidade de algum atraso no calendário escolar.
Concomitante a essa forma de luta, há outro fenômeno mais ruidoso, invisível e esparso, que é visto como o oposto dessas ocupações: a onda de conflito e violência contra o sistema escolar pelo país. Quem afirmaria o contrário? De um lado, ocupações “responsáveis” que cuidam do “patrimônio público”, um impulso para aperfeiçoar a gestão escolar e o currículo [6]; “exemplo de cidadania”. De outro, um primitivismo criminoso sem sentido.
Esse debate nos lembra de alguma forma 2013? Os black blocs eram tidos pelo partido da ordem como o oposto dos manifestantes. Sua postura não queria dizer nada (chegando ao cúmulo de Chauí ir palestrar à polícia o quanto os mascarados eram fascistas – e não o contrário). Uma das tentativas mais honestas de explicá-los, ainda moralista, foi recorrendo ao passado do movimento operário. No luddismo encontraríamos a imagem do black bloc. No final, isso só servia para reduzi-los a uma minoridade política, justificar a postura indiferente frente a sua perseguição [7] e afirmar a superioridade política e intelectual de quem os criticava – estes mesmos sábios que sofreram o abraço de urso da dita governabilidade.
Mas há algo daí a se preservar. Quando se refere ao luddismo, está-se falando da história da classe operária, a história de suas formas de luta, de seus avanços e recuos. História esta que ainda se repete, e não cabe na lógica dos analistas políticos (“a comunidade só tinha um ônibus, e ainda incendiou ele, como pode???”). Não se está diante de um outro sem sentido. O luddismo diz algo e foi efeito de uma mesma estrutura que gerou o sindicato, o partido, as passeatas etc.
Marx [8], soube captar bem isso no luddismo:
A maquinaria não atua, no entanto, apenas como concorrente mais poderoso, sempre pronto para tornar o trabalhador assalariado “supérfluo”. Aberta e tendencialmente, o capital proclama e maneja como potência hostil ao trabalhador. Ela se torna a arma mais poderosa para reprimir as periódicas revoltas operárias, greves etc., contra a autocracia do capital. […] Durante o século XVII, quase toda a Europa vivenciou revolta de trabalhadores contra o assim chamado tear de fitas, uma máquina de tear fitas e galões […]. É preciso tempo e experiência até que o trabalhador distinga a maquinaria de sua aplicação capitalista, e, daí, aprenda a transferir seus ataques do próprio meio de produção para sua forma social de exploração.
Os luddistas, antes dos teóricos, notaram o real objetivo do uso da maquinaria, pois foram os que primeiro sentiram este na pele. Organizar seu “programa” e “discurso” não foi imediato, nem poderia sê-lo – e foi pela experiência com a violenta reação que o movimento deu passos.
Um paralelo ao movimento de ocupações não é tão forçoso. Os ataques às escolas, aos agentes escolar, somadas ao simples abandono (espécie de suicídio do ser estudante), enfim, a perda da “aura” da escola [9], precisam ser entendidos como algo que fala dessa conjuntura, das ocupações propriamente ditas.
Autores da sociologia da educação francesa como Bourdieu, Baudelot e Establet viram de perto o maio de 68 [10], suas causas e efeitos. E para eles, a rebeldia, a desobediência, o vandalismo, a depredação e a negação do (e frente) ao aparato escolar é algo latente no capitalismo e explicita as contradições e dissimulações desse aparato que reproduz e legitima a segregação em classes. A perda da aura da escola, do professor, que tanto amedrontou as classes dominantes daquela época (e ainda amedronta) era um sinal negativo de uma luta surda, de um protesto contra as farsas e engodos da escola – que insiste sempre em culpar o “desajustado” pelo seu desajuste que se ajusta tão perfeitamente no não-lugar que essa sociedade o enquadrou!
Se trocarmos “walkman” por “smartphone”, teremos um retrato da contemporaneidade:
Passou o tempo das pastas de couro, dos uniformes de aspecto austero, do respeito devido aos professores, outros sinais de manifestados diante da instituição escolar pelas crianças oriundas das famílias populares, tendo cedido o lugar, atualmente, a uma relação distante: a resignação desencantada, disfarçada em negligencia impertinente, é visível através da indigência exibida do equipamento escolar, os cadernos presos por um barbante ou elástico transportados de forma displicente em cima do ombro […] pela multiplicação dos sinais de provocação em relação aos professores, como o walkman ligado […] que desejam lembrar, dentro da Escola, que a verdadeira vida encontra-se fora dela. (Bourdieu e Champagne [11]).
Badelot e Establet [12] falam que tal postura é uma “reação (espontânea) de defesa”, enfatizando a violência vivida nesse aparato (que é uma parte do Estado) por esses jovens antes de sua displicência. Relembra vários casos “espantosos” de revolta estudantis contra o aparato em sua materialidade (funcionários e instalações), e o desespero da pedagogia (e também da psiquiatria) em socorrer os problemáticos [13]. E relaciona também a outras formas espontâneas de reação dos trabalhadores nos locais de exploração, como o “corpo mole”, “operação tartaruga” etc.
Um autor mais próximo de nós, Décio Saes, afirma, junto com Maria Leila Alves [14], que os alunos de classes populares são fortemente atingidos por uma espécie de ressentimento frente à função e condição real da escola, resultando assim numa postura mais ou menos ofensiva frente a tudo o que é representada por ela.
As ocupações, em outro nível e forma, também lutam contra as contradições citadas, mas de forma organizada e “positiva” (Baudelot-Establet), para além de uma “revolta impotente” (Bourdieu-Champagne) ou “ressentida” (Saes-Alves): ocupa-se e gere-se aquele espaço; produz-se outra ideologia, outro modelo pedagógico, ou seja, outras práticas ideológicas. Quando a massa dos estudantes, ou parte significativa dela, ocupam aquele espaço, podem iniciar o desmonte dos mecanismos que visam a reprodução das posições sociais, típico do currículo e gestão que desvalorizam sobretudo o modo de vida e pensar dessa massa. Podem assim gerar uma outra referência de aluno: aquele que luta e colabora coletivamente, que busca conhecimento em prol de um problema real, concreto e com sentido. Em matéria do El País (16/10/2016), um dos secundaristas ocupantes relata que foi indicado pelo grupo para lavar a louça por ter um histórico de ser machista. Ele diz: “Em casa, eu não tinha ânimo [para lavar a louça], mas aqui eu fazia com prazer”. Disse ainda, ao final da experiência, que tinha mudado completamente “o jeito de pensar”.
Ocupar a escola é mudar inclusive sua estrutura física: mudar móveis, bloquear ou abrir lugares para acesso. Controla-se, exerce-se poder, junto com a comunidade, no vazio do Estado falido: que escola queremos para nós? Pergunta que o Estado não fez, mas também os jovens não esperaram fazê-lo. O velho jogo da escola já está escancarado [15], mas, e se usássemos o que esse espaço tem de potencial para nós? E se de fato tornassem esse instrumento da comunidade? [16]. Eis perguntas que tentam alcançar a complexidade dessa virada, que não é fixa, no entanto, não deixa de ser uma virada.
A ocupação também pode, inevitavelmente, alimentar o próprio mito ideológico da escola: se ela fosse realmente pública, não houvesse corrupção… esta serviria de fato para nós e agiria sob “igualdade de oportunidades”. Todavia é uma questão secundária, que o próprio processo de luta ensina. A repressão que sofrem por apenas exigirem o mínimo (como uma merenda básica!), os espaços que descobrem para além do aparato escolar, tudo isso conta. Mariátegui [17], sobre os primórdios do movimento estudantil peruano no início do século XX, falava:
Reaberta a universidade – depois de um período de recesso que fortaleceu os vínculos existentes entre a docência e uma parte dos estudantes – as conquistas da reforma foram escamoteadas, em grande medida, pela nova organização [que instituiu cátedras livres e representação estudantil]. Mas, em troca, o “novo espírito” já tinha maior adesão na massa estudantil. E nas jornadas da juventude se notaria menos confusão ideológica que nas anteriores ao recesso.
O aparato escolar brasileiro está sendo um dos centros da disputa política. A expansão, qualidade e caráter do mesmo tem sido revisto pelos partidos da ordem e os movimentos reacionários: do escola sem partido até a militarização de escolas civis [18], passando pelos senhores da austeridade de plantão. Novos tempos de acumulação do capital e dominação político-ideológica exigem novas formas e conteúdos no educar (ou no simples não-educar, para o crescente número de supérfluos frente à busca do “novo ciclo virtuoso da economia brasileiro”). Mas se há ataque, há resistência. E as ocupações mostram um significativo número de jovens que perceberam quem são seus inimigos e a forma mais eficaz de combatê-los: organizando-se. Dessa forma, tornam-se professores de seus professores. Resta a nós prestar atenção em sua aula.
PS: Vale a pena lembrar dos 50 anos da revolução cultural chinesa, uma das inspirações do movimento estudantil de 68. Ali também se construiu trincheiras de disputas no aparato escolar; ocupou-se e experimentou-se novas formas de ensinar e aprender. A história dos oprimidos é mesmo essa repetição de um mesmo gesto que some e reaparece em contextos completamente diferentes. Ora, uma das escolas ocupadas em Goiás não foi a Ismael Silva de Jesus, jovem militante comunista morto pela ditadura aos 19 anos?
Notas
[1] Ou melhor: apesar de 2013, como deve pensar os governantes, pois desde lá se afinou os aparatos repressivos e de vigilância e reformulou os dispositivos legais para se “atualizar” à essa nova geração e suas formas de organização e luta. A cereja do bolo? A lei antiterrorismo sancionada por Dilma no apagar das luzes.
[2] Para ser mais preciso, as ocupações de reitoria no Brasil são posteriores à chamada Revolta dos Pinguins, um imenso levante secundarista (com ocupações) no Chile, em 2006. Veja aqui. Esse movimento ressurgiria nos anos seguintes e seria responsável, por exemplo, por uma das maiores manifestações da história chilena. Veja aqui. O movimento chileno aparece ainda como referência explícita dos ocupantes secundaristas daqui e de alguns de seus coletivos, como o Mal-Educado, que possui uma cartilha de como ocupar um colégio. Veja aqui.
[3] Sobre as OS’s recentemente aprovadas na educação goiana, ver texto do professor e militante Rafael Saddi. Veja aqui.
[4] A perseguição aos secundaristas de São Paulo se tornou uma denúncia à OEA. Ver vídeo com depoimentos impressionantes de covardia do Estado e força dos estudantes. Veja aqui.
[5] Alguns relatos e notícias da repressão goiana:
1- Veja aqui.
2- Veja aqui.
3- Veja aqui.
4- Veja aqui.
[6] Em vários vídeos disponíveis da internet, vemos, por exemplo, a realização de auditorias independentes dos estudantes, que descobrem equipamentos escolares amontoados em salas inacessíveis a eles, ou seja, “seguros”; a construção coletiva de programação da ocupação que inclui cursos nas mais diversas áreas do conhecimento; comissões e mutirões de limpeza, segurança, comunicação. O cinismo da história está no fato de as ocupações terem antecedido a dita reforma do ensino médio, que promete escola em tempo integral, matérias a escolha dos alunos… Espécie de cotidiano das ocupações às avessas: o alvo sendo a ampliação do fosso da desigualdade de formações, o tecnicismo, a demanda do “mercado”.
[7] Há vários manifestantes de 2013/2014 ainda presos ou respondendo processos kafkianos. Não se vê muita movimentação ou solidariedade daqueles que acreditam no estado de exceção sob a marca apenas de Temer.
[8] O Capital. Capítulo Maquinaria e Grande de Indústria. Editora Abril Cultural.
[9] Para Althusser, por exemplo, crise ideológica da escola é crise do aparato ideológico do estado capitalista em si, tendo em vista a centralidade da escola na reprodução das relações capitalistas. Seguindo na mesma linha, Baudelot e Establet lembram que a reforma educacional de Jules Ferry na França aconteceu após a Comuna de Paris. Talvez o desespero de uma reforma educacional no Brasil seja menos paranoia anti-comunista e mais uma necessidade objetiva das classes dominantes.
[10] 1968 nos remete a um outro aspecto central deixado de lado na reflexão que fazemos aqui: a “crise/reformulação” da família. Uma das justificativas do escola sem partido é a tal ideologia de gênero, quer seja, o questionamento da ordem moral e sexual que impera nas famílias majoritariamente cristãs do país. O elemento familiar-geracional também seria fundamental para explicar o desencanto com a escola diante da a desvalorização da formação e do diploma a longo do tempo, a frustação da não realização do eu-ideal nos filhos etc.
[11] Os excluídos do interior, em Escritos de educação, organização de Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani. Editora Vozes.
[12] La escuela capitalista. Capítulo El aparato escolar y la lucha ideológica de clases. Siglo XXI.
[13] Não muito distante de nós hoje: a reforma do ensino médio não visa, ao menos no discurso, “salvar” a escola desses e para esses jovens “problemáticos”?
[14] Problemas vividos pela escola pública: do conflito social aos conflitos funcionais (uma abordagem sociológica), Revista Linhas críticas, 2004.
[15] O censo da educação superior de 2015 recentemente lançado mostra que, pela primeira vez em muitos anos, o número de ingressos no nível superior caiu em relação ao ano anterior. As ocupações de certa forma foram o réquiem do último (tímido e limitado) boom de expansão do sistema educacional de nível superior. Essa mesma geração que ocupa as escolas é a que vê ansiosa a verba estatal acabar, o FIES atrasar e o desemprego alavancar. Mais uma vez: razões não faltam.
[16] A reorganização em SP ameaçou exatamente o mínimo de comunidade que havia em várias escolas. No documentário “Acabou a paz! Isso aqui vai virar o Chile”, de Carlos Pronzato, vários alunos falam da revolta diante da ideia de mudar para uma escola longe de sua comunidade onde cresceu. Uma secundarista chega a colocar o problema como da própria reprodução da família trabalhadora da região: o irmão mais velho costuma levar os mais novos para a escola. E se aquele for removido para longe? Novos gastos serão necessários, como transporte. Dessa forma a reorganização pode se reverter em perda salarial indireta.
[16] Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. Capítulo O processo da educacao pública. Clacso e Expressão popular.
[17] Essa nova moda inaugurada por Goiás põe à prova os próprios limites entre o sistema repressor e ideológico de Estado. Uma espécie de um curto-circuito.
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A crise no aparato escolar brasileiro e as ocupações estudantis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU